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No século 4°, o principal tema de discussão teológica na igreja foi a natureza do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e a relação existente entre eles, o que resultou na elaboração da doutrina da Trindade. No século seguinte, um novo debate doutrinário atraiu a atenção dos cristãos, principalmente no oriente grego – o verdadeiro significado da pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus encarnado, e a relação entre a sua divindade e a sua humanidade. Foram protagonistas desse debate os representantes das duas principais correntes de pensamento da igreja antiga: as escolas de Alexandria (Egito) e Antioquia (Síria).

Essas duas importantes cidades tinham antigas e veneráveis tradições culturais e teológicas. Os principais pensadores cristãos de Alexandria haviam sido Clemente de Alexandria, Orígenes e Atanásio. Na Escola de Antioquia, mais recente, destacaram-se Eustáquio de Antioquia, Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuéstia. O único outro centro cristão no Oriente grego que rivalizava com elas era Constantinopla, a capital que Constantino havia inaugurado em 327, considerada a “nova Roma”. Tanto Alexandria quanto Antioquia tinham ambições políticas em relação ao novo centro do poder imperial, procurando colocar representantes seus nos cargos eclesiásticos mais destacados da capital, principalmente o de bispo ou patriarca. O objetivo de cada cidade era ampliar a sua influência e promover as suas ênfases teológicas, bastante diferentes entre si.

A primeira diferença entre as duas grandes escolas estava na sua hermenêutica. Os alexandrinos eram partidários do método alegórico de interpretação bíblica. Tal método havia sido desenvolvido no primeiro século da era cristã pelo estudioso judeu Filo, que, através da alegorização, procurou harmonizar a sua tradição com a cultura helenística, mostrando que as Escrituras eram compatíveis com a filosofia grega, especialmente o platonismo. Ele atribuía pouca importância ao significado literal e histórico das narrativas bíblicas, buscando antes o seu sentido alegórico ou espiritual. A exemplo de Clemente de Alexandria e Orígenes, muitos estudiosos cristãos passaram a usar esse método hermenêutico, buscando em todas as partes das Escrituras referências ocultas ao Logos e às realidades espirituais. Alegavam que o próprio apóstolo Paulo havia utilizado esse método ao falar da lei e do evangelho em Gálatas 4.21-31. Antioquia, por outro lado, sem desprezar inteiramente a alegoria, deu mais ênfase à interpretação bíblica literal e histórica. Essa abordagem foi exemplificada por Teodoro de Mopsuéstia (†428), considerado o maior comentarista bíblico da igreja antiga, que se recusou a interpretar alegoricamente até mesmo o livro de Cântico dos Cânticos, considerando-o uma verdadeira poesia de amor. Esse diferente entendimento das Escrituras pelas duas escolas armou o palco para o conflito cristológico.

Em segundo lugar, as duas teologias divergiam quanto à idéia da salvação. A soteriologia alexandrina, exemplificada por Orígenes e Atanásio, partia do antigo conceito oriental de deificação. Para que a natureza humana fosse transformada pela natureza divina, era necessária uma íntima união entre o divino (o Logos) e o humano em Cristo. Além disso, a ênfase dessa escola no caráter imutável e impassível de Deus exigia que essa união não transmitisse para a natureza divina as limitações e imperfeições próprias das criaturas. Sem deixar de concordar com a idéia de divinização e com a diferença essencial entre as duas naturezas, os antioquinos davam mais ênfase que os alexandrinos ao papel humano na salvação. Em outras palavras, a soteriologia alexandrina entendia a salvação como um mistério metafísico efetivado pelo Logos mediante a união com a humanidade em Jesus Cristo. Para os antioquinos, a salvação foi uma realização moral e ética efetuada por um ser humano ao unir sua vontade à do Logos divino. A principal diferença estava na percepção da humanidade de Jesus Cristo, um instrumento passivo para os alexandrinos, um agente participante para os antioquinos.

Essas duas perspectivas sobre as Escrituras e a salvação levaram a dois entendimentos muito diferentes sobre a pessoa de Jesus Cristo. O modo como os alexandrinos, a exemplo de Atanásio, falavam sobre a encarnação pode ser descrito como uma cristologia “Verbo-carne”, ou seja, o Filho de Deus assumiu a carne humana sem de fato entrar na existência humana em toda a sua plenitude. Os antioquinos consideraram essa posição inaceitável por truncar a humanidade de Jesus Cristo. Sua posição ficou conhecida como uma cristologia “Verbo-homem”, na qual a humanidade de Cristo não era passiva, mas ativa, integral e completa. Enquanto os primeiros davam ênfase à união entre o divino e o humano em Jesus Cristo (sua fórmula preferida era: “Uma só natureza após a união”), sendo acusados de docetismo pelos antioquinos, estes insistiam na distinção entre as duas naturezas, sendo acusados de adocionismo (Deus adotou um ser humano como filho). Em suma, segundo os alexandrinos a salvação dependia de uma encarnação genuína, mas não de uma natureza humana plena e integral, ao passo que para os antioquinos a verdadeira encarnação exigia que Cristo fosse um homem exatamente igual aos demais homens, embora sem pecado.

A posição de Alexandria (Verbo-carne) é tipificada pelo bispo Apolinário de Laodicéia, que foi condenado por Gregório Nazianzeno e pelo Concílio de Constantinopla. No esforço de defender o conceito alexandrino de salvação, ele negou a humanidade integral de Jesus Cristo, resumindo-a ao corpo, sem incluir uma alma ou mente racional humana, que foi substituída pelo Logos. Gregório de Nazianzo argumentou contra isso dizendo que o Filho de Deus só poderia curar aquilo que ele assumiu. Se toda a natureza humana pecou, ela precisava ser assumida plenamente pelo Logos a fim de ser redimida. Por sua vez, o grande defensor da posição antioquina foi o já mencionado Teodoro de Mopsuéstia, cuja cristologia se concentrou em três questões principais: a imutabilidade do Logos, o livre-arbítrio de Jesus Cristo e a realidade da vida humana de Jesus. Para ele, a encarnação foi o processo pelo qual o Logos assumiu uma pessoa humana e a recíproca obediência dessa pessoa humana ao Logos. Em conclusão, os alexandrinos pareciam dizer que Jesus Cristo é uma só natureza e uma só pessoa (divina), enquanto que os antioquinos davam a entender que ele é duas naturezas e duas pessoas.

Informações adicionais Textos: Bettenson, 91-92.

Análises: Olson, 205-214; González, I:325-340; McGrath, 56s, 417-420; Hägglund, 75-78; Kelly, 114-117, 228-234; Berkhof, 93-98; Tillich, 95-100; EHTIC, III:452-54 (teologia alexandrina), III:463-65 (teologia antioquiana). Autores católicos: Padovese, 53-56.