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A comunidade do Feixo é cortada por uma via de terra principal, onde se localizam os estabelecimentos de acesso comunitário: a igreja, as escolas, o correio, a mercearia, o posto de saúde, os pontos de ônibus. A partir da via principal surgem vias perpendiculares que levam para o interior da comunidade, onde se encontra a maioria das casas. O lugar é de uma extensão bastante grande e as ruas não têm nomes; os moradores, portanto, localizam-se geografi camente a partir dos sobrenomes das famílias que ocupam determinados trechos. Assim, ao invés de nome de rua utilizam o referencial humano, dizendo que tal lugar localiza-se para os lados ‘dos Santana, dos Pavão, dos Batistas’.

O grupo é formado por maioria afrodescendente, cuja história remete aos tempos da escravidão. As terras que hoje ocupam faziam parte de uma grande fazenda de café que pertencia a Hipólito Alves de Araújo. Os escravos que viviam nessa fazenda foram alforriados antes da promulgação

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da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, e receberam de Araújo as terras que já cultivavam (PAULA, 2007).

L.S.O., 74 anos, em conversa informal na sua casa, disse acreditar que em algum cartório da época devia constar um documento que comprovasse

a doação das terras aos seus antepassados113. Entretanto, os moradores,

hoje, em geral, não possuem qualquer documento que legitime a posse do território. Disse que aos olhos das pessoas de fora da comunidade, ele é considerado um líder comunitário, ainda que os integrantes do grupo não o reconheçam como tal.

A terra doada por Araújo era de grande extensão, e cada morador recebeu um quinhão pelo qual se tornou responsável. Por muitos anos, a comunidade permaneceu majoritariamente negra, havendo poucas infl uências externas. O cenário passou a ser transformado com a chegada dos imigrantes italianos, russos, alemães e poloneses. Segundo Oliveira (2007), a imigração nos estados do sul começou por volta da década de 1820, sendo as tradições herdadas dos antepassados mantidas e transmitidas por gerações. Porém, o contato com indivíduos de culturas diferentes passou a infl uenciar esse contexto, e as relações deixaram de ser internas aos indivíduos do mesmo grupo. Nessa perspectiva, a união conjugal entre membros de diferentes etnias tornou-se comum. O processo de miscigenação proporcionou, entre outros aspectos, o branqueamento da população, que hoje é constituída por uma minoria negra.

Da grande fazenda herdada por esses antepassados restou uma área reduzida, pois, no decorrer da história, fatores diversos concorreram para esse fato. Apesar da inexistência de dados materiais sobre o Feixo, conforme observa Paula (2007) ao afi rmar que não há um estudo formalizado a respeito da história e da formação desse grupo, o Sr. L.S.O. é um dos que guardam na memória histórias que ouvia na infância. Em conversa, ele

citou um dos confl itos mostrados na novela Pantanal114 como ilustrativo

das brigas pela posse de terras, acontecidas por ali. Disse que houve muita morte naquela região, quando os ‘coronéis’ começaram a invadir e tomar

posse das terras pertencentes a seus antepassados115.

Dessa maneira, ao longo da história, houve diminuição no tamanho das propriedades, mas as famílias que permaneceram continuaram a se

113 Informação concedida por L.S.O. Entrevista concedida a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Quilombo do Feixo. Lapa, 1º nov. 2008.

114 Na época dessa conversa, a novela Pantanal estava sendo exibida pela emissora SBT. A disputa de duas famílias pela posse de terras era um dos confl itos principais na trama da novela.

115 Informação concedida por L.S.O. Entrevista concedida a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Quilombo do Feixo. Lapa, 1º nov. 2008.

multiplicar. Essas famílias geralmente encontram-se confi guradas em torno de um núcleo, representado por um casal, por uma matriarca viúva ou por um patriarca viúvo. Esse núcleo central se expande por meio das gerações que se sucedem. Assim, os fi lhos que não deixam a comunidade, via de regra, constroem suas casas no terreno dos pais. Há terrenos com até nove casas, como o caso de T.P.B., 66 anos, mãe de três fi lhos e 10 fi lhas.

Dentro de um núcleo familiar em que o terreno é compartilhado e as casas ocupam um espaço comum, geralmente não há delimitação. Contudo, há demarcação espacial por meio de cercas de arame farpado para estabelecer as posses de cada morador ou núcleo familiar perante a comunidade. A maioria das casas é de alvenaria; algumas, mais antigas, são de madeira.

As casas visitadas não tinham forro, sendo o telhado de telhas de barro ou de amianto. A sala e a cozinha constituem um cômodo único e os quartos variam entre dois e três. O banheiro fi ca do lado de fora da casa e, muitas vezes, funcionam como fossas. São apenas um buraco bem fundo no chão, coberto por uma espécie de balcão de madeira com um tampo plástico, próprio das privadas de cerâmica. É comum haver nesse tipo de banheiro um latão contendo cinzas para serem jogadas sobre os dejetos. O forno e o fogão à lenha são construídos sob um ‘puxadinho’ ao lado da casa. Porém, quando o fogão à lenha é industrial, ele é mantido no interior da residência. Há energia elétrica e sistema de tratamento de água, mas não de esgoto. Grande parte dos moradores é isenta do pagamento de luz e água devido ao programa Baixa Renda, do Governo Federal, o que implica o cumprimento de metas, como consumo de luz de até 80 kW/mês e o de água até 3m/mês.

Devido o reduzido espaço, nem todas as famílias conseguem manter roças para subsistência. Aparentemente, as terras cultivadas não são de uso coletivo, sendo cada morador responsável pela sua roça. Um dos objetivos governamentais na assistência das comunidades quilombolas é o incentivo à agricultura familiar. De acordo com L.S.O., o governo doou sementes crioulas de milho e feijão para serem plantadas pelos moradores. Esses dois alimentos são os mais cultivados, seguidos da mandioca.

Antes era comum o fabrico artesanal da farinha, mas hoje essa cultura se perdeu. Os moradores demonstram sentimento nostálgico com relação a algumas atividades que antes faziam parte da rotina das famílias; sentem pesar por não produzirem mais farinha e não terem mais espaço para plantarem como antigamente. Ainda assim, em praticamente todos os quintais há um pequeno pomar, formado de laranjeiras, limoeiros, pessegueiros, ameixeiras e uma horta. O cultivo de plantas e ervas medicinais também é comum e pode aparecer tanto em um espaço exclusivo quanto

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consorciado com as hortaliças. Alguns moradores, em menor número, conseguem manter pequenas criações de porcos, galinhas, frangos e gado. Além desses animais criados para a alimentação, há, ainda, cavalos que auxiliam no trabalho e no transporte.

Os homens trabalham como agricultores nas grandes plantações de milho, de batata e de soja nos arredores da comunidade e cultivam roças particulares para a subsistência da família. Além do trabalho nas plantações empregam-se também na fábrica de produtos de limpeza e na colheita e benefi ciamento da maçã. A renda mensal é acrescida com o dinheiro do programa Bolsa Família, benefício recebido pela maioria das famílias. As mulheres com fi lhos trabalham em casa e são responsáveis pelos afazeres domésticos e cuidados das crianças. As que trabalham fora se empregam na colheita e benefi ciamento da maçã, numa fábrica nas imediações da comunidade; ou na indústria de produtos de limpeza, que os moradores chamam de ‘química’, a 7 km do Feixo; ou como empregadas domésticas; e nas épocas da safra, na colheita de batata.

As rezas, os benzimentos, as simpatias e a utilização de plantas

medicinais são práticas recorrentes que resistem ao tempo. T.B.P.116,

em conversa informal em sua casa contou que é uma das rezadeiras da comunidade. Ela recebeu os ensinamentos de uma senhora que ali morava. As orações são mantidas em segredo até o dia em que ela passe o encargo para outra pessoa.

A religião mais expressiva na comunidade é a católica, e Nossa Senhora Aparecida é a santa por excelência. Em todas as casas visitadas encontramos a imagem da santa e não é raro ouvir relatos milagrosos de cura realizados por ela. As festas religiosas são os acontecimentos que reúnem todos os moradores da comunidade. As mais famosas são para Nossa Senhora Aparecida e São Benedito, organizadas e realizadas no pátio

da igreja. A igreja foi construída, segundo L.S.O.117, há cerca de 40 anos.

Para ele, antes da igreja institucional chegar ao Feixo, os moradores tinham maior autonomia para realizar os festejos, o que concorria para animar o sentimento comunitário entre as pessoas. O fandango, realizado durante sua infância, quase ninguém se lembra que existiu.

A tradição das festas religiosas, geralmente, nasce da devoção aos santos do panteão católico. Algumas famílias anualmente oferecem festejos ao santo devotado. Essas festas são transmitidas por gerações, as quais

116 Informação concedida por T.B.P. Entrevista concedida a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Quilombo do Feixo. Lapa, 22 out. 2008.

117 Entrevista concedida por L.S.O. Entrevista concedida a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Quilombo do Feixo, Lapa, 1º nov. 2008.

confi guram, assim, manifestações religiosas e culturais peculiares nesses grupos. T.B.P., nascida e criada no Feixo, é mãe de 10 fi lhas e três fi lhos, avó de 53 netos e 14 bisnetos, “[...] mais três que ainda estão na barriga”118. Ela realiza, há três anos, uma festa para as crianças da comunidade, no dia de Nossa Senhora Aparecida, em retribuição a um milagre realizado pela santa. No quintal de sua casa, as crianças da família se reúnem para brincar. Nos fi nais de semana, é mais comum a casa fi car cheia, pois é o dia em que as mulheres também se reúnem para assar broas (pães), bolos e biscoitos.

Meninos e meninas de diferentes idades brincam juntos. É comum os meninos trazerem ao pescoço um estilingue e nas mãos um chicote. ‘Estralar o chicote’ está entre as brincadeiras preferidas, de acordo com alguns netos de T. B. P. As meninas disseram gostar de brincar de boneca, casinha e queimada. Não percebemos a presença de brinquedos industrializados durante as brincadeiras e, aparentemente, as crianças não possuem o hábito de assistir televisão, prevalecendo, portanto, as brincadeiras e atividades ao ar livre.

No Feixo, os jovens constituem parcela expressiva na confi guração social, diferente da Vila Esperança em que a maioria migrou para centros urbanos, principalmente para Curitiba. O incentivo por parte dos familiares para que os jovens concluam os estudos não assume aspecto signifi cativo, sendo o trabalho mais valorizado e, consequentemente, mais realizado. A mudança para as cidades acontece, de modo geral, motivada pela busca de emprego. O grau de escolaridade entre os mais velhos não passa da 4ª série do ensino fundamental. Nessas famílias, o trabalho se impõe aos estudos, haja vista que a maioria dos jovens não permanecem nas salas de aula além da 8ª série.

A realidade fi nanceira das famílias determina que seus membros comecem a trabalhar bem cedo, o que prejudica a conclusão dos estudos. Ingressar em um curso superior é bastante raro, assim como o desenvolvimento de uma carreira profi ssional que fuja do rol dos subempregos destinados à maioria dos indivíduos quilombolas.

As crianças entre um e três anos recebem leite do Programa Leite da Família. As crianças de 1ª a 4ª série estão matriculadas nas escolas locais, que são duas: Escola Rural Municipal Arthur da Costa e Silva e Escola Rural Municipal Martim Afonso de Souza. Nessa última funciona também o Programa Segundo Tempo (BRASIL, 2009) – Núcleo Vem Ser – do Ministério do Esporte/Governo Federal.

118 Informação concedida por T.B.P. Entrevista concedida a Talita Delfi no Garcia da Silva e Stephanie Soares Ferreira. Quilombo do Feixo. Lapa, 22 out. 2008.

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Conforme informações coletadas na Secretaria de Assistência Social há, na cidade da Lapa, oito centros de convivência que sediam o Programa Segundo Tempo. O programa funciona em contraturno escolar e direciona- se a crianças e adolescentes expostos a situações de risco social no sentido de proporcionar oportunidades para complementar sua formação com a oferta de modalidades esportivas individuais e coletivas, além de atividades complementares e/ou culturais.

O núcleo Vem Ser conta com 220 crianças e 35 estagiários. Os estagiários são selecionados por uma empresa chamada CIEES, e, segundo a coordenadora pedagógica do programa, a carga horária é estabelecida conforme o grau de escolaridade: estagiários do ensino médio trabalham 20 horas semanais, estudantes do ensino técnico trabalham 30 horas e estudantes universitários trabalham 40 horas por semana. A maioria dos grupos contém estudantes de educação física. Alguns jovens são contratados pelo programa Pró-Jovem para desenvolver atividades, porém, de modo diferente dos estagiários, disse a coordenadora pedagógica. Esses jovens recebem seu salário pelo Ministério do Desenvolvimento, via Bolsa Família.

Em nossa visita ao núcleo do Programa, observamos que a maioria das crianças é quilombola, o que nos foi confi rmado pela coordenadora do Núcleo. A capoeira é a atividade preferida das crianças e, também, da maioria dos adolescentes. Enquanto estivemos no núcleo, assistimos as crianças que brincavam reproduzindo muitos movimentos gímnicos, como ponte, estrelinha e parada de mão, que disseram ter aprendido nas aulas de capoeira.

Segundo a coordenadora do núcleo Vem Ser, as crianças encontram mais motivação nas atividades que têm, em sua origem, matizes africanos, como a capoeira, as danças como o samba, o frevo, o pagode e o axé. No entanto, entendemos que essas atividades são conduzidas desvinculadas do contexto histórico e cultural em que foram geradas.

Quanto à vida escolar, as crianças que estudam na Escola Arthur da Costa e Silva precisam tomar o ônibus. Os estudantes de 5ª a 8ª série estudam na Escola Estadual Antônio Lacerda Braga, que fi ca na colônia alemã Mariental, cerca de 9 km da comunidade do Feixo. O ensino médio, do 1° ao 3° colegial, é oferecido no período noturno, e de 5ª a 8ª série, pela manhã. O ônibus escolar leva e busca as crianças e os jovens nos dois períodos. As que estudam na Martim Afonso de Souza vão a pé. As crianças defi cientes frequentam a Apae quatro dias na semana, e uma Kombi da Prefeitura vai buscá-las. As mães precisam acompanhar as crianças, pois o

veículo não é adaptado com cadeiras e acessórios especiais para esse tipo de transporte.

Chama atenção a alta taxa de natalidade o que, de certa forma, contribui para o agravamento da situação econômica da região, que não oferece oportunidades de emprego para a grande maioria dos moradores da zona rural. A escassez de oportunidades trabalhistas tem incentivado a saída, não só dos jovens da comunidade rumo às grandes cidades, o que na realidade não resolve o problema, apenas os transfere de lugar. A maioria dos imigrantes quilombolas geralmente vai residir nos bairros pobres das cidades grandes e trabalhar, muitas vezes, em subempregos, ou ocupar cargos inferiores. A adaptação à ordem da vida na cidade é demorada e sofrida, e não raro, inefi caz, o que faz muitos jovens tomarem o caminho de volta à comunidade.

O pequeno espaço para o plantio também é um aspecto insatisfatório para os moradores do lugar. Vindos de gerações cujo trabalho campesino sempre esteve na base das relações sociais e econômicas da comunidade, a impossibilidade de manter essa cultura, no tempo presente, confi gura- se num sério desafi o a essas pessoas, que não têm alternativas concretas à ordem imposta durante anos e que conferiu identidade a esse povo. Pode-se dizer que, até então, a preocupação com esses grupos, por parte das esferas governamentais, foi mínima, haja vista as parcas políticas públicas vigentes nas comunidades quilombolas.

Política de esporte e lazer aparece somente com o Programa Segundo Tempo, mas com muitos reparos a serem feitos. A realidade anônima desses grupos, até ultimamente, faz com que recursos básicos e, até mesmo, vulgares para parte dos brasileiros, ainda sejam, para eles, metas bastante distantes de serem realizadas.