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O Programa Segundo Tempo: necessidade de intervenção urgente

Dado que este projeto busca mapear e caracterizar as políticas de esporte e lazer nas comunidades quilombolas do Paraná, vamos comentar alguns aspectos a respeito do Programa Segundo Tempo existente na comunidade do Feixo e de Vila Esperança, a única proposta governamental encontrada para incentivo do esporte e lazer na comunidade.

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Pelas observações e conversas com as pessoas dos lugares, entendemos que, no Feixo, a fi losofi a do Programa e sua fi nalidade estão minimamente sendo atendidas. Mas, na Vila Esperança, está sendo totalmente comprometida, pelo que expusemos, considerando o objetivo central do Programa, qual seja, “[...] democratizar o acesso à prática e à cultura do Esporte de forma a promover o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens, como fator de formação da cidadania e melhoria da qualidade de vida, prioritariamente em áreas de vulnerabilidade social” (BRASIL, 2009). Entre os objetivos específi cos encontram-se a interação entre os participantes e deles com a sua realidade local, bem como a melhoria de sua autoestima.

Na realidade investigada, foram identifi cados os seguintes problemas no Programa Segundo Tempo:

Manifestações racistas

1. Falta formação adequada aos responsáveis: As relações entre os moradores das comunidades quilombolas e os moradores da colônia alemã recebem a infl uência de acontecimentos que datam de muito tempo. Segundo algumas mães, as crianças dizem ser comum haver atividades que apenas os ‘brancos’ participam e outras que apenas os ‘negros’. No dia de nossa visita, uma pessoa disse a algumas meninas que nós não as fi lmaríamos porque elas “[...] precisavam ter fi cado mais um pouco no forno, terem assado um pouco mais”. Ela ainda quis deixar claro que o programa não era exclusivo às comunidades quilombolas, mas à comunidade em geral: branco, negro, rico e pobre. Há que se investigar se a população mais exposta aos riscos sociais, para quem o Programa foi criado, não está fi cando fora das atividades. 2. Crianças se separam por ofi cinas – as de brancos e as de

negros: Existe uma clara priorização de ‘conteúdos brancos’, pelos brancos, e ‘conteúdos negros’, pelos negros. No Feixo, o programa parece atender às necessidades das crianças locais. Logo na entrada, há uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. A capoeira é uma das atividades preferidas e danças de matriz afro, como samba e axé são bastante apreciadas, enquanto em Mariental, segundo a estagiária responsável pela dança, o ritmo preferido das meninas é o black music internacional, o que aponta para uma tendência em sintonia com a mídia.

Entre os moradores do Feixo, o núcleo é visto de forma positiva. Consideram uma boa oportunidade para as crianças aprenderem novas

atividades, sendo importante para o desenvolvimento pessoal, um grande progresso, para a maioria dos adultos que, em seu tempo de infância, não tinham acesso nem mesmo à escola. No ano passado, os núcleos do projeto reuniram-se em uma apresentação no centro da Lapa. Cada núcleo escolheu uma etnia para representar. O núcleo do Feixo escolheu o Brasil e apresentou números de dança e atividades típicas brasileiras, como capoeira, futebol e o axé. O núcleo da Mariental, de acordo com o que foi contado, representou a etnia alemã, excluindo todos os alunos afrodescendentes da apresentação. Parece que as crianças e adolescentes que frequentam o centro da Mariental não têm referência que remeta ao conhecimento e à valorização da cultura afro e, consequentemente, à valorização da negritude.

O importante dessa questão é saber por que as crianças não se misturam. Seria somente a identidade étnico-cultural? Se fosse assim, não seria tão grave a situação da separação entre brancos e negros nas atividades. Mas as observações indicam que o problema vai além. A teoria aponta que as crianças, em um ambiente não hostil, buscariam a convivência e priorizariam estar juntas (SARMENTO, 2005). Então, por que se separam? Há algo mais do que a necessidade de formação dos professores?

A volta à comunidade deve buscar aprofundar esse tema com o intuito de subsidiar as análises, trazendo elementos sufi cientes para chegarmos a julgar se vale a pena ou não a existência do Programa lá ou se existem condições objetivas de continuidade a partir de uma séria intervenção em sua execução. Souza (1983, p. 2) nos traz que:

A violência racista do branco exerce-se, antes de mais nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização compulsória e brutal de um Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para si um projeto identifi catório incompatível com as propriedades biológicas do seu corpo.

Os uniformes podem ser um problema. Apesar de estar estabelecida a doação de uniformes com o logo do Programa, nenhuma das crianças presentes nos núcleos, nos dias de nossa visita, usavam-no. De acordo com uma mãe, moradora da Vila Esperança, cujos fi lhos frequentam o centro na colônia Mariental, as crianças não possuem uniformes. A igualdade ou a diferença, a superioridade ou inferioridade também é expressa na aparência. Há que se corrigir essa situação, antes entendendo os meandros do problema.

Pode haver poucos responsáveis adultos em proporção ao número de crianças: Quando, no ônibus, encontramos algumas mães moradoras da comunidade Vila Esperança e perguntamos a respeito do Centro de Convivência, nome pelo qual eles chamam os núcleos do Programa,

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a primeira reação foi de não tocar no assunto. Depois, disseram que consideram poucas pessoas responsáveis para o total de crianças, visto que o centro localiza-se próximo à rodovia BR 476 e os portões, constantemente, são vistos abertos. Houve um caso de atropelamento de uma criança, há alguns anos, e percebe-se que esse fato marcou as pessoas da região.

Considerando o exposto, o Programa Segundo Tempo deve ser revisto urgentemente nas comunidades citadas, pois, diferente de seus propósitos originais, de promover a integração de valores, contribuindo para a aproximação de indivíduos imersos em realidades distintas, ao contrário, provavelmente tem colaborado para que o fosso entre ambas continue se alargando, de forma que a ordem permaneça inalterada e cada qual continue ocupando, segundo a norma vigente, ‘o lugar que lhe cabe’.

Considerações fi nais

Consideramos que, em função dos objetivos propostos para esta fase, que era a de tomar conhecimento das comunidades quilombolas do Paraná e descrevê-las, chegamos a resultados bastante positivos, não só pelo nível de conhecimento que agora temos, mas também pelo grau de satisfação e motivação que nos impelem a prosseguir a pesquisa. Temos muita vontade de conhecer com maior profundidade algumas comunidades para entendê- las e, da forma mais respeitosa possível, contribuir de algum modo para seu acesso ao lazer de qualidade.

Há insipiência de políticas públicas de esporte e lazer nas comunidades investigadas, mas a busca do conhecimento dessa manifestação, afi nal, serviu enormemente para conhecermos comunidades que, por serem consideradas quilombolas, mostram-nos um crescente processo de ‘embranquecimento cultural’ que tem feito a identidade negra quase desaparecer. No entanto, se incorporarmos o conceito de Chauí (1994) da cultura como resistência, podemos seguramente apostar no investimento público a favor da revitalização da história cultural e de suas remanescências, para que as gerações quilombolas venham a exercer uma força, no dizer gramsciano, contra-hegemônica quanto à linguagem, aos costumes, às religiões, às danças, aos gostos e rituais em geral, a partir de suas origens.

Referências

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A condição (des) humana nas