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A discussão sobre ocupação do espaço e a territorialidade das populações coloca-se como uma preocupação e ocupa muitos estudiosos, especialmente, das Ciências Sociais. Em nossos estudos antropológicos, a ocupação do espaço aparece estreitamente vinculada não só com a reprodução biológica da vida humana, mas também com a reprodução das relações sociais e com a existência e permanência das culturas. Partindo dessa preocupação, os espaços apresentam-se com diferentes identifi cações, conforme as signifi cações que lhe são atribuídas pelos grupos humanos que os ocupam, confi gurando territorialidades próprias. Tais grupos despojam

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a terra de seu valor mercantil para impingir-lhe uma gama de signifi cados, vinculados à sua história.

No que se refere aos grupos considerados ‘tradicionais’ e, em particular, às comunidades negras rurais, diversos autores têm observado que a reprodução cultural baseia-se em uma ocupação e utilização comunal do espaço, cuja imemorialidade é constantemente reafi rmada. Nesse espaço, caracterizado por uma territorialidade própria destes grupos, comumente desenvolvem diversas atividades sócio-econômicas que se confi guram como práticas culturais, a exemplo da agricultura de subsistência, utilizando o sistema de pousio e a mão de obra familiar.

A territorialidade dos remanescentes das comunidades de quilombos confi gura uma situação particular de alteridade desses grupos, que se constituíram a partir de processos diversos em todo o país: fugas, heranças, doações e até compra de terras, em pleno vigor do sistema escravista no país. O território que ocupam identifi ca-se com sua história de busca pela liberdade e pela autonomia. Assim, o acesso à terra e aos recursos básicos atém-se às relações sociais, de parentesco (não necessariamente consanguíneo) e de grupo. Outros tipos de comunidades negras surgiram após a abolição, com a ocupação de áreas abandonadas e/ou de propriedade desconhecida, ou adquiridas por antigos escravos, formando povoados e bairros rurais.

A articulação de atores e grupos sociais de diferentes origens em um território, formando sociedades que passaram a funcionar à margem do sistema colonialista e escravista vigente até o século passado, denota um tipo de organização que teve por fundamento principal a questão étnica. “As fugas como negação do sistema e a recomposição de um tipo de organização, permitiu a essa população viver na terra comum e constituir laços de solidariedade mútua [...]. A forma de apropriação do espaço foi fundamental” (CARRIL, 1995, p. 5). Esses grupos ocuparam territórios de difícil acesso, em geral vales e serras próximos a mananciais e a grandes rios.

Também nesta perspectiva, Bandeira (1988, p. 23) argumenta que a referência étnica passa a confi gurar como um fator de resistência e de luta pelos direitos sobre a terra, “[...] na medida em que a raça passa a ser uma diferença assumida por uns e outros, transforma-se na alteridade em fator explícito de discriminação”. O autor continua:

No interior de cada grupo, a diferença tende a ser manipulada como fator de coesão. Nas comunidades rurais negras, tende a germinar uma resistência informalmente organizada, mediada por conteúdos culturais selecionados pela comunidade como

defi nidores de sua etnicidade. A identidade étnica cimenta a coesão interna e os suportes da resistência externa. (BANDEIRA, 1988, p. 23).

É a terra/território a referência de existência desses grupos, condição que defi ne suas identidades, “[...] estar aí e fazer parte do grupo encontra respaldo no direito costumeiro, na descendência necessariamente negra

de um grupo de parentes entre os quais se está e se vive”14. (GUSMÃO,

1995, p. 6, grifo do autor).

A investigação científi ca e o conhecimento desses diversos processos que formaram sociedades autônomas e, essencialmente contraditórias ao sistema socioeconômico e político predominante no período escravista, levaram a questão para a esfera política, tendo como resultado de um longo processo reivindicatório o reconhecimento dos direitos das comunidades, caracterizadas como ‘remanescentes de quilombos’. O primeiro resultado concreto apareceu no texto constitucional brasileiro de 1988, através do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade defi nitiva, devendo o Estado emitir- lhes os títulos respectivos [...]” (BRASIL, 1988), e dos artigos 215 e 216 de nossa Carta Magna que apontam diretrizes para a proteção do patrimônio e das manifestações culturais dos diferentes segmentos étnicos nacionais ou grupos formadores da sociedade brasileira, como citado nos artigos.

A partir da existência dessa legislação e da necessidade de sua regulamentação, pesquisadores, organizações governamentais e não- governamentais, e outros interessados, iniciaram intensa discussão acerca da signifi cação dos quilombos e da atualização do conceito clássico ditado pelo Conselho Ultramarino ao Reino de Portugal, em 1740, que defi nia quilombo como habitação de negros fugidos (mais de cinco), em parte despovoada, mesmo sem ranchos ou sem pilões nela encontrados (ANDRADE, 1997). Tal discussão, no âmbito das muitas reuniões técnicas e acadêmicas realizadas (especialmente na década de 1990), gerou a ressemantização do conceito de quilombo, levando em conta os diferentes processos de ocupação já referidos e o fato das comunidades negras serem grupos formados por práticas de resistência ao longo do tempo que

procuravam manter e reproduzir modos de vida numa dada localidade15.

14 O fato de tais comunidades se apoiarem na descendência negra remete necessariamente ao grupo étnico preponderante na sua constituição, da qual também participaram, na maioria dos quilombos, os indígenas e brancos pobres e, também, socialmente marginalizados. Acerca das diferentes constituições de quilombos ver, entre outros, Gomes (1996) e O’Dwyer (1995). 15 Esse conceito de quilombo é uma defi nição do Professor Dr. João Pacheco, Presidente da Associação

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A ressemantização do conceito de ‘quilombo’ teve como consequência a redefi nição da condição de remanescente de quilombo, confi gurada como a situação de segmentos negros em seu legado e herança cultural e material que lhes conferem a ideia de ser e de pertencer a algum lugar (ANDRADE, 1997). As comunidades desenvolveram, ao longo do tempo, e de certa maneira ainda o fazem, práticas culturais, modos de vida naquele território. A identidade destes grupos se defi ne pela experiência vivida e o compartilhamento das versões de suas trajetórias históricas comuns, possibilitando a continuidade do grupo.

As noções de territorialidade que mais comumente têm se apresentado entre os grupos de remanescentes de quilombos não valorizam a terra pelo seu valor meramente econômico (meio de produção), mas atribuem a ela outros signifi cados para a existência e permanência do grupo. Investem- na de uma história singular, de uma especifi cidade, onde a memória e as práticas sociais coletivas se cruzam e se interpenetram.

A par das possibilidades e garantias legais, os quilombos contemporâneos enfrentam diversos problemas com relação ao reconhecimento. Diferentemente dos grupos indígenas que vivem com modos de ocupação tradicionais, (o que não signifi ca que eles habitem sempre nos mesmos territórios), os atuais remanescentes de quilombos fazem uma ocupação de terras conhecidas como ‘imemorial’: a maioria ocupa imemorialmente o mesmo território, embora muitos estejam, na verdade, em parte de um território maior que ocuparam inicialmente e que, devido à expansão da frente econômica para o interior do país, à construção de usinas hidroelétricas, à emancipação de municípios, e outros fatores, levaram à expropriação de suas terras.

Nestas comunidades, o controle sobre a terra se faz por meio da coletividade, do grupo étnico, levando em conta fatores como: o compartilhamento de valores comuns (como ética e moral); o parentesco; as práticas culturais; e, em especial, a solidariedade que desenvolveram desde o início na situação da escravidão, das fugas e, posteriormente, no enfrentamento com outros interessados pelas terras (garimpeiros, grileiros, etc). Assim, a referência de territorialidade dessas comunidades está intrinsecamente vinculada à identidade étnica coletiva, pois a relação com a terra se processou histórica e socialmente por meio do coletivo, com base no direito consuetudinário desses grupos.

No que pese as conquistas realizadas desde a Constituição de 1988, os quilombolas ainda enfrentam diversos problemas, sendo que a regularização fundiária é a questão mais importante e que suscita outros problemas. Em algumas áreas, colocam-se dúvidas sobre a veridicidade da

origem quilombola, já que essas comunidades nunca se preocuparam em divulgar sua origem, muito pelo contrário. Muitas delas ocuparam terras que eram de irmandades religiosas negras, ou doadas a santos, o que fazia com que essa distintividade se desse em menor grau. As dúvidas também têm em conta a mestiçagem encontrada nesses grupos, uma vez que foram sociedades formadas predominante, mas não exclusivamente por negros, alternativas ao regime escravista.

Sabe-se hoje que dos quilombos participaram outros segmentos socialmente excluídos: negros libertos, mestiços, indígenas e brancos pobres. Neste sentido, é importante enfatizar que os especialistas consideram quilombos não só a reunião de negros fugidos, mas também as comunidades de negros que estabeleceram, ainda durante o regime escravista, com um tipo de organização própria e diferenciada, regida por outro modo de produção.

Outra ordem de problemas vai de encontro à questão ambiental. Como os quilombos em geral se estabeleceram em terras distantes das cidades e de difícil acesso, a maioria públicas e com vegetação nativa, muitas dessas terras foram transformadas posteriormente (e antes de 1988), em áreas de preservação ambiental (APAs), zonas de preservação da vida silvestre (ZPVs) ou parques. Essa situação coloca mais um problema para o reconhecimento e legalização das terras dos remanescentes que, por conviverem em harmonia com a fauna e fl ora locais, conseguiram a preservação de tais áreas e, agora, contraditoriamente, podem ser considerados não conservacionistas. Há, ainda, a sobreposição de documentos e situações legais nas terras quilombolas: proprietários com títulos, ocupantes (posseiros) em áreas devolutas, em áreas particulares, além de outros ocupantes que não têm nenhum vínculo com a comunidade e que também pleiteiam a regularização. Vale ainda ressaltar a existência de processos de usucapião, reintegração de posse e outros que já estavam em curso antes do dispositivo constitucional entrar em vigor.

Em decorrência do modo de organização do sistema escravocrata, que tinha o negro como objeto de trabalho e objeto sexual, ou seja, instrumento

de livre manuseio do senhor e da família patriarcal16, pode-se inferir que

os escravos nunca permaneceram passivos a esse sistema, sendo comum diversas formas de resistência, como assassinato dos senhores e dos capitães-do-mato, suicídio, guerrilhas, insurreições e, principalmente, o

16 Utilizamos a expressão ‘instrumento de manuseio da família patriarcal’ para apontar funções instrumentais a que eram submetidos os escravos como: ama de leite, companhia e brinquedo para os fi lhos do senhor.

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que representou a maior forma de resistência dos escravos: a criação dos quilombos.

Munanga (1995/1996) assegura que a presença do quilombo no Brasil e seu signifi cado têm a ver com alguns ramos dos povos bantu, cujos membros foram trazidos e escravizados nesta terra. No continente africano, seu conteúdo como instituição sócio-política e militar é resultado de uma longa história envolvendo diversos povos e regiões. O autor alega que o quilombo, no Brasil, é um retrato do quilombo africano devido ao seu conteúdo, pois foi “[...] reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma ou outra estrutura política na qual se encontram todos os oprimidos”. (MUNANGA, 1995/1996, p. 63).

Os quilombos tornaram-se alternativa ao sistema escravocrata, operando como refúgio de pessoas marginalizadas pelo regime, formado por fugitivos do serviço militar, criminosos, índios e mulatos. Os mocambos eram organizados internamente por meio de uma estrutura de poder político e hierárquico entre os membros. Tal estrutura fazia-se sentir em todas as esferas sociais do grupo, como familiar, religiosa, econômica, militar e social. Portanto, ao mesmo tempo em que os quilombos criavam uma sociedade alternativa, mostravam ser uma proposta para a classe oprimida viver de maneira coletiva.

Dentre os quilombos que representaram a força da resistência dos grupos marginalizados, o mais notório foi o quilombo dos Palmares, conhecido como a República de Homens Livres. Moura (1987) destaca que esse quilombo foi a maior manifestação contra a escravidão na América Latina, e perdurou por 65 anos. Possuía um território de, aproximadamente, 27.000 Km², que ia de Alagoas a Pernambuco, situado,

hoje, próximo ao município de Chã Preta – AL (Andalaquituche)17 até

Jaboatão dos Guararapes – PE (Amaro) e teve cerca de 20.000 a 25.000 habitantes. Sua economia baseava-se, principalmente, na agricultura, com plantações de milho, feijão, mandioca, batata-doce, banana e cana de açúcar. A organização familiar do mocambo estruturava-se nas

práticas de poliandria18 e poligamia, sendo a primeira instituída para os

segmentos da comunidade que não tinham poder de decisão no grupo e, a segunda, para os líderes, reis e/ou chefes dos quilombos. A religião

17 O mocambo de Andalaquituche e Amaro pertenciam ao quilombo dos Palmares. Para melhor visualização geográfi ca, acessar o site (QUILOMBO DOS PALMARES, 2009).

18 Poliandria, do grego poly-muitos e andros-homem, é a união em que uma só mulher é ligada a dois ou mais maridos ao mesmo tempo. Poligamia, do grego, signifi ca muitos matrimônios.

praticada no quilombo fundava-se no sincretismo religioso, integrando, assim, elementos do catolicismo e crenças africanas.

Ainda, de acordo com Moura (1986), a escravidão no Brasil teve características distintas de outros países, a começar pelo aspecto da

uniformidade19 de escravos presentes em diversas regiões. Esse fato foi

essencial para a continuação do sistema escravista, haja vista que os escravos eram divididos de acordo com os interesses da economia colonial. A sociedade da época classifi cava-se em duas classes fundamentais: a de senhores e escravos. A primeira consistia em classe dominante e, a segunda, oprimida. Os quilombos foram uma maneira de desgastar a força produtiva escravista pela sua ação militar, pelo rapto dos escravos das fazendas, fato que, do ponto de vista econômico, enfraquecia a força produtiva dos senhores.