• Nenhum resultado encontrado

PERÍODO MEDIEVAL

5. Guilherme de Occam

Os últimos séculos da Idade Média foram palco de dramáticos eventos nas esferas cultural, política e religiosa da Europa, os quais serviram de prelúdio para a Reforma Protestante do século 16. Foi um período de grandes comoções, como guerras ferozes,

epidemias devastadoras, conflitos entre nobres e camponeses e aumento do sentimento nacionalista. Os séculos 14 e 15 também testemunharam uma série de crises na igreja, envolvendo principalmente o papado. Por quase setenta anos (1309-1377), no período conhecido como o Cativeiro Babilônico da Igreja, os papas residiram em Avinhão, no sul da França, sendo controlados pelos reis franceses. Em seguida, durante quarenta anos, ocorreu o chamado Grande Cisma, com a existência simultânea de dois e finalmente três papas (Roma, Avinhão e Pisa). No âmbito intelectual, houve o Renascimento ou Renascença, um movimento da elite cultural marcado pelo individualismo, ênfase na liberdade e contestação das formas tradicionais de autoridade. Um aspecto fundamental dessa nova mentalidade foi o humanismo, que traduzia um forte otimismo em relação à criatividade humana e grande interesse pelas artes e ciências – as humanidades. Outro fator foi a insatisfação crescente com o escolasticismo e com uma série de distorções na vida da igreja.

Um teólogo que se destacou nesse período de transição foi o inglês Guilherme de Occam ou Ockham (c. 1285-1349). Ele nasceu perto de Guildford, no condado de Surrey, e estudou na Universidade de Oxford, onde ingressou na ordem franciscana e lecionou teologia e filosofia até 1324. Seus problemas começaram quando escreveu um trabalho acadêmico sobre os Quatro livros de sentenças (c. 1150), do teólogo italiano Pedro Lombardo. Essa obra era uma compilação de citações da Bíblia e dos pais da igreja, especialmente Agostinho, sobre uma grande variedade de temas e se tornou o principal compêndio de teologia da Europa medieval. Muitos estudantes de teologia tinham de escrever um comentário desse texto. Em 1324, o comentário de Occam foi condenado como heterodoxo por um sínodo inglês. Ele teve de se defender diante da cúria papal em Avinhão, ficando detido por dois anos até a sua condenação como herege em 1326. Uma das razões da condenação foi seu apoio aos franciscanos radicais, críticos da opulência dos papas e da igreja. Occam encontrou refúgio na corte do imperador Luís da Bavária, em Munique, que estava envolvido numa disputa com o papa. Nessa cidade, onde passou o restante da vida, escreveu a maior parte de suas grandes obras de lógica, teologia e ética. Morreu vitimado pela peste, sem reconciliar-se com a igreja.

Occam é conhecido na história intelectual por ter elaborado uma teoria dos universais conhecida como nominalismo moderado ou conceitualismo, em muitos aspectos semelhante à teoria de Pedro Abelardo. Como já foi visto, os universais são qualidades atribuídas a um conjunto de coisas – um gênero – tais como “brancura”, “beleza” ou “bondade”. Os realistas, herdeiros da tradição platônica-agostiniana, declaravam que os universais são reais, isto é, têm existência objetiva, e que sem isso não se poderia ter uma visão racional e ordenada do universo, pois a ordem da realidade não passaria de algo imposto pela mente humana às coisas, não sendo uma realidade inerente a elas e apenas descoberta pelo intelecto. Eles argumentaram que esse entendimento tinha profunda ligação com a fé cristã, citando como exemplos a natureza humana de Cristo, a substância divina única da Trindade e especialmente a igreja como o corpo místico de Cristo. Daí a sua reação tão forte contra outras posições.

Occam rejeitou todas as formas do realismo, afirmando que as proposições universais não têm existência na realidade, sendo apenas símbolos ou convenções mentais. Uma das razões dessa rejeição estava no princípio conhecido como “navalha de Occam”,

segundo o qual se um fenômeno da natureza pode ser explicado por um único antecedente causal, é inútil postular outras explicações (por exemplo, uma natural e outra espiritual). Para ele, a realidade podia ser descrita adequadamente sem referência aos universais; portanto, eles eram supérfluos. Além disso, ele os considerava contraditórios e ilógicos (algo individual não pode existir em várias coisas simultaneamente e permanecer individual). Para Occam, em seu pensamento mais maduro, os universais eram imagens mentais com existência real, mas apenas na mente, como idéias. Não são coisas reais fora da mente (realismo), nem meros termos arbitrários (nominalismo extremado). Ele fundamentou o conhecimento na apreensão direta dos objetos individuais, pois somente o indivíduo existe objetivamente. Essa foi uma idéia revolucionária que teria contribuído para o início da ciência moderna.

Tais concepções também tiveram amplas conseqüências para a teologia. Em primeiro lugar, a rejeição do realismo levou Occam a se afastar da teologia natural escolástica, que tirava conclusões sobre Deus e as realidades espirituais segundo uma ordem lógica inerente no universo e percebida pela mente. Para ele, só uma verdade sobre Deus podia ser estabelecida pela razão – sua existência. Tudo o mais, inclusive o monoteísmo, depende da fé na revelação especial, posição essa conhecida como “fideísmo”. A razão não pode levar ao conhecimento das realidades invisíveis e espirituais, não acessíveis à experiência sensorial.

Em segundo lugar, Occam fez uma distinção entre dois poderes de Deus – potentia absoluta (o poder absoluto e ilimitado de Deus) e potentia ordinata (seu poder ordenado na realidade, conforme ele atua no mundo). No primeiro caso, Deus tem o poder de desejar uma coisa diferente do que faz; no segundo, ele tem o poder de desejar o que faz. Em outras palavras, as ações de Deus no mundo decorrem exclusivamente da sua vontade irrestrita, e não de sua natureza ou essência imutável (uma proposição universal com realidade objetiva) ou das estruturas eternas da realidade que refletem essa natureza. Assim, Deus não ordena as coisas porque são boas; elas são boas simplesmente porque Deus as ordena. A moralidade e a própria salvação estão fundadas somente na vontade de Deus. É o que se denomina “voluntarismo”. Essa posição foi objeto de muitas críticas e exerceu forte influência sobre Lutero.

O aspecto mais radical e controvertido da teologia de Occam foi sua eclesiologia. Ele negou a essência invisível e espiritual da igreja, que supostamente residia no clero, e identificou a igreja, o corpo de Cristo, com o conjunto dos fiéis, a comunidade dos cristãos. A partir daí, criticou a estrutura hierárquica da igreja, especialmente o papado, e defendeu um modelo mais bíblico e participativo de liderança eclesiástica. Seu pensamento influenciou os “conciliaristas”, como Marsílio de Pádua (1275-1342), segundo os quais a igreja devia ser governada por concílios e não por um único indivíduo. Esse movimento foi muito popular no final da Idade Média, tornando-se um dos fatores que prepararam o terreno para a Reforma Protestante.

Textos:

Análises: Olson, 357-365; González, II:305-312; Lane, I:160-163; Hägglund, 169-172; Tillich, 202-204; McGrath, 82-83.

6. João Wycliffe

O pré-reformador João Wycliffe (c. 1330-1384) nasceu em Lutterworth, condado de Yorkshire, na Inglaterra. Estudou na Universidade de Oxford e foi ordenado sacerdote. Ainda jovem, começou a lecionar no Balliol College, da mesma universidade, onde alcançou alta reputação como erudito e defensor de reformas na igreja. Como muitos de seus colegas, era um funcionário da coroa inglesa, servindo como mediador entre esta e a igreja em questões patrimoniais, tributárias e outras. Escreveu dois livros sobre a teoria governamental: O senhorio divino e O senhorio civil. Defendeu a teoria de que o poder civil tinha o direito de se apossar das propriedades do clero corrupto. Produziu várias obras de teologia: O ofício do rei, A veracidade das Escrituras Sagradas, A igreja, O poder do papa, A eucaristia e O ofício pastoral. Em 1377, dezoito “erros” seus foram condenados pelo papa, a pedido de alguns professores de Oxford. Recebeu, todavia, a proteção da rainha-mãe. No ano seguinte, começou a criticar o Grande Cisma, a existência de dois papas simultâneos, e também diversas doutrinas católicas, como a transubstanciação. Teve a proteção real até 1381, quando apoiou abertamente a revolta dos camponeses. Sofrendo pressões da universidade e dos bispos, retornou à sua paróquia natal, onde passou seus últimos anos escrevendo e organizando uma sociedade de pregadores leigos, os lolardos. Trinta anos após sua morte, foi condenado como herege e excomungado (!) pelo Concílio de Constança (1415), o mesmo que queimou na fogueira seu seguidor tcheco João Hus. Em 1428, seus ossos foram exumados e queimados, sendo as cinzas lançadas no rio Swift.

Ao contrário de Guilherme de Occam, Wycliffe era um ardoroso realista no que se refere às proposições universais, na melhor tradição de Agostinho e Anselmo. Como tal, criticou a transubstanciação, que havia se tornado um dogma semi-oficial da igreja no 4° Concílio Lateranense (1215). Segundo essa crença, no momento da consagração a substância dos elementos da Ceia se transforma no corpo e no sangue de Cristo, enquanto que os “acidentes”, isto é, as qualidades exteriores do pão e do vinho, permanecem os mesmos. Em sua obra A eucaristia, Wycliffe argumentou que essa doutrina desonra a Deus, o autor de todas as substâncias, e viola as regras básicas da metafísica e da lógica – quando uma substância é destruída, seus acidentes também o são. Segundo ele, por meio do Espírito Santo as substâncias do pão e do vinho contêm a “presença real” de Jesus Cristo. Como Cristo é duas substâncias, terrena e divina, também a eucaristia é o corpo do pão natural e o corpo de Cristo. Divergindo de Agostinho, rejeitou o conceito ex opere operato, insistindo que os sacramentos só podem transmitir graça se forem recebidos com fé. Suas posições anteciparam o pensamento dos reformadores magisteriais, especialmente Calvino.

Os conceitos de Wycliffe sobre o ministério cristão foram particularmente importantes em sua luta por reformas. Ele argumentou que, mais que orar e ministrar os sacramentos, a responsabilidade principal do sacerdote era pregar o evangelho. Os ministros deviam ser escolhidos pelos próprios membros de cada paróquia. Assim, a igreja devia ser governada pelos fiéis através de seus representantes, e não pela hierarquia. Censurou o poder, as riquezas, a corrupção e os abusos de autoridade e chegou a defender a abolição do papado. Também rejeitou o sistema meritório penitencial elaborado minuciosamente desde a época de Gregório Magno. Sem desprezar as autênticas obras de amor como parte da vida cristã, atribuiu todo o mérito somente a Cristo e enfatizou a graça

e a fé. Antecipando Lutero, condenou também as indulgências, documentos de absolvição das penalidades temporais do pecado, como o purgatório. Afirmou ainda a crença na predestinação.

A contribuição mais importante de Wycliffe no âmbito da teologia foi a sua defesa da autoridade suprema das Escrituras como norma de fé, acima da tradição, dos decretos papais e do magistério eclesiástico. Em sua obra A veracidade das Escrituras Sagradas (1378), afirmou a infalibilidade da Palavra de Deus, que se interpreta a si mesma (analogia da Escritura), bem como o papel do Espírito Santo em iluminar a mente dos leitores. No aspecto prático, liderou a tradução da primeira Bíblia completa em inglês – a Bíblia de Oxford (1384), e nos seus últimos anos em Lutterworth organizou um grupo de pregadores leigos, mais tarde chamados lolardos, que ajudaram a preparar a reforma inglesa. Através de João Hus, sua influência se estendeu a outras partes da Europa. Por todas essas razões, Wycliffe foi cognominado “A estrela matutina da Reforma”.

Textos: Bettenson, 265-274.

Análises: Olson, 365-370; González, II:314-321; Lane, I:169-172; Hägglund, 172; Tillich, 206-211.