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5. UMA MEMÓRIA HÍBRIDA

5.4 A casa própria

A partir do momento em que deixa de morar junto com o marido, Ocampo reorganiza os lugares em que vive, segundo seus gostos pessoais e fazendo do estilo uma forma de comunicar seu eu:

El departamento de la calle Montevideo era chico comparado con la casa (calle Tucumán) que acababa de dejar. No llevé a él sino un número limitado de muebles y objetos, aquellos de los que no tenía el coraje de separarme... En esta decisión, en esta elección, en este despojamiento voluntario, sentía algo así como una toma de posición ante ciertos problemas de la vida. (AUT. IV,123)

A mudança da Calle Montevideo ocorreu em 1924; este ano pode servir de

referência como sendo aquele em que Victoria Ocampo ingressa na vida pública e começa a ser conhecida como escritora. Em 1924 a Revista de Occidente de Ortega y

Gasset publica a primeira edição de De Francesca a Beatrice. Sua “prise de position”

coincide com a decisão de tornar pública sua palavra. Os textos mencionados não só têm valor por serem os primeiros, mas, também, e, sobretudo por seu caráter subversivo. Ocampo dá a conhecer sua concepção de literatura como meio de expressar um eu pessoal que desafia as vozes autoritárias tradicionais. Nessa primeira etapa de franqueza, de “desnudez”, tem lugar sua vontade de adquirir um estilo literário próprio que corresponde a sua opção por certo estilo arquitetural:

La casa que, en efecto, construí en Mar del Plata con un simple constructor que, por lo demás, gustó a Le Corbusier, fue hecha de acuerdo con mis indicaciones, tanto por fuera como por dentro. Yo la quería absolutamente simple, absolutamente desnuda. Quería recomenzar todo lo relativo a la arquitectura y al amoblamiento a partir de cero, después de haber hecho tabla rasa con todo lo que había aceptado hasta ese momento. (AUT.IV, 200)

A construção dessa casa anuncia uma nova etapa de sua vida. Ela ocorre quase

na mesma época em que Ocampo redige a seção Virage de sua Autobiografia. Por essa ocasião ela amplia seu círculo de amigos e oferece hospitalidade e ajuda a duas personalidades cujas obras admira especialmente: Tagore e Ansermet. A esta primeira casa, sucede muito rapidamente outra, também desenhada por ela, agora em Buenos Aires. Ambas as casas indicam um novo interesse do eu, ao mesmo tempo em que uma maior independência das obrigações sociais. A “desnudez” da casa corresponde a uma “desnudez” do eu que se liberta; finalmente, ela pode conviver com seu namorado numa certa liberdade. Por intermédio dele, ela se mostra ao público tal qual é, mesmo sabendo que seus gostos e idéias poderão chocá-lo. A linguagem que adota vai contra as correntes arquitetônicas do momento, mas Ocampo se diverte ao constatar que sua casa é considerada como sendo a mais feia da cidade, pela simplicidade de suas linhas. A narradora critica a tendência argentina em copiar estilos europeus que não correspondem ao modo de vida local: Mientras nuestras ciudades se obstinen en

remedar a las ciudades europeas y a los viejos estilos - cuya belleza existe sólo cuando pertenecen a la época que los creó – no tendremos más que horrores. (T. 172)

A esta época, também, corresponde sua colaboração na construção de outra casa,

esta de J., contraponto da casa antes compartilhada com o marido. Se naquela Ocampo não se sentia dona, nesta que, materialmente, não lhe pertencia, tem participação ativa:

Hicimos los planos de la casa y del jardincito. Elegí cortinas, muebles, platos y cacerolas. Mientras construían la casa la visitábamos casi diariamente. Nos encantaba medir el crecimiento de las paredes, vigilar la aparición de puertas y ventanas, mirar cómo colocaban los azulejos de la escalera. (AUT. III, 68)

A casa de J. na qual nunca morou, permite observar-se a si mesma como parte de

um tema mais amplo o de nosotros. Participa de uma linguagem plural através da qual manifesta a relação socialmente proibida, e era como se a casa de J. fosse sua voz. Ocampo exige que uma casa por sua decoração se amolde a seus donos como la tela del

vestido sobre un cuerpo (AUT.III, 68). Deve dar a conhecer a pessoa que nela mora.

Entre moradores e moradia há uma relação de correspondência harmônica; a casa funciona como um significante a mais de seus donos. Para Ocampo, a verdade existe e deve ser exibida. Para explicar a função da casa, ela utiliza a moda como mediação artificiosa para acrescentar um novo código.

A narradora fica presa a uma rede de textos dos quais não consegue se desfazer.

Se a famosa casa própria tem um corpo arquitetônico, facilmente reconhecível, a que Ocampo persegue encerra qualidades de tipo quase onírico. Segundo sua opinião, todo indivíduo possui um ambiente íntimo, criado pessoalmente e onde se refugia: ¿Cómo

podríamos visitar el mundo en que Blake, Swedenborg, Johann-Sebatian Bach se encuentran en su casa? Hay una experiencia interior lo mismo que hay una exterior. La primera es intraducible. (VWD, 69). Para traduzir o eu não se pode evitar nem a

metáfora nem a casa real; a busca de Ocampo tem como resultado as páginas de seus

Testimonios e de sua Autobiografia, que tentam refletir seu mundo sem, todavia,

conseguir plenamente. Sempre em perseguição ao genuíno busca detalhes que não enganem:

Para mi felicidad es necesario que un sillón Luis XV sea un sillón Luis XV, que una silla de cocina o una mesa de caña sea una silla de cocina y una mesa de caña. Tuve, en la Avenida Malakoff ... un departamento encantador... amueblado con mesas de madera blanca (mesas de cocina), sillas y sillones de caña, un canapé y dos illones confortables recubiertos de chintz gris y nada más... Las paredes y las puertas pintadas de gris (de acuerdo a mis indicaciones) daban a todo un aire de limpieza y de pulcritud estrictas... No pudiendo pagarme los muebles auténticos que hubiera querido tener, me pagaba los muebles

auténticos que no alteraban mi presupuesto. Nada de imitaciones, de falsos Luises, de falsos chipenddales, de falso provenzal (colmo de lo horrible) en mi casa. No importa qué, pero auténtico. (AUT. VI, 147)

Limpeza e despojamento, sem falsificações, para mostrar-se tal qual se é. À naturalidade a narradora une a funcionalidade, a praticidade dos objetos: Desde el

momento en que un mueble está colocado sin sentido, molesta. (AUT. VI, 148). O

significado é perseguido por todos os meios; trata-se de ser fiel a ele de modo permanente.

O mesmo critério de fidelidade à verdade, por meio do estilo, é aplicado por

Ocampo em suas leituras. Ela o admira, como ocorre com sua leitura de Virginia Woolf:

Para describir la sensación que dejan los mejores ensayos, las mejores novelas de Virginia, habría que empezar por decir eso. Que ella ha llegado a hacer pasar todo su yo a su estilo, de tal modo que hablando de cualquier cosa habla de sí misma, ella, que nunca habla de sí misma. Entrar en su prosa es como entrar en la casa de alguien cuyo gusto, cuyo sentido de la belleza es muy personal y que tiene el don de poderlo comunicar al lugar en que vive. Todo nos habla de ese alguien, desde la manera como están dispuestas las sillas, colocadas las mesas, pintadas las paredes, hasta la manera como una flor sumerge su tallo en un vaso y como una lámpara ilumina un libro, un caracol o un Picasso. (T.II, 43)

ou o critica, como ocorre com Anna de Noailles a qual ela aprecia como poeta, mas não como prosadora. Ocampo observa as obras escritas como quem observa uma casa buscando nela as manifestações de seu autor-habitante. Ela admira a aptidão de tradutora de Virgínia Woolf que consegue transpor sua pessoa a seu estilo e manter um único espírito com linguagens diferentes: conhecer sua prosa significa conhecer sua casa e sua pessoa.

Somente mais tarde é que Ocampo consegue reconciliar-se com a tradição

familiar por meio de outra casa, a de Villa Ocampo, em San Isidro, que fora desenhada por seu pai antes do seu nascimento. Essa mudança altera a visão da narradora, que, anteriormente seguira um itinerário que a liberava dos ambientes tradicionais. Em um de seus artigos ela qualifica de “volta” a esta casa como sendo uma “deserção” de seus princípios e de seu estilo próprio A esto no se puede llamar casa, sino querencia. (T. IX), o que significa o lugar onde fora criada por costume e por nostalgia. Entretanto este

retorno acontece quando seus pais já estavam mortos, de modo que seu regresso à casa paterna se faz, não mais como filha, mas como dona.

A casa de San Isidro é inseparável da tradição familiar. Ocampo estabelece um

compromisso entre os códigos tradicionais e os atuais que ela desafia. Fecha o círculo de seus deslocamentos e ocupa o lugar de proprietária, antes ocupado por seu pai. O lugar do pai, dono da linguagem familiar, tem importância porque, durante a juventude e como filha, limita sua linguagem e estabelece uma hierarquia em relação a ele. Com a ocupação do lugar paterno, Ocampo adquire uma posição privilegiada, que a autoriza a apoderar-se da linguagem patriarcal. É nessa casa que ela passa muitos anos de sua vida, durante os quais recebe importantes hóspedes estrangeiros e onde os colaboradores de

Sur se reúnem com freqüência.

Essa volta ao lugar familiar, que já não representa uma ameaça à linguagem

própria, permite-lhe, ao contrário, maior flexibilidade à sua própria linguagem, dando- lhe a oportunidade de resgatar o que a ela corresponde, ao mesmo tempo em que anuncia uma continuidade ao projeto de sua classe social, tomando o lugar daqueles que a precederam.

Em 1973, Ocampo decide doar Villa Ocampo à Unesco para que, depois de sua

morte, artistas e escritores continuem nela sendo recebidos. Não é, pois, surpreendente que a publicação de sua Autobiografia ocorra, postumamente, como a posse de Villa

Ocampo pela Unesco . Esses gestos equivalem a tornar públicas duas escrituras que

tentam desvelar o eu de Ocampo com seus códigos e linguagens criando-lhe uma imagem e um estilo.

Tudo isto demonstra que a evolução da narradora está ligada aos ambientes que a rodeiam e que sua evolução biológica está unida à maestria da linguagem – o poder – que adquire paulatinamente. Neste sentido, o processo desenvolvido pode ser lido como ilustração do ensaio de Virginia Woolf, A room of one’s own. Nele a metáfora do título explica a necessidade da mulher escritora de possuir um quarto que lhe pertença plenamente, para que possa emitir sua voz e desenvolver sua escritura com independência. Ao mesmo tempo, trata de romper com a idéia clássica de casa como sendo um ambiente feminino por excelência, no qual a mulher, dedicada a trabalhos domésticos, se submete à autoridade do pai ou do marido.

Porém, mesmo apoiando e ilustrando a idéia de Woolf, notamos algumas

diferenças entre elas; Woolf considera a independência econômica da mulher como sendo uma condição indispensável para que possa emitir sua voz, e é a casa própria que,

em certa medida, origina a escritura. No caso de Ocampo, mesmo considerando-se que a figura da casa ilustra sua luta constante pela independência, o consegui-la constitui a culminação de uma escritura, ou seja, a prática de um estilo próprio. A figura da casa é, assim, mais complexa em Ocampo do que em Woolf, e pode ser analisada de modo mais amplo.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 90-95)