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As comunidades de Sutil e Santa Cruz e suas relações interétnicas

As comunidades quilombolas de Sutil e de Santa Cruz estão situadas na área rural do município de Ponta Grossa, em uma região marcada pela introdução do imigrante europeu que, segundo Andreazza e Nadalin (1994), além de preencher os vazios demográfi cos, determinou a substituição da ordem escravista colonial por um regime de produção fundado no trabalho livre. Estima-se que, em 1830, havia cerca de 700 escravos nessa região (WALDMANN, 1992). Dessa maneira, como aponta Ianni (1962), o escravo que ali se encontrava foi sendo paulatinamente substituído pelo colono, o que culminou em perdas demográfi cas e territoriais irreversíveis para a população negra.

A situação de invisibilidade desses indivíduos é nítida. Poucos moradores de Ponta Grossa sabem da existência dessas comunidades, apesar de passados três anos de seu reconhecimento ofi cial junto ao

Governo Federal. Assim, torna imprescindível, nos dias atuais, a adoção e a criação, por parte dos remanescentes que ainda se mantém naquela localidade, de novas estratégias de sobrevivência e convivência.

Devido à intensa rede de relações interétnicas preestabelecidas nesse contexto não parece possível falar sobre a população quilombola dessas comunidades sem mencionar grupos com os quais convivem atualmente. Além de descendentes de alemães, poloneses e italianos – que marcam a imigração no Paraná – outro grupo merece atenção especial nesse estudo: os imigrantes russos. Sua importância está no fato de residirem em ‘colônias’ que estão dispostas na mesma área rural em que se encontram as comunidades de Sutil e de Santa Cruz, isto é, também integram o complexo de terras que formava a antiga Fazenda Santa Cruz. Esses russos têm uma história própria e diferenciada, e alguns aspectos dessa história os aproximam do objeto do nosso estudo.

As terras em que hoje se encontram as comunidades do Sutil e de Santa Cruz pertenciam, em outros tempos, à antiga Fazenda Santa Cruz, cuja metade foi legada, em 1855, por sua proprietária aos escravos libertos e escravos em vias de libertação que residiam nos domínios da fazenda. Hoje em dia, Sutil e Santa Cruz confi guram-se ofi cialmente como comunidades distintas, remanescentes de quilombo. Suspeita-se que existam desde o século XIX, mas só recentemente ganharam visibilidade junto aos órgãos

estatais92. Ao todo, formam um grupo de, aproximadamente, 150 pessoas,

sendo que a maioria reside na comunidade Sutil.

Apenas 12 dessas famílias residem na comunidade Santa Cruz. São, em sua maioria, negros, e possuem graus próximos de parentesco. Chega-se a elas pela PR 151, que liga Ponta Grossa a Palmeira. A distância do centro da cidade até as comunidades é de cerca de 20 km, e a distância que as separa é de 3 km, percorridos a pé pelos moradores, via rodovia, situação que deixa evidente os impactos sofridos ao longo do processo de mecanização da lavoura.

Segundo relato anônimo de uma moradora da comunidade era possível atravessar pelo mato, por uma trilha, mas a lavoura dos novos proprietários

bloqueou essa travessia93. No passado, essas comunidades chegaram a ter

mais de 8.000 hectares (WALDMANN, 1992), em nítido contraste com o montante atual, que não passa de 1/5 das terras que herdaram no passado.

92 A Comunidade Negra Rural de Sutil (registro 197 – Fl. 4) e a Comunidade de Santa Cruz (registro 296 – Fl. 3) – ambas registradas em 18/07/05, no Livro de Cadastro Geral nº. 4, tiveram seu reconhecimento publicado no Diário Ofi cial da União em 19/08/2005, Seção 1, nº. 160 – Folha 20. 93 Informações cedidas por moradora do Quilombo de Sutil. Ponta Grossa, 21 out. 2008.

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B.G.94 nos relata alguns fatos da origem da história: “[...] foi as escravas irmãs que herdaram metade da fazenda... elas fi zeram o patrimônio crescer... a partir de uma égua e um bezerro fi zeram multiplicar o rebanho... e elas

dividiram as terras com os outros escravos” 95.

A terra foi sendo, ao longo dos anos, vendida, trocada e arrendada pelos

próprios escravos a terceiros. B.G.96 afi rma que “[...] não houve invasão;

quem disser isso está mentindo... o que teve foi venda por preço injusto... vendiam terra em troca de semente, de comida...”. Tal é que, hoje em dia, as duas comunidades estão cercadas por grandes fazendas e por colônias de imigrantes, atualmente, colonos russos.

Ao todo, são três colônias de russos próximas às comunidades, isto é, nas terras que anteriormente pertenciam à antiga Fazenda Santa Cruz. Esses russos chegaram ao Brasil em julho de 1958, sob a condição de refugiados. No entanto, antes de migrarem para cá, residiam na China, na região da Manchúria. Como o governo comunista chinês, após a Revolução Chinesa de 1947, passou a exigir a saída dos estrangeiros do país, a população russa que lá residia foi obrigada a se retirar daquelas terras. A partir de 1953, seguiram para o porto livre de Hong Kong e, de lá, dispersaram para vários outros países, entre os quais, o Brasil. O governo brasileiro concedeu- lhes, generosamente, o visto de entrada, e a ONU doou-lhes as terras que

atualmente ocupam97. Trata-se, pois, de um povo deslocado no tempo e no

espaço. Como afi rma Waldmann (1992, p. 30),

[...] não é apenas sua aparência que os torna tão diferente, mas também seu modo de vida ascético, de cristão ortodoxo-bizantino e, sobretudo, a obstinação em manter sua crença, seus hábitos e suas convicções religiosas intactos, ainda nos moldes de seus antepassados.

De acordo com Anderson (2008), para povos ‘móveis e deslocados’, os lugares lembrados servem como espécie de âncora simbólica. A ‘terra natal’ aparece como um dos símbolos unifi cadores mais poderosos, ainda que a relação com ela possa ser construída de modo diferente, em lugares

94 B.G. é o mais antigo morador da comunidade Sutil. Na data da pesquisa, tinha 79 anos. Entrevista concedida por B.G. Coleta de dados referente à pesquisa sobre comunidades quilombolas no Paraná. Entrevista concedida a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Quilombo de Sutil. Ponta Grossa, 21 out. 2008.

95 As terras que hoje formam as comunidades de Sutil e Santa Cruz foram doadas às duas irmãs pela proprietária da antiga fazenda Santa Cruz, em 1852.

96 Entrevista concedida por B.G. Coleta de dados referente à pesquisa sobre comunidades quilombolas no Paraná. Entrevista concedida a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Quilombo de Sutil. Ponta Grossa, 21 out. 2008. Quilombo Sutil. Ponta Grossa, 21 out. 2008. 97 Para informações complementares cf.: Waldmann (1992).

diferentes. Isso inclui cenários em que não só a terra natal está distante, mas também em que a própria noção de terra natal como lugar de duração fi xa é posta em questão. Isso também se torna manifesto em outros segmentos de imigrantes que se estabeleceram como comunidades no Brasil, tais como alemães, italianos e poloneses. Particularmente no caso desses russos, ocorre que, embora tenham morado durante anos em outros países, a referência de terra natal continua sendo a Rússia, mesmo para aqueles que nasceram no Brasil, tal como alguns jovens com quem conversamos.

Hoje em dia, alguns moradores das comunidades trabalham para os russos; os homens nas lavouras e algumas mulheres realizam os serviços domésticos. Segundo relatos dos moradores das comunidades quilombolas

“[...] nunca houve muitos problemas”98, entre eles. Dizem que, de certa

forma, convivem bem. Entretanto, como nos conta S.M.F.P.99, diretora da

Escola municipal onde estudam as crianças daquela área rural (provenientes das colônias russas e das comunidades quilombolas), o contato entre eles se dá de forma muito complicada. Como exemplo, relata o caso das mulheres das comunidades quilombolas que trabalham nas casas das colônias russas, mas não podem fazer a comida, lavar louça ou roupas devido a diferença de hábitos e aos costumes peculiares dos russos:

A nossa merenda os alunos não comem... e aí fi ca complicado né? Mas daí, quando é alimento industrializado... eles aceitam... quando você abre um pacote na hora... [...] eles não utilizam nossos utensílios... isso é da religião... [...] na verdade (eles) são os chamados russos chineses. Eles invadiram a fronteira da China... e foi uma época bastante difícil... porque até então... a China não ligava muito para aquela região (referindo-se à região da Manchúria)... Aí quando os interesses políticos começaram a se defrontar... a China acabou convidando os russos a se retirarem do território.... Então tem toda uma história... porque muitos foram envenenados pela comida né... Então essa já é uma cultura histórica... e prá você mudar é difícil... porque eles são uma comunidade fechada [...]100.

Os moradores mais antigos das comunidades quilombolas foram criados cultivando a lavoura da família; porém, ao longo dos anos, isso foi se modifi cando, uma vez que o espaço para lavouras de subsistência foi se extinguindo. Dois fatores contribuem para essa situação: o aumento da população das comunidades e a simultânea diminuição das terras. É costume repartir a terra entre os fi lhos quando estes formam um novo

98 Informações concedidas por moradores dos quilombos de Sutil e Santa Cruz. Ponta Grossa, out. 2008.

99 S.M.F.P., diretora da Escola Estadual Francisco Pires Machado, onde estudam as crianças daquela área rural, contribuiu muito com informações. Entrevista concedida por S.M.F.P. a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Ponta Grossa, 21 out. 2008.

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núcleo familiar. Desse modo, os terrenos que antes eram destinados às roças para subsistência passam a ser ocupados pelas casas dos descendentes, tornando, assim, cada vez mais escassas as áreas destinadas ao plantio. Na família que nos hospedou, essa situação é bem evidente. Ao longo de seu terreno estavam dispostas quatro casas: a do núcleo familiar central, a casa dos dois fi lhos solteiros, e a casa do fi lho casado que lá residia com sua esposa (que também era sua prima).

Ainda assim, o vínculo com o cultivo da terra é forte. A maioria dos homens segue trabalhando com a terra, só que, agora, em plantações de terceiros. O caminhão vem buscá-los antes do dia clarear e os traz de volta no fi nal da tarde. Além da atividade agrícola, que remunera a maioria das famílias da comunidade, empregam-se, também, na cidade, como pedreiros em obras. São poucas as mulheres que trabalham fora; algumas delas trabalham nas casas das colônias russas, como já foi mencionado, realizando serviços domésticos diversos, e outras, trabalham como empregadas domésticas na cidade. A maioria, entretanto, dedica-se ao cuidado da própria casa e dos fi lhos.

A religião é aspecto marcante em ambas as comunidades. No Sutil, há a Capela São Benedito e, em Santa Cruz, a Capela Bom Jesus. Essa última foi construída para substituir uma capela de pedra feita pelos escravos. As missas são celebradas uma vez por mês. A religião Católica é mobilizadora de inúmeros eventos, sendo a festa mais famosa a de São Benedito. Embora o catolicismo predomine nas duas comunidades, muitas pessoas também frequentam cultos denominados afro-brasileiros, porém ao que parece, há certo preconceito com esse tipo de prática religiosa. Como nos relata uma moradora da Comunidade Santa Cruz:

[...] o terreiro expressa a cultura afro... conhecer e praticar essa cultura é muito importante, principalmente numa cidade como Ponta Grossa... a Prefeitura se recusa a apoiar ações feitas pelo pessoal do terreiro, que serve sopa no fi m de semana pras crianças das comunidades [...]101. (P.I.B).

Segundo ela, são incontáveis os casos de moradores que, por motivo de doença, confl itos familiares, questões afetivas, problemas econômicos, recorrem a esses cultos, mas que ninguém comenta o assunto.

Desde 2005, algumas políticas públicas têm contemplado essas comunidades. Hoje em dia, há energia elétrica e sistema de tratamento de água. Entretanto, não há tratamento de esgoto, telefone público, e serviço de

101 Informações concedidas pela moradora P.I.B. Entrevista concedida a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Quilombo Santa Cruz. Ponta Grossa, 23 out. 2008.

correio. As casas que antigamente eram de madeira, hoje são de alvenaria, restando apenas algumas poucas na confi guração antiga. As casas de alvenaria seguem um mesmo padrão, geralmente sala/cozinha, dois quartos e um banheiro do lado de fora. Essas casas foram doadas às comunidades pelo Governo do Estado, em julho de 2006. Inicialmente, os moradores se

inscreveram no Programa Casa à Família Rural102 a fi m de obter as casas

mediante fi nanciamento, e as parcelas seriam de R$ 50,00. Mas elas nem chegaram a ser pagas, uma vez que o Governo decidiu doar as vinte e sete unidades habitacionais para os inscritos, bem como um Barracão (Centro Comunitário) destinado à realização de atividades comunitárias. Nem todos os moradores foram contemplados com as novas casas, visto que, no momento das inscrições, alguns não preenchiam os requisitos necessários, que incluía, principalmente, não estar inadimplente. Essas pessoas estão esperando por uma nova leva de construções habitacionais.

A renda mensal das famílias geralmente é complementada com