DE VICTORIA OCAMPO
Iaci Pinto Souto
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como quesito para a obtenção do título de Doutora em
Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos,
opção Literaturas Hispânicas).
Orientador: Professora Doutora Bella Jozef.
A CONSTRUÇÃO DO EU NA AUTOBIOGRAFIA
DE VICTORIA OCAMPO
Iaci Pinto Souto
Profª Drª Bella Jozef
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutora em Letras Neolatinas (estudos lingüísticos Neolatinos).
Aprovada por:
_____________________________________ Presidente, Prof.ª Drª Bella Jozef
___________________________________ Prof. Dr. Júlio A. Dalloz
___________________________________ Prof.ª Drª Márcia Attála Pieroluongo
___________________________________ Prof.Drª Cláudia Luna F. da Silva
___________________________________ Prof.ª Drª Angélica Soares
___________________________________
Prof.ª Dra.ª Sílvia Inês Cárcamo de Arcuri, Suplente
___________________________________ Profª.Drª Helena Parente Cunha, Suplente
Rio de Janeiro Julho de 2009
SOUTO, Iaci Pinto
A construção do eu una autobiografía de Victoria Ocampo – Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
Xi, 150 f.: 31 cm.
Orientador: Bella Jozef.
Tese (doutorado) – UFRJ/estudos lingüísticos/ Programa de pós-graduação em Letras Neolatinas,
2009.
Referências bibliográficas: f. 130-150
1.Literatura autobiográfica. 2. Literatura do eu. Memória. 4. Gênero. 5.Linguagem.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Faculdade de Letras. Programa de pós-graduação em Literatura hispano-americana.
AGRADECIMENT0
Aos meus queridos e inesquecíveis amigos, Dr. Clemente e
Dra. Evany Hungria, sem a ajuda tanto material quanto
espiritual dos quais, eu não poderia ter concluído este trabalho.
DEDICATÓRIA
Primeiramente quero apresentar meus agradecimentos aos professores doutores
que compões esta Banca, com especial carinho à Professora Doutora Bella Jozef, que
tem me acompanhado e ajudado durante todos estes anos, sempre pronta e gentil, me
dedicando um tempo precioso para me orientar; à professora doutora Silvia Cárcamo de
Arcuri que há muitos anos vem contribuindo para o aprimoramento de minha pesquisa
me fornecendo indicações de obras que muito me ajudaram; e à professora doutora
Márcia Pietroluongo cujas aulas magistrais e boa vontade me foram úteis para
complementar a visão que tinha da linguagem.
Quero expressar, igualmente, meu muito obrigada às Professoras Doutoras
Marcella Croce, da Universidad de Buenos Aires, e Maria Mercedes Borgoski, da
Universidad Nacional de Tucumán, que muito colaboraram na minha busca de material
relativo aos textos de Victoria Ocampo.
PERCURSO
Meu trabalho sobre a Autobiografia de Victoria Ocampo tomará como eixo e
como pretexto esta escritora argentina, editora e testemunha de momentos chaves da
vida cultural do seu país, durante os primeiros 80 anos do século XX.
Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer o porquê da escolha de Victoria
Ocampo.
Em Buenos Aires, durante a pesquisa de dados para minha dissertação de
mestrado sobre o também autor argentino Roberto Arlt, tendo ido ver uma exposição na
Galeria Pacífico do pintor Salvador Dali, fui atraída por uma mostra ao lado, em que
havia uma homenagem a Ocampo.
Li tudo o que ali se encontrava e, tal foi minha impressão, que decidi me
informar melhor sobre quem era aquela mulher excepcional fundadora de uma revista
de ampla repercussão no mundo literário nos primórdios do século passado.
Ao ler o primeiro tomo de sua Autobiografia, que consegui num sebo portenho,
meu entusiasmo foi crescente, de modo que, ao retornar ao Brasil e tendo já concluído o
mestrado de Literatura Comparada, consegui obter o inestimável apoio da Professora
doutora Bella Jozef, para fazer minha tese de doutorado sobre a Autobiografia de Victoria Ocampo.
Para realizar o meu propósito tive que me submeter ao exame de ingresso para a
disciplina de Literaturas Hispano-americanas e, com a sempre atenta e segura orientação
da Professora Bella, prosseguir em meu trabalho de pesquisa da obra de Ocampo.
Inicialmente tive que estudar o que se entendia por autobiografia e, o que
parecia, a princípio, evidente, ou seja, que uma autobiografia fosse a biografia de
alguém feita pela própria pessoa, fez com que eu mergulhasse numa problemática de
grande alcance, tendo sido direcionada, em conseqüência, ao estudo do problema da
memória e daí ao estudo da língua e da linguagem humanas.
Dividi minha análise em quatro partes: 1. A dimensão autobiografia; 2. A
importância da memória; 3. A condição do gênero; e, finalmente, 4. O problema da
linguagem e a língua materna de escritores bilíngües. Nesse percurso tentarei
demonstrar como Victoria Ocampo constrói seu eu narrador no decorrer de sua obra.
.
I N D I C E
1. INTRODUÇÃO 14
2. APRESENTAÇÃO DE VICTORIA OCAMPO 20
2.1 Dados biográficos 20
2.2 A produção literária de Victoria Ocampo 24
3. A LITERATURA AUTOBIOGRÁFICA 30
3.1 Conceito de literatura autobiográfica 30
3.2 Etapas da crítica literária referentes ao gênero autobiográfico 33
3.3 A autobiografia como confissão 34
3.3.1 Memórias 35
3.3.2 Diários 35
3.3.3 Cartas 36
3.4 Desenvolvimento da literatura autobiográfica na Argentina 37
3.5 A chamada autoficção 37
4. A LITERATURA DO EU EM VICTORIA OCAMPO 41
4.1 Configuração do eu: a representação de si 41
4.2 Instâncias de legitimação: a torre de Babel 45
4.3 Autobiografia: pacto de verdade? 55
4.4 Crítica e castigo 57
4.5 Poética da Autobiografía de Victoria Ocampo 59
5. UMA MEMÓRIA HÍBRIDA 63
5.1. Memória e tradição 65
5.2. A transgressão do cânone 84
5.3. O lugar marginal 87
5.4. A casa própria 90
5.5 As casas como fundadoras da escritura 94
6. A CONDIÇÃO DO GÊNERO 99
6.1 Uma escrita de mulher: o erotismo do olhar 103
6.2 O corpo inscrito no texto 109
6.3 Entre subjetividade e experiência 109
7. LINGUAGEM-A IMPORTÂNCIA DA LÍNGUA 119
7.1 Tradução e bilingüismo 121
7.2 Nossa lengua – como aprendemos a falar 125
7.3 Problemas de tradução de um autor bilíngüe 129
8. C O N C L U S Ã O
1349 . B I B L I O G R A F I A
139SIGLAS UTILIZADAS PARA CITAR OBRAS DE VICTORIA
OCAMPO
AUT. I Autobiografía I. El archipiélago.
AUT. II Autobiografía II. Imperio insular.
AUT. III Autobiografía III. La rama de Salzburgo.
AUT. IV Autobiografía IV. Viraje.
AUT. V Autobiografía V. Figuras simbólicas. Medida de Francia.
AUT. VI Autobiografía VI. Sur y Cia.
COR Correspondência Victoria Ocampo-Roger Caillois.
FB De Francesca a Beatrice
T. 1 Testimonios. Primera serie.
T. II Testimonios. Segunda serie.
T. III Testimonios. Tercera serie
SS Soledad sonora. (Testimonios. Cuarta serie)
T. V Testimonios. Quinta serie.
T.VI Testimonios. Sexta serie.
T. VII Testimonios. Séptima serie.
T. VIII Testimonios. Oitava serie.
T. IX Testimonios. Novena serie.
T. X Testimonios. Décima serie.
TAG. Tagore en las Barrancas de San Isidro.
VWD Virginia Woolf en su diario.
Os números de páginas citados da Autobiografía de Victoria Ocampo pertencem às Edições Fundación Victoria Ocampo de 2003.
Uno no puede sentarse a escribir sobre si mismo sin que reclamen su atención preguntas teóricas de lo más aburridas. En primer lugar, nuestra vieja amiga, la Verdad. La verdad… ¿ Cuánta verdad contar? Parece comúmente admitido que este es el primer problema del cronista de sí mismo, y en cualquier caso le espera la deshonra.
Doris Lessing. Dentro de mí. P. 24
Decir la verdad o no decirla, y en qué medida, es un problema menor que el de las perspectivas cambiantes, puesto que uno va variando la percepción según la etapa en que se encuentre, como se escala una montaña y el paisaje cambia a cada recodo del sendero. Si yo hubiera escrito esto a los treinta años, habría sido un documento bastante combativo. A mis cuarenta, un quejido de desesperación y culpabilidad: ¡Dios mío! ¿Cómo pude haber hecho esto o aquello? ahora vuelvo la vista atrás y observo a aquella niña, a aquella muchacha, a aquella mujer joven, con una curiosidad cada vez más imparcial. Es frecuente ver a los viejos fisgoneando en sus pasados. ¿Por qué?- se preguntan -. ¿Cómo sucedió esto?” Intento ver mis yoes del pasado como podría hacerlo otra persona, me convierto en esa otra persona, y al momento me veo inmersa en una ardiente batalla de emociones, justificadas por pensamientos e ideas que ahora juzgo erróneos.
Doris Lessing. Dentro de mí. P.25.
RESUMO
Este trabalho pretende estudar a relação entre
identidade e destino na Autobiografia de
Victoria Ocampo analisando-a sob quatro
aspectos principais: como autobiografia,
como memória, como gênero e como
linguagem, tentando provar que a escritora
atinge a meta pretendida que era a de
justificar sua vida e de bem escrever
empregando uma escrita feminina.
ABSTRACT
This paper intends to study the relation
between identity and destiny in the Victoria
Ocampo’s Autobiography and make a
analyze under four main aspects: as
autobiography, as memoire, as genre and as
language, and essay to prove that the writer
reaches intended goal, which was to justify
and offer society a more female-inspired
approach in literature.
NOTA :
A autobiografia propõe uma interpretação global da vida constituindo uma
tentativa do ser humano para entrar na posse de si mesmo. Mais do que um inventário
dos diversos aspectos de uma existência, é uma contínua e apaixonante busca de seu eu.
Tomando como base de referência o quadro geral da crise dos paradigmas
explicativos da realidade que colocou na ordem do dia a discussão sobre o estatuto do
saber científico no âmbito das ciências humanas, entendemos como superadas as
divisões entre o real e o não real, ou entre a objetividade do mundo real e a
subjetividade das construções imaginárias, segundo pensa Roger Chartier (ver A
história cultural: entre práticas e representações. Lisboa. Difel. 1990).
A clássica maneira de ser da história – construção de um saber com estatuto de
ciência e objetivando a verdade – é substituída por outra, na qual as fontes,
matéria-prima da história, são consideradas “indiciárias” daquilo que poderia ter sido e com as
quais o historiador constrói sua versão. Neste caso, a história se reveste de uma função
de criação, ao selecionar documentos, compor um enredo, desvendar uma intriga,
recuperar significados.
Estaríamos, pois, diante da presença da ficcionalidade no domínio do discurso
histórico, assim como da imaginação na tarefa do historiador. Não há dúvida de que o
critério de veracidade não foi abandonado pela história, assim como também seu
método impõe limites ao componente imaginário. O historiador continua tendo
compromisso com as evidências na sua tarefa de reconstruir o real, e seu trabalho sofre
o crivo da testagem e da comprovação, mas a leitura que faz de uma época é um olhar
entre outros tantos os possíveis.
A tarefa do historiador contemporâneo seria a de construir uma representação
plausível a partir das representações feitas, compondo a sua versão sobre os fatos.
Decorre daí que o seu discurso se configura como uma possibilidade combinatória de
elementos. A história só se realiza no campo da representação, tanto de quem participou
dos eventos do passado e deles deixou um registro, quanto de quem, no presente, busca
recuperar aquelas fontes e delas fazer uma releitura plausível e convincente do passado.
Portanto, sob este enfoque, o mais condizente com o propósito de uma nova história
cultural seria substituir o critério de veracidade pelo de verossimilhança.
No processo da autobiografia opera-se um duplo deslocamento (do sujeito e da
temporalidade) em três etapas: o eu que narra (presente da narração), o eu narrado
(passado da narrativa) e o eu que se busca (futuro utópico). É precisamente o estilo e as técnicas narrativas a ele associadas que irá constituir o elemento que opera tal
desdobramento.
Estudando em paralelo os dois pontos mais importantes e difíceis da complexa
problemática da literatura autobiográfica, ou seja, o estatuto do eu e a questão do
sentido dos acontecimentos vividos, verifica-se que a construção do eu dá-se
paralelamente à construção do sentido dos acontecimentos, ou, em outras palavras, a
construção do eu é correlativa à construção de um destino pessoal.
Cito Philippe Derivière :
Il semble alors que le récit autobiographique se trouve confronté au même dilemme que le récit de fiction. : d’un côté, il lui faut reconnaître que les épisodes de vie qu’il raconte lui sont partiellement inaccessibles parce que leur enchaînement reste inexplicable ; de l’autre, il ne peut accepter cette distance entre son sujet et lui-même, au risque de devoir y renoncer. L’autobiographie doit donc inventer une histoire qui puisse combler ces lacunes, recréer un ordre capable de donner l’apparence d’une necessité, mais seulement l’apparence. Mais, dès ce moment, elle fait subir à la vie prétendument vécue, une transformation qui est celle de l’imaginaire : In : Julien Green. Les chemins de l’errance [S.I.] Talus d’approche, 1994. (P.13)
A correlação entre eu e destino pode ser expressa através de duas perguntas fundamentais, que presidem a todo projeto autobiográfico: “quem sou eu” e “como
construir minha identidade”.
AUTOBIOGRAFIA – MEMÓRIA – LINGUAGEM – FEMINISMO – HISTÓRIA
- IDENTIDADE
1 INTRODUÇÃO
Nesta tese pretendo estudar os traços gerais da literatura autobiográfica, ou seja,
da literatura centrada no eu, considerada egotista, com o intuito de provar de que modo
a obra de Victoria Ocampo, se adequa inteiramente a ela, tanto sob o aspecto de
memória, quanto de gênero e de linguagem.
O leitor é um dos componentes morfo-sintáticos mais importantes na escritura
autobiográfica concebida como o resultado de um contrato ou pacto subscrito pelo
autor, de modo que é importante analisar a função que exerce a memória numa escritura
que, tendo a vida passada como referente, se define por seu caráter retrospectivo
complementado com a ação introspectiva característica que apresentam os textos
autobiográficos, por ter o autor fixado seu olhar e sua análise em si mesmo.
Entre os traços semânticos que se atribui à autobiografia encontram-se
sucintamente enumerados: a referencialidade extratextual, o conceito do eu, a existência
de um nome próprio, o narcisismo, a prática do exame de consciência, a
consubstanciação de um projeto de vida como continuum que identifica cada ser humano em suas expectativas e em suas eleições livremente concebidas, a sinceridade, a
intimidade, o papel representado pela escritura ou verbalização das experiências e
sentimentos, o caráter testemunhal e documental a que aspiram estas narrações, o
desdobramento, estranhamento ou alienação que se produz no sujeito que se analisa e,
como caracteres complementares entre si, a alteridade ou outredade com que o eu
presente relata o eu passado, e a identidade existente entre ambos.
Destaca-se aqui uma série de elementos que permitem reconhecer este texto
como sendo autobiográfico tendo o eu como objeto de estudo, contendo o nome próprio
da autora em sinal do pacto subscrito entre ela e seu leitor tudo isso baseado na
sinceridade e na afirmação da veracidade dos fatos. Além desses elementos encontra-se
vinculada à esta produção autobiográfica: o exame de consciência, os traços narcísicos,
que esta autoanálise pode propiciar, e o tempo presente e passado.
A literatura autobiográfica, além de ser sincera é íntima e se concebe como
testemunho de uma vida, tendo entre seus caracteres essenciais o papel que representa o
processo da escritura no re-descobrimento pessoal do autor, e o desdobramento que se
produz nele quando se expõe como objeto de sua própria narração, tratando-se como um
outro, pondo em jogo os conceitos de outredade ou alteridade e identidade que se
correlacionam com a problemática da literatura autobiográfica como elementos
essenciais de sua definição.
A importância de Victoria Ocampo nas letras argentinas e latino-americanas
surpreende pelos numerosos estudos que suscita e pela variedade de imagens evocadas
por seus críticos, tais como Sylvia Molloy, Maria Esther Vazquez, Noé Jitrik, entre
outros. Uns recordam a impressão de autoridade e elegância que a autora impunha,
outras opiniões ressaltam sua generosidade de mecenas e seu trabalho como diretora da
revista Sur, e outros, ainda, a consideram como uma legítima representante da oligarquia portenha, seduzida pelas criações da arte e pensamentos europeus.
Todos concordam, porém, em reconhecer a impossibilidade de ficarem
indiferentes diante de sua presença ou da menção de seu nome.
Se certas apreciações se dirigem à detentora do poder e da influência, elas visam
seu cosmopolitismo, considerado condição da cultura argentina e latino-americana
diante das forâneas.
Poucas autoras argentinas sofreram as simplificações estimativas de todo
o tipo como Victoria Ocampo. Foram vários os anátemas que alguns críticos
contemporâneos, y compris Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares, lhe deram
tratando-a de “oligarca”, “classista”, “estrangeirizante” e “europeizante”. Estas opiniões
podem ser compreendidas sob o ponto de vista das ideologias, como o nacionalismo
estreito ou a esquerda reducionista, que se chocam com esquemas premoldados para
construir o pensamento e interpretar a realidade, com a índole ímpar e única desta
mulher excepcional.
As abordagens da obra escrita de Victoria Ocampo são, rigorosamente, escassas.
Os trabalhos de tipo biográfico constituem a maior parte e sua literatura serviu,
basicamente, para iluminar caracteres e atitudes da protagonista. Isto se explica, em
razão de sua personalidade avassaladora. Os mais exitosos momentos de sua vida
articulam-se aos marcos dos momentos culturais e sociais vividos por seu país e pelo
mundo, como bem notou María Esther Vázquez.
Um outro setor da crítica ideológica ocupou-se, ainda, de desqualificá-la como
foi o caso de Angel Estrada e Paul Groussac considerando-a uma diletante em sua
acepção mais simples de alguém que gira em torno de temas diversos com a ligeireza de
uma aristocrata ociosa.
A escritura de Ocampo destrói a univocidade que a crítica da época lhe assinala
como ser social – a poderosa, a oligarca - criando um personagem múltiplo, irredutível a
uma única função que, entre outras coisas, propõe uma visão crítica da sociedade
argentina, principalmente dos anos 20, 30 e 40, sobretudo no que concerne à situação da
mulher.
O silêncio sobre sua escritura resulta eloqüente: tenta-se abolir, confiando-os à
não existência, os questionamentos oriundos tanto da autoridade quanto da linguagem
sobre os quais ela se apóia.
Se a ela é permitido o poder da palavra escrita – como dona da Revista e da
Editorial Sur, órgão de difusão importante – este lhe é contestado pelos críticos que possuem a voz de mando no sistema de produção literária. Alguns, entretanto,
estudaram os textos de Ocampo com seriedade: Blas Matamoro e Adolfo Obieta que
reconhecem a importância das memórias, mas suas leituras se mantêm na esfera do
biográfico; Rosalie Sitman aborda sua luta como editora da revista Sur e Maria Esther
Vazquez seu cosmopolitismo, mas, até onde pude investigar, nenhum estudo reconheceu a leitura “diferente“ feita por Ocampo dos textos tradicionais.
Conceitos de unidade e correspondência chocam-se contra a escritura de
Ocampo na qual, como em grande parte de toda escritura, o eu é resultado da
incorporação das imagens que os outros têm dela. A origem de sua escritura e do seu eu
escrito que figuram em sua obra é complexa e refratária: “o outro” plural está em sua
base.
Decidir entre um eu extratextual gerador do texto e um eu resultante criado, unicamente, por textos, conduz a posições extremas que desfiguram o gênero.
Atualmente, já que a obra de Ocampo encontra-se publicada em sua totalidade,
reconhece-se que toda ela converge para a narração de uma vida.
O ato persistente de escrevê-la reforça sua disseminação: que diversas
publicações se reúnam sob o título de Testimonios e que a elas se acrescente um título
geral de Autobiografia demonstra a pluralidade do eu e sua constituição numa grande
variedade de imagens.
A totalidade da obra da autora é uma busca constante de si mesma, de
auto-revelação, pois, Vitória Ocampo, inteligente e excepcional teve como meta abrir portas
para a cultura de seu país e de seu tempo.
A diversidade de enfoques torna necessário começar a presente tese com uma
breve apresentação da vida e da obra de Victoria Ocampo, acompanhada da crítica e de
estudos da maior relevância para sua figura. Somente a partir daí é possível colocar-se
em melhores condições para apreciar a raiz anímica da escritura de Ocampo.
Pretendo fazer aqui uma leitura da Autobiografia de Victoria Ocampo com ênfase especial à sua escritura, utilizando seus Testimonios na medida em que eles esclarecerem ou ampliarem alguns dos aspectos estudados.
Por que escreve Victoria Ocampo? O que a motivou a fazê-lo em um gênero no
qual o discurso do eu é o tópico fundamental? Para responder a tais perguntas foi necessário traçar previamente as principais linhas da crítica literária em torno do
chamado gênero autobiográfico. Encontra-se aí uma dificuldade em enquadrar Ocampo
em uma corrente particular. Seus escritos, assim como sua figura, resistem a uma
tipificação concreta. No entanto, o percurso de uma bibliografia específica sobre o
autobiográfico permitiu-me determinar o conjunto de noções sobre as que se articulam
os discursos do eu.
Para completar este marco de referência considerei útil assinalar um panorama
histórico no qual apresento os principais autores argentinos – homens e mulheres – que
escreveram obras de gênero autobiográfico. A partir daí é que se poderá melhor apreciar
de que modo se articulam esses conceitos eixo nos escritos de Victoria Ocampo.
A obra de Ocampo será considerada aqui como uma espécie de colagem que
elabora um eu textual, em cujo processo entra uma grande variedade de leituras e escrituras, de modo que o sujeito, longe de apresentar-se como a origem única e unívoca
de sua obra, acaba sendo seu resultado. A pluralidade criada no texto reflete e traduz o
eu por metáforas que multiplicam o efeito de especularidade: a mise en abîme,
refratando sempre o eu em uma nova imagem, constitui a técnica preferida por Ocampo.
Os ensaios de seus Testimonios incluem crítica literária, narrações de lembranças
pessoais, queixas de ordem quotidiana, temas esses chegando, por vezes, a combinar-se
num mesmo ensaio.
Cada página de Victoria Ocampo é uma irrupção simultânea em diversos
domínios nos quais se entrelaçam literatura e arte, a realidade mais imediata e o viver
cotidiano. Cada artigo seu é um ato de fala confidencial e desafiador, fruto de um
impulso criador que a faz dirigir-se a seu leitor-interlocutor para solicitar-lhe a opinião e
exigir-lhe uma resposta imediata, por meio de interrogações urgentes.
Como o fio condutor que atravessa toda a obra de Ocampo é a insistente
presença do eu da narradora, considerei importante utilizar o termo de literatura egotista, como sinônimo de literatura autobiográfica ou intimista. Escolhi esta expressão
por achar que ela se adapta melhor aos textos de Ocampo, nos quais se destaca um forte
predomínio do eu. Neles se descobre uma especial apropriação dos discursos
referidos, de tal forma que se pode mesmo ver certa poética peculiar que vai desde a
forma pela qual a autora lê as obras literárias até a maneira como escreve uma carta.
A obstinação desse eu, que elimina distâncias entre autora e leitor, fixou a atenção dos críticos na figura de Victoria Ocampo levando-os a esquecer que os méritos
de sua escritura se radicam menos em sua revelação que na construção de um eu textual.
Fiel a seu propósito de ser testemunha, Victoria Ocampo considera seus escritos
como documentos e sem pretender negar as diferenças existentes entre as distintas
formas genéricas adotadas por seus textos, constata-se uma raiz espiritual comum como
sendo origem de todos eles, a qual se caracteriza por uma busca constante que se
desenvolve em diferentes níveis vitais, ou seja, busca por criar laços com outras culturas
a partir de sua origem argentina e uma outra busca mais profunda que tenta decifrar o
mais íntimo de si mesma.
Nos Testimonios verifica-se o princípio de unidade subjacente nessa obra, desde
os rasgos mais formais até a unidade de perspectiva e temática.
Na Autobiografia a autora elabora uma estrutura comum em seus seis volumes. A intenção autobiográfica de Ocampo, o uso do tempo como elemento configurador do
texto e o papel que representa a memória, vão dando unidade a quanto escreve. O eixo
temático de sua Autobiografia e o papel que representa o amor em sua vida, explicam a
seleção das lembranças sobre as quais se articula o relato. Uma análise detida do texto
permite observar a evolução e o desenvolvimento desse amor em cada um dos volumes
que constituem a obra. Dessa criação e da análise do processo empregado emerge um
eu múltiplo, composto de linguagens diversas e de metáforas literárias.
As teorias sobre autobiografia assumem que a linguagem é, ideologicamente,
neutra, donde a dificuldade de incluir uma voz marginal em uma linguagem que supõe
um sujeito masculino. Desse modo, há uma grande dificuldade em estudar o problema
lingüístico que se enfrenta, ou seja, como escrever histórias de mulheres com uma
linguagem tradicionalmente dominada por homens, sem experimentar uma alienação?
As teorias feministas que abordam as diferenças textuais e sexuais formulam
princípios aplicáveis aos textos de Ocampo. As definições normativas não logram
explicar textos de mulheres que, em geral, ficam fora dos limites da cultura dominante.
A experiência da marginalidade da mulher faz com que ela tenha uma maior
consciência da outridade do que os homens. A autobiografia feminina demonstra como
o eu e sua imagem não coincidem na linguagem.
Uma autobiografia revela rupturas espaciais e temporais entre a matéria e o
modo do discurso o que faz com que o projeto autobiográfico possa ser visto como uma
ficção. Tomando como ponto de partida o stade du miroir formulado por Jacques Lacan, a idéia do eu seria uma ficção cuja falsa unidade metamorforizaria um sujeito em discórdia consigo mesmo.
Um jogo de figuração e de desfiguração é o que este estudo se propõe a
examinar fazendo sempre referência ao personagem histórico de Victoria Ocampo. Não
se trata, porém, de provar se a autora foi ou não foi como o personagem que criou, mas
sim estudar e observar como ela o criou.
O segundo capítulo consistirá numa rápida apresentação da autora com seus
dados biográficos e sua produção literária, para colocar o leitor a par de sua vida e obra.
O terceiro capítulo estuda a dimensão autobiográfica, isto é, os problemas
relacionados com o que seria uma autobiografia, numa rápida visão panorâmica de seu
conceito através dos tempos.
O quarto capítulo contará com a aplicação dos conceitos mencionados no
capítulo anterior adaptados à escritura de Victoria Ocampo, focando sobremodo a
maneira como ela os “fagocita” apropriandos-se deles.
O quinto capítulo tratará do papel da memória e da tradição na construção do
texto. O sujeito é definido por fragmentos plurais que provenientes de fontes diversas.
O sexto se fixa sobre a condição do gênero em uma busca dupla por parte do
sujeito que, ao mesmo tempo, precisa assegurar sua autonomia e conseguir uma
linguagem adequada a sua representação. A necessidade de conseguir um espaço
lingüístico próprio é sugerida pela ansiedade do personagem em conseguir uma casa
que lhe pertença e expresse seu modo de ser. Será, também, analisado o choque entre os
discursos que a sociedade e o personagem elaboram em torno do corpo feminino.
Ocampo rechaça certas interpretações como sendo equivocadas e cria outras, novas, que
permitem que se estabeleçam relações lingüísticas semelhantes às da sedução.
O sétimo capítulo tratará dos problemas da linguagem onde será abordado o
problema do bilingüismo de Victoria Ocampo e de que modo ele influenciou sua
escritura.
Finalmente a conclusão irá estabelecer quais as estratégias textuais e percepções
do eu que modelam os textos autobiográficos de Victoria Ocampo e tecem a figura de
um eu dilacerado e em permanente busca de si mesmo.
2 APRESENTACÃO DE VICTORIA OCAMPO
2.1. Dados biográficos de Victoria Ocampo
Victoria Ocampo, a primeira de seis irmãs, nasce em 7 de abril de 1890 no seio
de uma das famílias mais ricas e poderosas da Argentina. A ela se seguirá Angélica
(1891), sua irmã preferida, vindo, depois, Francisca [Pancha] (1894), Rosa (1896),
Clara (1898) e, finalmente, Silvina (1903) também escritora e que virá a ser esposa de
Bioy Casares.
A infância dessas meninas transcorre feliz, rodeada de pais amorosos embora
severos e várias tias. Como era de hábito na época, as filhas do casal Ocampo recebem
uma educação esmerada por meio de professoras particulares.
Mademoiselle Alexandrine Bonnemason lhes ensinou literatura, história, religião
e matemática em francês transmitindo-lhes a cultura francesa. Para a língua inglesa
tiveram como preceptora Miss Kate Ellis, que lhes ensinará a amar a vida e a cultura
inglesas. Miss Krauss, dinamarquesa, lhe ministrou lições de piano e de música.
A família de Ocampo passa longos períodos em Paris. Aos 17 anos, durante uma
das estadias de sua família na França, Victoria assistirá a aulas de Henri Bergson no
Collège de France e, na, Sorbonne, aulas de Freud. Nessa época, a jovem descobrirá
maravilhada Santo Agostinho, Nietzsche e Schopenhauer, entre outros.
De volta a Buenos Aires, morre sua irmã Clara de diabetes infantil após uma
curta enfermidade. A lembrança desse acontecimento a marcará profundamente.
Embora Victoria Ocampo tenha tudo, por assim dizer, posição, carinho, nobreza,
as convenções da época fazem com que ela não possa realizar a vocação que sente de
ser atriz de teatro. Com esforço consegue autorização do pai para assistir, em Buenos
Aires, cursos de dicção de Marguerite Moreno, mas sob a condição imposta por ele de
só representar o que aprendera dentro do âmbito familiar.
Também não lhe foi permitido um conhecimento maior com aquele que viria a
ser seu futuro marido e, depois de um curto período de noivado, se casará, em
novembro de 1912, aos 22 anos, com Bernardo de Estrada, (Mônaco, como ela irá
chamá-lo). Em Dezembro do ano seguinte o jovem casal viajará à Europa. Durante esta
viagem, em fevereiro de 1913, Victoria conhece Julián Martinez, que se converterá no
grande amor de sua vida e cujo relacionamento durará quase 14 anos.
As incipientes dificuldades do casal Estrada em seus começos rapidamente
tornar-se-am obstáculos intransponíveis. Ao se instalarem na ampla casa da Calle Tucumán, cada um dos cônjuges já ocupa quartos separados. Face às convenções sociais da época, um divórcio seria impossível.
Essa primeira etapa da vida de Victoria Ocampo coincide com um período de
profundas transformações na Argentina e no mundo com grande progresso industrial e
grande expansão dos negócios na esfera internacional.
Durante as primeiras décadas do século XX a Argentina será conhecida
mundialmente como um grande país agro exportador. Os produtos do campo argentino
são famosos nos mercados europeus. Politicamente, uns poucos cidadãos detêm o poder
mediante um regime de controle político e institucional, ou seja, oligárquico e
conservador. Socialmente o país recebe uma massiva imigração de milhares de pessoas
procedentes de diferentes países europeus, principalmente italianos, espanhóis,
franceses e alemães. A população argentina foi triplicada e a capacidade produtiva de
sua economia multiplicada nove vezes.
Porém, paralelamente, tal desenvolvimento e modernização foram
acompanhados por numerosos conflitos sociais. Frente à classe patrícia dominante, em
todo o período prévio (1810-1880), se desenvolveu uma nascente burguesia formada a
partir dessa imigração. Houve crescimento da classe média e a classe trabalhadora
adquiriu uma grande força, sobretudo pela influência dos imigrantes italianos, muito
politizados, em virtude da convivência com o positivismo de Augusto Comte e da
importância sindical na Itália.
Em poucos anos, o país transforma-se em uma mistura de raças. Campos e
cidades mudaram de fisionomia. Embora a rede ferroviária existisse desde 1850, na
década de 80 as inversões ferroviárias multiplicaram-se passando de uma extensão
inicial de 2.500 a 9.000 kilômetros. A rede ferroviária foi fundamental para fazer com
que a Argentina se convertesse num país exportador de cereais em grande escala. Um
dos engenheiros que mais tiveram relação com esse trabalho foi Manuel Ocampo,
engenheiro civil e pai de Victoria.
A urbanização foi um fenômeno paralelo ao do crescimento exportador. A velha
aldeia, Buenos Aires, [La gran Aldea, título do romance de Lúcio Vicente López] foi
aos poucos se convertendo numa metrópole moderna. Edifícios, ruas, praças, parques,
estações ferroviárias, correios, hospitais, escolas, foram desenhados sob a influência das
novas idéias e das novidades técnicas e estilos europeus. Nestes anos foram construídos,
entre outros, o Teatro Colón, em 1904; o edifício do Correo Central, o novo Colegio
Nacional de Buenos Aires e o Palácio da Justiça (Tribunales), em 1907.
Em 1909 terminou a construção da residência de Mercedes C. de Anchorena,
Palácio San Martin, atualmente sede da chancelaria Argentina da cidade de Buenos
Aires.
Essas transformações econômicas trouxeram também grandes mudanças na
sociedade argentina. Escritores da época lamentam que o progresso tenha sido
acompanhado de uma decadência dos costumes1.
Victoria Ocampo começou a escrever para o grande público quando as
circunstâncias de sua vida íntima se achavam em plena fermentação. Com um
casamento fracassado, cuja realidade ela esconde e vivendo um grande amor
apaixonado no qual encontrava, ao mesmo tempo felicidade e inquietações, ela inicia
sua carreira de escritora em busca de uma maneira de exorcizar seus fantasmas.
Em 4 de abril de 1920, Victoria Ocampo publica, em francês, seu primeiro texto
intitulado Babel, no jornal La Nación de Buenos Aires.
Por essa época, a difícil situação matrimonial da autora já havia ultrapassado o
limite do suportável e ela, então, decide morar sozinha num apartamento na Rua
Montevideo. Sua relação com Julián Martinez mantém-se sem chegar a ser formalizada;
sob sua influência e apoio, escreve e publica seu primeiro livro De Francesca a Beatrice, que ela dedica a Julián.
Nos textos que leu do Conde Hermann Von Keyserling, fundador da escola da
Sabedoria de Darmstadt, Victoria descobre uma inquietude que era a sua desde muito
jovem. O artista, especialmente se é dotado de sensibilidade, experimenta uma luta
interior frente à perfeição pela qual se sente atraído; não sabe o que deve priorizar; o
esforço da perfeição deverá ser colocado na própria pessoa ou na obra do artista? Este
será um eterno dilema para Ocampo.
No final dos anos 20 e início dos anos 30 produz-se uma grande mudança na
vida de Victoria Ocampo. A expressão utilizada para esse período é Viraje, título dado
ao quarto volume de sua Autobiografia. Ela constrói sua primeira casa em Mar del
Plata e estréia uma outra mais na Calle Rufino de Elizalde, no bairro de Palermo,
1 Cf. Rocchi, Fernando. El péndulo de la riqueza: la economia argentina em el período 1880-1916 em
Nueva historia argentina, tomo V. Buenos Aires, Sudamericana, 2000, pp. 15-67.
desenhada por Alejandro Bustillo [Hoje Centro Cultural pertencente ao Fondo Nacional de las Artes.]
Durante uma viagem à Europa, conhece destacadas personalidades do mundo
cultural europeu: Anna de Noailles, Gisèle Freud, Paul Valéry, Pierre Drieu La
Rochelle, em Paris e, em Londres, Bernard Shaw, Virginia Woolf. De regresso a
Buenos Aires, encontra-se pela primeira vez com Waldo Frank e, por intermédio dele,
Eduardo Mallea, que tanta importância tiveram na criação da revista Sur, de Ocampo.
A partir dos anos 30 o panorama argentino e mundial se desequilibra, deixando
atrás a época do crescimento e da estabilidade. Em 1930 termina a hegemonia política
radical com o golpe do general José Félix Uriburu. A revolução marcou o fim de uma
etapa e o começo de outra, dado que há uma quebra na continuidade institucional da
Argentina. O país também sofria as conseqüências da crise mundial em decorrência da
quebra da Bolsa de Nova York em 1929; surgem regimes totalitários igualmente na
Alemanha e na Itália.
Em 1930 morre o pai de Victoria fato que ela descreve com uma grande ternura
no último volume da Autobiografia. Neste mesmo ano, viaja à França onde conhece
Jean Cocteau, Jacques Lacan e Le Corbusier. Após alguns meses em Paris, embarca
para os Estados Unidos onde conhece Serge Eisenstein, ao qual propõe fazer um filme
sobre a Argentina. Infelizmente o projeto não teve êxito por falta de apoio de sua terra
natal..
De regresso a Buenos Aires, Victoria Ocampo, funda a revista Sur. Em 1933,
funda também a Editora de mesmo nome.
Em 1934 viaja para a Europa onde é recebida, em Roma, por Benito Mussolini.
Percorre a Itália fazendo conferências em várias cidades. De retorno a Paris, encontra-se
com Virginia Woolf. A obra da escritora inglesa sugere interessantes reflexões a
Victoria Ocampo no que se refere ao papel da mulher.
De regresso à Argentina, representa Perséphone no Teatro Colón sob a regência
de Stravinsky, com grande sucesso.
Em 1938, num dia chuvoso de inverno, em sua residência de verão de San
Isidro, ao arrumar livros em sua estante, Victoria Ocampo encontra a obra completa de
Domingo Faustini Sarmiento. Lembra-se, então, de uma frase dita várias vezes por sua
mãe, falecida em 1935: ...el día del entierro de Sarmiento llovía... yo estaba en la ventana... ví pasar a tu padre… (T.II, 221). E havia sido assim que se conheceram os pais de Victoria.
Durante vários anos seguidos viaja à Europa e, em 1946, ano seguinte ao que se
suicidou Drieu La Rochelle, assiste ao julgamento de Nuremberg como convidada
especial do governo francês, em reconhecimento à assistência que havia prestado a
vários escritores franceses durante a guerra.
Aos 62 anos, em 1952, Victoria começa a escrever sua Autobiografia, obra que
revisará frequentemente até o fim de sua vida e com a indicação de que só fosse
publicada após sua morte.
Durante o primeiro governo do general Perón, em 8 de maio de 1953, Victoria é
feita encarcerada na prisão El Buen Pastor, numa cela junto com outras presas comuns.
Durante sua prisão, ela encanta as presas declamando vários trechos de obras clássicas
que sabe de cor.
Muitos intelectuais argentinos e estrangeiros, entre eles Gabriela Mistral e
Jawaharial Nehru, intercederam por ela junto ao Presidente Perón, que assina sua
libertação no dia 2 de junho.
Em 1963, durante uma nova viagem a Paris, a escritora sente, pela primeira vez,
uma dor surda na boca indicando o começo de sua enfermidade. Diagnosticado o câncer
Victoria é operada em Buenos Aires, indo depois aos Estados Unidos para continuar o
tratamento. Em Nova York, encontra-se com Doris Meyer que estava escrevendo sua
tese de doutorado sobre a escritora, e lhe concedendo uma entrevista.
Em 1971, depois de publicar na revista Sur um número dedicado à mulher, a
escritora deixa de sair regularmente. Dois anos depois Villa Victoria, residência de
verão de Ocampo em Mar del Plata, sofre um incêndio que destrói alguns quartos do
imóvel.
Em 1977 ingressa na Academia de Letras da Argentina onde ocupa a cadeira
Juan Bautista Alberdi. Foi a primeira mulher a ocupar tal posto.
Victoria Ocampo falece em sua casa de Villa Ocampo no dia 27 de janeiro de
1979. A escritora fez doação de suas duas casas, Villa Victoria e Villa Ocampo, a
UNESCO.
2.2 A produção literária de Victoria Ocampo
.
A obra de Victoria Ocampo pode ser classificada como segue:
Incursões teatrais:
La laguna de los nenúfares, que Ortega y Gasset publicou sem autorização da autora, em sua revista de Occidente, em 1926.
Habla el algarrobo uma peça com son et lumière que tem como cenário a velha Quinta Puyrredón, com vista do rio, onde se ouvem as vozes de todos os que viveram
nela e, também, a do velho algarrobo por uma recitante. Ocampo narra o que ocorreu lá,
desde a época de Juan de Garay, até o momento em que a quinta é declarada
monumento nacional.
Cartas:
Dirigidas às mais diversas personalidades e a suas irmãs, sendo que a maioria
ainda não foi publicada. Consegui obter a correspondência que Ocampo manteve com
Roger Caillois e com Ernest Ansermet assim como suas Cartas à Angélica. Segundo
consta do jornal La Nación, de 01/03/2009, a Editorial Sur pretende publicar até abril
deste ano as cartas que Victoria escreveu a suas irmãs Pancha e Angélica Ocampo, num
livro de 350 páginas.
Autobiografia - obra em seis volumes, com caráter confessional e esclarecimentos sobre si mesma.
Testimonios, obra que admite uma classificação variada, pode ser vista como:
a. Testimonios-nota contendo impressões de um momento, como, por exemplo,
sua ida a Nuremberg e um vôo que fez a Nova Iorque.
b. Testimonios-crônica onde descreve com fino humor, características e
costumes da época, como em que descreve pérgolas, bancos, faróis das praças de
Buenos Aires, entre outras.
c. Testimonios-conferências que fez em diversas ocasiões tais como Historia de
mi amistad com libros franceses, lecturas de Infância, etc.
d. Testimonios-crítica sob diversos temas: literatura, música, cinema,
paisagismo, etc.
Ensayos:
Cuja característica principal é a de estar dirigido ao leitor: El viajero y uma de
sus sombras, Keyserling en mis memórias, Virgina Woolf en su diário, Tagore em lãs Barrancas de San Isidro, De Francesca a Beatrice, La Belle y sus enamorados.
Traduções:
Além de seus escritos, Victoria Ocampo foi, também, uma tradutora emérita
tendo traduzido e publicado várias obras de escritores famosos tais como Paul Claudel,
Vita Sackville West, e
Calígula de Albert Camus
Gigi de Colete
Os demônios de Dostoievsky
O quarto em que se vive, Quem perde ganha, O amante complacente, A volta de A.J. Raffles e Talhando uma estátua de Graham Greene.
O troquel de T.E. Lawrence
Minha vida é minha mensagem do Mahatma Gandhi
Antologia de Jawaharlar Nehru com prefácio e prólogo.
Artigos:
Publicados em revistas e jornais reunidos, posteriormente, em forma de livros
sob o nome genérico de Testimonios, constituem um esclarecimento do eu narrador que
figura neles.
Escritos por Ocampo no decorrer de sua vida, isto é, desde os anos 20 até sua
morte, eles abarcam preocupações heteróclitas que vão da crítica literária a
acontecimentos quotidianos; todos eles, porém, têm como denominador comum a
presença de um eu que indaga, analisa e emite juízos de valor. O propósito que enuncia
em um de seus primeiros escritos é o de indagar o eu para desenmascararlo como único
medio de evadirme de su dominio y de entrar en L’Amor que muove il sole e l’altre stelle (FB, 10) e pode estender-se a toda a sua obra.
Evadir-se do eu supõe, necessariamente, o desdobramento da narradora, que
observa fora de seu personagem, o lê e, finalmente, cria para ele uma linguagem que
fixa em sua escritura. Esse processo é comum a todos os escritos de Ocampo, que cria
um eu e, ao mesmo tempo, especula sobre o ato de escrevê-lo. Uma de suas grandes
preocupações é a de conseguir, no texto, um estilo apropriado discutindo a questão
fundamental de como dar uma forma ao sujeito autobiográfico, de como constituí-lo
através da palavra escrita.
O projeto inicial da autobiografia de revelar o sujeito confunde-se com a busca
de um estilo, de uma escritura própria. A pergunta: “O que sou eu?” é inseparável de
outra: “como conseguirei escrever esse eu?”
Victoria Ocampo alude, em várias ocasiões, ao problema de como transferir para
a escritura esse “algo” que pertence ao âmbito do real:
“ Ese algo sigue siendo difícil de expresar. La piedra preciosa existe. Yo no soy dueña de ella sino depositaría momentánea. Pero la piedra está cubierta de ganga y probablemente (ya puedo decir seguramente) nunca conseguiré limpiarla para que brille. No me desespera este destino. Sé que la piedra preciosa está ahí y que la ganga que la recubre no prevalecerá. Lo que solo prevalecerá, en mi caso…” (AUT. III, 79)
A metáfora acrescenta uma camada mais de ganga e ilustra o desajuste irreconciliável entre significante e significado. A pedra preciosa, a verdade
pré-lingüística, uma vez mediatizada pela linguagem, torna-se escorregadia e inatingível.
Como se poderia, então, escrever? Como se poderia contar? Nesse trabalho forçado, a
autora se utiliza como modelos aqueles textos que se referem aos mesmos temas que lhe
interessam.
Para Ocampo, a leitura tem uma grande relevância e incide, diretamente, sobre o
processo da escritura; seus textos estão sempre colados a outros, anteriores, e
constituem uma versão a mais, formando uma enorme cadeia de obras literárias da
literatura universal.
A autobiografia põe em jogo a criação de um eu que combina leituras de textos
alheios e próprios, ensaios publicados nos Testimoniose cartas recebidas que servem de
base a acontecimentos gravados na memória como uma espécie de fragmentos.
Realidade e memórias passam sempre pela linguagem fazendo com que a elaboração
textual inclua uma constante tarefa de leitura-tradução.
A autobiografia demonstra que o eu-autor deixa de ser origem do texto; sugere,
ao contrário, ter sua origem em um complexo tecido textual, no qual o sujeito
autobiográfico espelha e deforma outros eus.
O trabalho de traduzir textos alheios para incorporá-los numa linguagem própria
é acompanhado por uma adulteração. Digna herdeira dos pedreiros da torre de Babel,
dos quais se considera uma descendente, Ocampo constrói com fragmentos de textos
um edifício completo que deve ser visto como uma única leitura verdadeira.
Desse modo, a disjuntiva teórica do gênero autobiográfico fica, assim,
apresentada ao leitor cabendo a ele decidir se esse texto pertence à variedade
documental, na qual se expõe uma verdade, ou se deverá ser considerado apenas como
ficção.
Ocampo, que praticava a forma epistolar para um círculo íntimo, toma
consciência desde muito cedo da função catártica da escritura, quando sua preceptora
inglesa, Miss Ellis, a denuncia a seus pais acusando-a de distrair sua irmã menor
durante a aula. Ocampo considera isso uma traição que clama vingança. A desproporção
entre os desejos infantis de vingança e o simples ato de escrever dá relevo ao episódio
da Autobiografia demonstrando, sobretudo, a enorme descarga que se consegue através da escritura:
Llena de indignación y de rabia...., no sabiendo cómo desquitarme, me pues a escribir. Escribí una protesta acusando a Miss Ellis de ser cobarde por “contarles” cosas a mis padres...; escribí que los ingleses eran cobardes porque querían aplastar a los pobres Boers; escribí que deseaba una completa victoria de los Boers en Africa; escribí que hacía votos por el aniquilamiento del Imperio Británico. Finalmente, señalé lo que habían hecho con Juana de Arco, seguramente por algunas cuantas morisquetas que les desagradaban. Descubrí que escribir era un alivio. (AUT. I, 83)
Esse procedimento lhe abre a possibilidade de recorrer à escritura nos momentos
de crise, quando há ruptura entre os códigos próprios e os alheios, constituindo para ela,
um prazer pessoal e secreto, pois esses textos que, sem ser propriamente dirigidos a
alguém em particular, lhe permitem dizer o indizível, ou seja, tudo aquilo que, se dito
em público, teria como conseqüência um castigo ou uma admoestação por parte de seus
pais.
O ato da escritura dá corpo a uma voz silenciosa que restabelece o equilíbrio
destruído por alguma injustiça. A reparação do dano, por outro lado, a converte numa
figura heróica, comparável à dos personagens que lê e admira.
3 A LITERATURA AUTOBIOGRÁFICA
3.1 Conceito de literatura autobiográfica
Antes de tentar uma definição do conceito da chamada literatura autobiográfica,
poder-se-ia afirmar que, em geral, toda a literatura seria de certo modo autobiográfica,
haja vista a afirmação de Gustave Flaubert quando diz: “Madame Bovary c’est moi”, ou
seja sua protagonista nada mais é do que uma projeção elaborada, transposta, alterada
de aspectos da própria dimensão interior da capacidade criativa do autor. O escritor,
dramaturgo ou romancista, elabora seus personagens a partir de sua própria matéria
subjetiva, de sua própria experiência do mundo, de suas leituras, enfim, de todas as suas
vivências.
A afirmação do eu lírico está presente em todo escrito humano, seja de forma
aberta ou não, de modo consciente ou inconsciente. Há um eu lírico em cada palavra de
um autor; Shakespeare encarna parte de sua realidade espiritual e de sua imaginação
pessoal tanto em Hamlet, quanto em Otelo ou no Rei Lear. Balzac está presente tanto no
Père Goriot quanto em Eugénie Grandet. Charles Baudelaire expressa este fato até no
título de uma de suas composições líricas Mon coeur mis à nu.
Victoria Ocampo adere a esta concepção chegando a afirmar que tanto Dante
quanto Montaigne eram la matière même de son livre. A aventura particular de Dante,
através de três mundos, três estados de alma, e três atitudes frente à condição humana, é
o que narra em seu poema de 15 mil versos La divina comedia.
Ahí está, de cuerpo entero, un cuerpo vivo, entre sombras, un cuerpo con su sangre y coyunturas. No se te ocurre ocultarse detrás del plural. Habla en primera persona. Los poetas no trabajan en equipo. Io, io, io, io!, desde el comienzo hasta el fin de la Comedia. (FB, 11-12)
Junto a formas veladas, mais ou menos escondidas, da presença do eu do autor
na escritura, veem se desenvolvendo, há décadas e de forma crescente, os estudos sobre
o gênero autobiográfico, como fruto de um interesse maior pelas escrituras do eu, que já
não mais é visto como algo odioso que deve permanecer oculto ou escondido, mas que
atrai, fascina e é objeto de reconstrução e de expressão através da escritura.
A atualidade do gênero pode ser explicada em parte pelo individualismo
característico do século XX, fruto, entre outras coisas, do desmoronamento das grandes
ideologias coletivas, do ceticismo do indivíduo e do desejo de introspecção, acentuado a
partir das teorias da psicanálise o que ser explicado como uma forma de autodefesa e de
testemunha da angústia provocada por uma civilização que ameaça com a
despersonalização.
Para ilustrar a grande atualidade da escritura de autobiografias, cito a
seguir o texto de Jorge Fernández Diaz, publicado no jornal La Nación, de 09 de maio
de 2009 :
“El Facundo de Sarmiento, em el siglo XIX, y “Soy Roca de Luna”, em el siglo XX, son dos biografías que a la vez pueden y deben ser leídas como dos novelas grandiosas. Pero luego están las biografias puras y duras, y dentro de ellas mas memorias, los diarios, los epistolarios y otras variaciones del simple pero a la vez complejo de contar una vida.
Lylton Strachey es reconocido por haber modernizado el género y por haberlo elevado a niveles extraordinarios. Strachey era un inglés que había estudiado en Cambridge y que se había vuelto un especialista en literatura francesa. Extravagante, sufriente, pacifista, homosexual, irónico y trágico, este gran escritor integró en 1907 el denominado Círculo de Bloomsbury. En ese barrio londinense que rodea el Museo Británico, tenía su casa la escritora Virgtinia Woolf, quien fue la figura aglutinadora de un grupo de intelectuales caracterizados por su severa mirada contra la moral victoriana y contra los dogmas sociales de la religión. Todos eran liberales y humanistas, irremiblemente individualistas y críticos, y admiradores de Gauguin, Van Gogh y Cézanne.
Strachey y Virginia Woolf compartían noches y tertulias con esa elite secreta donde estaban el economista John Keynes, los filósofos Ludwig Wittgenstein y Bertrand Russel, y los escritores Edgard Morgan y Catherine Mansfield, entre otras mentes brillantes.
También estaba con ellos Dora Carrington, una pintora extraordinaria que siempre estuvo enamorada de Strachey, y que a pesar de que él no pidío corresponderle por razones obvias, vivió con él hasta el final. Cuando el gran biógrafo murió por un cáncer de estómago, el 21 de enero de 1932, Carrington (Emma Thompson la interpretó en el cine) cayó en una profunda depresión y terminó pegándose un tiro.
La mayoría de las biografías de los miembros de Círculo de Bloomsbury son igualmente trágicas. Pagaron un alto precio por la liberdad sin prejuicios y por la creatividad sin límites. Sus biografías son herederas también del estilo de quien elevó la narración biográfica a la categoría de arte mayor.”2
A autobiografia como gênero caracteriza-se, também, por ser uma literatura
referencial de um eu existencial, assumido com maior ou menor nitidez pelo autor em
2
In: http://www.lanacion.com.ar/nota.asp?nota id=1124609
face de uma literatura ficcional em que o eu, sem referência específica, não é assumido concretamente por ninguém.
Sob o conceito de gênero autobiográfico são incluídas também outras formas
literárias com elementos comuns ou diferenciados, tais como: cartas, diários, memórias,
etc.
Philippe Lejeune é o autor de referência mais obrigatória devido à originalidade
de suas idéias e à variedade de temas que trata. Foi ele quem teve o maior empenho em
propor uma definição formal do gênero destacando a existência de um pacto
autobiográfico delimitador da fronteira entre autobiografia e ficção. Cito:
Relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, enfatizando sua vida individual e, em particular, a história de sua personalidade. 3
Esta definição tem a virtude de sintetizar e de dar uma resposta coerente ao
questionamento a que se propõe o gênero. O autor destaca que, para ser autobiografia,
deve se tratar de uma pessoa real como sujeito da enunciação, ou seja, um ser humano
constituído como persona, como entidade psicológica, espiritual, moral, social. No que
se refere à forma da linguagem estabelece que deve ser um relato em prosa. O tema
tratado deverá centrar-se sobre a vida individual ou, pelo menos a história da formação
de uma personalidade. Além do mais o autor deverá identificar-se não somente com o
narrador como também com o personagem em questão. Finalmente, o narrador deverá
adotar uma visão retrospectiva de sua vida durante todo o relato.
A autobiografia, por sua própria natureza, cria problemas teóricos, de vez que
pretende articular noções de mundo, eu e texto. É um gênero cuja abordagem teórica
percorre a ciência literária e outras disciplinas. William Dilthey4 destaca o papel da
história; Philippe Lejeune, o do direito através do pacto autor-leitor e George Gusdorf5
se serve da antropologia filosófica, enquanto que Sidonie Smith6 elabora sua teoria a
partir de uma perspectiva feminista que luta por conquistar o gênero até então dominado
pelos homens.
3 Lejeune, Philippe. El pacto autobiográfico. Anthropos n. 29. Suplementos. Dezembro. 1991.Barcelona. 4 Dilthey, Wilhelm. Selected Writings. Cambridge University Press, 1976, pp. 207-216.
5
Gusdorf, George. Condiciones y limites de la autobiografia, en La autobiografia y sus problemas, teóricos, Barcelona. Anthropos, 1991. Suplemento n, 29.pp.93-103.
6 Smith, Sidonie. Hacia uma poética de la autobiografia de mujeres, en La autobiografia y sus... ob cit. Pp.
93-103.
3.2 Etapas da crítica literária referentes ao gênero
autobiográfico
Para James Olney7 o estudo da autobiografia desenvolve-se-ia historicamente em
três etapas correspondentes aos elementos contidos na palavra autobiografia: o autos, e
bíos e a graphé. O sentido etimológico de auto-bio-grafia tem a virtude de possuir, por
suas raízes gregas, uma precisão fora do comum; autos é a identidade, o eu consciente
de si mesmo e o princípio de uma existência autônoma; bíos, afirma a continuidade vital
dessa identidade, seu desenrolamento histórico; graphé, finalmente, introduz o meio
técnico próprio das escrituras do eu. A vida pessoal simplesmente vivida, o bíos de um
autos, pode ser assim recriado graças à graphé. A escritura de uma vida não seria, pois, uma simples transcrição, a repetição por escrito de uma realidade antes dada, não se
contentando com gravar de uma maneira fria certos fatos, mas que intervém ativamente
como um fator a mais, tanto na consciência que o autos tem de sua identidade, quanto
na que o bíos tem de seu transcurso histórico.
Em seu famoso artigo de 1956, Condições e limites da autobiografia
(Condiciones y limites de la autobiografia), Georges Gurdorf8 discorre sobre em qual
medida um texto representaria o bíos e o autos. A autobiografia passa a centrar-se na
elaboração que o escritor faz, no presente, dos fatos do passado. Desse modo a memória
já não seria um mecanismo de simples gravação de lembranças, mas um elemento ativo
que reelaboraria os fatos de uma vida e o leitor passaria a ser um depositário da
interpretação da vida do autobiografado e não mais um simples comprovador da
fidelidade desses fatos.
O papel da memória sobressairia como reconstrutora do passado dando-lhe a
compreensão e a clareza que não tiveram no momento em os fatos ocorreram.
A autobiografia não seria uma simples recapitulação do passado, mas o drama de
um ser que, em certo momento de sua história, se empenharia em parecer-se com a
imagem que ele mesmo elaborou para si próprio e que ele julga ser a verdade.
Em conseqüência, para Gusdorf o significado da autobiografia deverá ser
procurado além da verdade ou da falsidade, dando ao historiador o direito de comprovar
a veracidade deste testemunho.
7
Olney, James. Algunas versiones de la memoria/Algunas versiones del Bios: la ontologia de la autobiografia, em La autobiografía y sus… ob. Cit. Pp. 33-47.
8 Gusdorf, George. Condiciones y limites de la autobiografía, en La autobiografía y sus problemas…,
ob.cit.,pp.9-18.