• Nenhum resultado encontrado

Comunidade Varzeão em Dr Ulysses: algumas implicações para o desenvolvimento de políticas públicas

de esporte e lazer

Iniciamos nossa pesquisa de campo na comunidade do Varzeão, município de Doutor Ulysses – PR, região do Vale do Rio Ribeira, divisa com o Estado de São Paulo. Ao chegarmos à cidade em um fi nal de tarde, pudemos observar as condições precárias de vida, uma vez que a região, na

época da investigação, apresentava um dos IDHS59 mais baixos do Paraná.

Praticamente não existe asfalto no perímetro urbano, salvo a avenida principal. O acesso até o município é difícil e, em dias de chuva, praticamente impossível, pois são, aproximadamente, 60 km de estrada sem pavimentação e sem terraplanagem, apresentando, ainda, muitos precipícios entre Cerro Azul (cidade mais próxima) e Doutor Ulysses.

Passamos uma noite e uma manhã no núcleo sede do município antes de partirmos para o quilombo e, assim, tivemos contato com a Secretária de Educação e de Assistência Social. Esta última nos forneceu um carro com tração nas quatro rodas, o que nos possibilitou chegar até a comunidade,

3 A P R O X I M A Ç Õ E S E N T R E O T E M P O L I V R E E O T R A B A L H O . . .

uma vez que havia chovido na noite anterior e o acesso até a comunidade se tornava impossível com carros comuns.

O trajeto entre a sede do município e a comunidade quilombola tem aproximadamente 15 a 20 quilômetros, os quais foram percorridos em uma hora devido à situação da estrada que não permitia que o carro andasse mais rápido. Durante o percurso, observamos a monocultura de pinos (árvore que gera a matéria prima para a produção de celulose e pasta de papel), que não é propriedade dos quilombolas. Dentre as empresas que exploram a extração e processamento de pinos na cidade, chamou-nos atenção a Línea Florestal, empresa do município de Sengés, região do norte pioneiro paranaense. Ao longo do caminho, observamos inúmeras placas que identifi cavam a empresa e, também, sinalizações que demonstravam a propriedade das suas plantações, apresentando, já, a contradição histórica entre classes.

Na comunidade fomos recebidos por um casal que, geralmente, recebe a maioria dos visitantes que chegam para conhecer o quilombo, por

inúmeros motivos60. A casa deles fi ca em uma espécie de centro comunitário

da comunidade que abriga a Arca das Letras61, espécie de mini biblioteca

cedida às comunidades pelo governo federal.

A comunidade é formada por 20 famílias com, aproximadamente, 40 pessoas, entre crianças, jovens, adultos e idosos. Logo de início percebemos, no local, o predomínio da agricultura de subsistência. Tudo o que é plantado visa o sustento dos moradores da comunidade, sendo, praticamente impossível sua comercialização pela difi culdade de acesso à comunidade, pois a estrada é precária, o terreno é acidentado e o tráfi co de caminhões carregados de pinos é intenso. Em dias de chuva fi ca impossível o trânsito nessa estrada, difi cultando, assim, o escoamento de qualquer outro produto.

Cabe ressaltar que há pouca terra disponível para as 20 famílias pensarem em produção comercial (até pensam, mas as condições materiais não as permitem superá-las, até o momento), pois são 70 alqueires para

60 Essa foi uma das questões que, mesmo antes de ir à campo, nos incomodou. Sentimo-nos invasores de um espaço (social e cultural) reservado e familiar, pois nossa intervenção foi especulativa, como a maioria dos visitantes que lá se aproximam. Foi como se estivéssemos utilizando-os como valor de troca: forneceram a informação necessária e fomos embora. Mediante esses e tantos outros confl itos, almejamos que esses relatos e análises cumpram o papel de intervenção social e que as políticas públicas futuras não atuem no mesmo sentido que atuamos nessas visitas, conforme os recursos fi nanceiros que tínhamos disponíveis.

61 A Arca das Letras é uma iniciativa da Secretaria de Reordenamento Agrário (SRA), do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), criada para facilitar o acesso aos livros e incentivar a leitura em assentamentos, comunidades de agricultura familiar e de remanescentes de quilombos (ARCA DAS LETRAS, 2009).

serem divididos entre eles, além de que, dessas terras, grande parte ainda não se encontra regularizada.

Para as atividades de subsistência, ou qualquer outra, a ajuda governamental, de acordo com os moradores, é praticamente inexistente. Não há propostas de políticas públicas que valorizem a cultura, as manifestações corporais afro, nem os saberes locais. O que existe é o Programa Paraná Alfabetizado, destinado à alfabetização de jovens, adultos e idosos, que funciona junto à escola primária da comunidade, e uma horta comunitária fornecida pela Emater. Esta última, na leitura do líder J.R.C., não se consolida como apoio, porque fazer horta “[...] qualquer um sabe e

não precisaríamos de um programa para isso” 62. (J.C.R.).

Essa questão traz à tona a valorização (e a falta dela) na produção dos conhecimentos e dos saberes da comunidade (informais), que se aproxima da forma como a educação pública (educação formal) é oferecida. O fato de negar a informação da Emater, por exemplo, evidenciou, de acordo com o líder J.R.C., que este órgão, ao se colocar na comunidade, busca a supremacia das suas informações sobre como manter uma horta, em relação aos saberes produzidos pela comunidade. Outra evidência, além da compreensão do líder é que, na comunidade, esse conhecimento (o da Emater) não tem sido plenamente absorvido.

No bojo da produção dos saberes locais situa-se a socialização do conhecimento formal, gerenciado pelas escolas públicas precárias e defasadas, embora continuem propagando conteúdos hegemônicos, desconsiderando a realidade concreta dos alunos. Em conversa com a professora responsável pela escola, situada no interior da comunidade, constatamos que as crianças estudam nessa localidade até a quarta série, com subsídio municipal. Para a conclusão do ensino fundamental e médio, os alunos devem se deslocar até a ‘vila’ (como eles costumam chamar o município de Doutor Ulysses). Nesse aspecto, a professora também deixou claro que nessa época, a maioria, tende a deixar a escola em função da necessidade de procurar trabalho para contribuir no sustento da família. Relata, ainda, que os jovens se sentem desmotivados quando, em dias chuvosos, a estrada fi ca intransitável, resultando na perda de dias e/ou semanas de aula.

É válido salientar a pouca interação que a comunidade possui com o município. São escassas as ações efetivas por parte do poder público de

62 Entrevista concedida por J.R.C. Quilombo do Varzeão. Coleta de dados referente à pesquisa sobre comunidades quilombolas no Paraná. Entrevista concedida a Aloysio Santos e Luciana Rita. Doutor Ulysses, 22 out. 2008.

3 A P R O X I M A Ç Õ E S E N T R E O T E M P O L I V R E E O T R A B A L H O . . .

Doutor Ulysses para aproximar-se dos quilombolas de Varzeão. Essa questão evidenciou-se quando observamos os moradores deslocarem-se até Itararé, já no lado do Estado de São Paulo, para fazer suas compras e se utilizarem de outros serviços. Portanto, não vão até Doutor Ulysses – PR.

Concomitante com a ausência de políticas públicas que buscam valorizar a cultura quilombola há, em relação a esse quilombo, uma possível alteração de seus costumes e tradições. Isto pode se dar, sobretudo, por conta do processo de conversão dos moradores ao protestantismo. A Igreja frequentada por eles é a da Congregação Cristã do Brasil, caracterizada por exigir de seus fi éis uma conduta rígida nas questões moral e sexual, e nas normas de convívio cotidiano de seus seguidores. Não são permitidas danças, festas e não há incentivo a qualquer manifestação da cultura corporal. Qualquer música ou brincadeira relacionada a outras formas religiosas é coibida. Um exemplo observado é que a professora da comunidade não utiliza um determinado cd de músicas pelo fato de mencionar, numa de suas faixas, o candomblé.

Portanto, durante a incursão ao campo, nessa comunidade, não observamos no discurso e ação dos moradores nenhum resquício de danças típicas, mas nos deparamos com alguns elementos de religiosidade popular e cultura popular, como a confecção de cestos de taquara para armazenar mantimentos e o costume de comer ‘virado de feijão’, que é uma forma de alimento típico daquele local.

Embora haja uma religião dominante, há crenças em algumas lendas. Isso foi percebido em um relato contado por um grupo de crianças acerca da existência do ‘Pai do Mato’, espécie de protetor da fl oresta. Este, por sua vez, castigava aqueles que derrubavam árvores e matavam animais sem ter por fi m a alimentação. Outro exemplo surgiu quando um dos moradores nos relatou o fato de existir espíritos de índios que guardavam o segredo de onde havia ouro enterrado e eles apareciam em sonho revelando o segredo. O mais curioso é que este relato partiu de uma das fi guras mais religiosas da comunidade.

Na relação entre cotidiano, educação e trabalho, observamos que a maioria dos quilombolas de Varzeão, senão todos, não possuem carteira assinada. Os mais velhos, geralmente, são aposentados, e os mais novos que vivem no quilombo trabalham por diárias. Muitos vão para a cidade procurar trabalho registrado, o que faz com que a população diminua gradativamente. Quando chegamos à comunidade, fazia pouco tempo que o antigo presidente da associação havia se mudado para o município de Ponta Grossa - PR, para procurar emprego. O atual presidente, desanimado com as condições de vida do quilombo e com o descaso do poder público

em relação à situação dessas comunidades, ensaia a possibilidade de deixar o Varzeão em busca de condições melhores na cidade.

A procura por trabalho e, consequentemente, por trabalho precário nas sociedades urbanas pelos sujeitos que vivem no campo, amplia o processo de exclusão social. Tais sujeitos não possuem o conhecimento técnico necessário para aumentar a produtividade nas fábricas, o que difi culta o ingresso no mercado de trabalho. Assim, encontram-se à margem da sociedade, necessitando se submeter ao subemprego, quando não fi cam, na maioria das vezes, desempregados, ampliando o exército de reserva necessário ao sistema capitalista (OLIVEIRA, 2005).

Para melhor compreender essa situação, Forrester (1997, p. 11-12) afi rma que os excluídos do trabalho são os primeiros sujeitos a se entender como incompatíveis numa sociedade que os vê como naturais.

São levados a se considerar indignos dela, e sobretudo responsáveis pela sua própria situação, que julgam degradante (já que degradada) e até censurável. Eles se acusam daquilo de que são vítimas. Julgam- se com o olhar daqueles que os julgam, olhar esse que adotam, que os vê como culpados, e que os faz, em seguida, perguntar que incapacidade, que aptidão para o fracasso, que má vontade, que erros puderam levá-los a essa situação.

A construção da identidade de exclusão para os quilombolas adultos que vão à cidade para buscar sobrevivência deixa para trás uma geração que se desenvolve sob um futuro incerto, que é a infância. Mesmo com essa realidade, a comunidade se apresenta, para as crianças, como local ideal para as brincadeiras infantis, uma vez que o contato com a natureza é certo, pois as casas nas quais as crianças costumam brincar com seus amigos estão próximas de matas, riachos e morros. As mesmas costumam brincar ao redor de suas casas com seus amigos, porém, conforme já citado, certas brincadeiras são, por vezes, censuradas em função da questão religiosa desta comunidade.

A maioria dos moradores relata que o seu tempo livre é vivenciado com as visitas feitas a seus vizinhos, que, por sinal, são parentes, em encontros certos que cultuam a tradição de tomar chimarrão. Surgem, então, traços de uma cultura sulista, que denota a infl uência que a condição geográfi ca incorre nas comunidades remanescentes de escravos. A articulação de culturas diferentes no processo de criar novas e alterar as culturas antigas, demonstra, por um lado, a transformação cultural exercida pela realidade concreta dos sujeitos e, por outro lado, a produção de uma cultura afrodescendente condizente com o atual modo de produção humana.

3 A P R O X I M A Ç Õ E S E N T R E O T E M P O L I V R E E O T R A B A L H O . . .

As comunidades quilombolas de Castro: singularidades