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PERÍODO MODERNO

1. O escolasticismo protestante

No século 16, os três ramos da Reforma magisterial (luteranos, reformados e anglicanos) permaneceram relativamente estáveis. Porém, no século seguinte eles sofreram rupturas e geraram novos movimentos. O luteranismo viu surgir o piestismo, com sua forte ênfase na experiência e na emoção religiosa; o anglicanismo, dividido entre ritualistas e puritanos, deu origem aos congregacionais, aos batistas e mais tarde aos metodistas. Os reformados enfrentaram uma séria controvérsia no início do século 17, na Holanda, onde se defrontaram calvinistas ortodoxos e seguidores do pastor e teólogo Jacó Armínio, os quais rejeitaram a doutrina calvinista clássica em favor da posição de Erasmo de Roterdã e dos anabatistas, favorável ao sinergismo e ao livre-arbítrio. Essa tentativa de reforma da teologia reformada acabou gerando uma nova teologia protestante – o arminianismo.

O contexto teológico dessa controvérsia foi o chamado escolasticismo ou ortodoxia protestante. Os primeiros reformadores reagiram contra a teologia escolástica, com sua ênfase na razão. Todavia, seus seguidores imediatos utilizaram a filosofia e a lógica para articular sistemas altamente complexos de teologia. Seu objetivo era definir mais precisamente a herança doutrinária dos diferentes grupos, muitas vezes no contexto de intensas controvérsias – a luta contra heresias e contra as críticas dos adversários católicos e protestantes. Tratava-se de uma teologia acadêmica caracterizada pela detalhada classificação dos temas, definições precisas, deduções lógicas e especulação metafísica, bem como pela tentativa de eliminar o elemento de mistério, incerteza e ambigüidade. Muitos pensadores, mesmo sem perceber, imitaram o estilo de Tomás de Aquino. O escolasticismo protestante ou ortodoxia protestante manifestou-se tanto entre os luteranos quanto entre os reformados. Resultou no surgimento das primeiras teologias sistemáticas e de documentos confessionais bastante longos e elaborados.

Um exemplo clássico dessa preocupação entre os calvinistas foi Teodoro Beza (1519-1605), sucessor de João Calvino, diretor e professor da Academia de Genebra, teólogo muito influente no movimento reformado. A partir de uma reflexão sobre os decretos de Deus, Beza formulou uma posição teológica denominada supralapsarismo (de supra = antes e lapsus = queda). Calvino havia ensinado a doutrina da predestinação, mas a situou dentro da soteriologia, como parte da atividade graciosa de Deus, admitindo que se tratava de uma área difícil, delicada e misteriosa. Beza deu maior ênfase a essa doutrina e a situou dentro da doutrina de Deus, aproximando-se mais de Zuínglio do que de Calvino.

Visando proteger a doutrina da predestinação de qualquer possibilidade de sinergismo, ele e outros calvinistas ortodoxos desenvolveram o supralapsarismo ao refletir sobre a ordem lógica, não cronológica, dos decretos de Deus. Nessa corrente, a ordem dos decretos ficou sendo a seguinte: 1. decreto de predestinar alguns para a salvação e outros para a perdição; 2. decreto de criar o mundo e a humanidade; 3. decreto de permitir a queda; 4. decreto de prover os meios de salvação (Cristo e o evangelho); 5. decreto de aplicar a salvação aos eleitos.

Como se pode ver, o decreto de predestinação é o mais fundamental, antecedendo todos os demais, em especial o de permitir a queda. Daí, supralapsarismo, isto é, antes da queda. Outros teólogos ortodoxos elaboraram uma posição um pouco diferente – o infralapsarismo, ou seja, o decreto de predestinação é posterior à queda, da seguinte maneira: 1. decreto de criar o mundo e os seres humanos; 2. decreto de permitir a queda; 3. decreto de predestinação para a salvação ou a perdição, sendo o quarto e o quinto semelhantes à outra posição. Assim sendo, no supralapsarismo o propósito de Deus é glorificar a si mesmo pela predestinação; no infralapsarismo, seu propósito é glorificar-se pela criação. No primeiro caso, o decreto se aplica aos homens como criaturas; no segundo, se aplica a eles como pecadores.

Na segunda metade do século 16, os partidários dessas duas correntes gradualmente formularam um sistema de teologia calvinista que posteriormente recebeu a designação de “os cinco pontos do calvinismo”: (a) depravação total: os seres humanos estão mortos espiritualmente até que Deus os regenere e lhes conceda graciosamente a dádiva da salvação; (b) eleição incondicional: Deus escolhe alguns seres humanos para a salvação, independentemente de qualquer coisa que eles possam fazer; (c) expiação limitada: Cristo morreu somente para salvar os eleitos; sua morte expiatória não foi em benefício de todos; (d) graça irresistível: não é possível resistir à graça de Deus; os eleitos serão necessariamente salvos; (e) perseverança dos santos: os eleitos irão perseverar inevitavelmente para a salvação (eterna segurança). As iniciais dessas expressões em inglês formam a palavra tulip (“tulipa”), nome pelo qual elas também ficaram conhecidas historicamente.

Outros destacados teólogos reformados desse período foram os holandeses Johannes Cocceius (1603-1669) e Gisbertus Voetius (1588-1676), o francês Moise Amiraut (1596- 1664) e especialmente o suíço François Turretin (1623-1687). Este último escreveu uma teologia sistemática muito influente, Institutio Theologiae Elencticae (1679-1685), que seria utilizada por muitos anos no Seminário de Princeton, nos Estados Unidos, servindo de base para a chamada Teologia de Princeton.

A mesma preocupação com uma ortodoxia rigorosa surgida entre os reformados a partir do final do século 16 também ocorreu entre os luteranos. Poucas décadas após a morte de Martinho Lutero, os principais teólogos do movimento começaram a sistematizar racionalmente a doutrina, elaborando formulações extremamente detalhadas, muitas vezes mediante o uso da teologia natural e da lógica aristotélica. Esse esforço se concentrou nas principais universidades luteranas, nas quais a teologia era encarada como um conjunto de verdades formalmente declaradas para serem transmitidas a cada nova geração. Além de suas tendências escolásticas e racionalistas, essa ortodoxia tinha uma forte preocupação

polêmica que se manifestava na pregação e no ensino. Foi esse o treinamento teológico recebido pela maior parte dos pastores luteranos do período.

Como no caso dos reformados, a ortodoxia luterana teve aspectos positivos e alguns de seus representantes foram indivíduos de grande piedade e fervor cristão. Todavia, de um modo geral o intelectualismo e o formalismo que ela estimulou foram prejudiciais para a fé, produzindo frieza espiritual, moral e teológica. O cristianismo verdadeiro era equiparado à correção doutrinária e sacramental. A ênfase principal não era colocada na espiritualidade interior, mas em elementos externos como a liturgia, os sacramentos e as confissões luteranas. Um exemplo disso foi o aumento da crença na regeneração batismal, ou seja, a idéia de que o batismo produz automaticamente a salvação. Além disso, a ênfase de Lutero na justificação forense ou externa levava muitas pessoas a desprezar a importância da santidade pessoal. Tudo isso produziu aquilo que os pietistas iriam denominar uma “ortodoxia morta”.

Textos:

Análises: Olson, 466-471, 487-489; González, III:251-302; Hägglund, 229-230, 259-279; McGrath, 112-116, 533-535; Costa, 233-254; Tillich I, 272-278; Tillich II, 43-48.

2. O arminianismo

No início do século 17, surgiu na Holanda uma forte reação contra o conceito calvinista clássico sobre a predestinação, que teve como líder inicial o pastor e teólogo Jacó Armínio (1560-1609). Na época em que ele nasceu, os holandeses lutavam contra o domínio da Espanha católica. Revolucionários dos Países Baixos criaram uma aliança conhecida como Províncias Unidas, das quais a maior e mais forte era justamente a Holanda. Ao mesmo tempo em que se libertaram do jugo espanhol, os holandeses criaram sua igreja nacional protestante. A igreja reformada de Amsterdã, fundada em 1566, aceitava os princípios protestantes básicos, sem ser rigorosamente luterana ou calvinista.

Armínio, natural de Oudewater, recebeu uma formação moderadamente calvinista. Aos quinze anos, foi estudar em Marburg, na Alemanha. Na sua ausência, sua família foi totalmente dizimada por soldados leais à Espanha. O jovem ficou sob os cuidados de um respeitado pastor de Amsterdã. Sendo um promissor candidato ao ministério, tornou-se um dos primeiros alunos da Universidade de Leyden. Em seguida, a igreja de Amsterdã o enviou para a Academia de Genebra, onde ele estudou com Teodoro Beza. Em 1588, aos 28 anos, iniciou seu pastorado na igreja reformada de Amsterdã, vindo a ser um conceituado pastor e pregador. Casou-se com a filha de um ilustre cidadão local. Foi então que começou a criticar abertamente o supralapsarismo, comum entre os pastores holandeses por influência de Beza e da Academia de Genebra. A controvérsia se agravou na década de 1590. Em uma série de sermões sobre a epístola aos Romanos, Armínio também começou a negar a eleição incondicional, a expiação limitada e graça irresistível, bem como a doutrina da predestinação como um todo. Os calvinistas ortodoxos o acusaram de heresia, mas ele, apelando à tradição holandesa de independência teológica e tolerância da diversidade, foi inocentado. Em 1603, foi nomeado para a cátedra de teologia da Universidade de Leyden, tendo como colega o supralapsariano estrito Francisco Gomaro. Este promoveu uma intensa

campanha contra Armínio, chegando a acusá-lo de ser simpatizante dos jesuítas e do socinianismo, um movimento racionalista. A controvérsia causou uma guerra civil entre as províncias, de 1604 até 1609, quando Armínio morreu vitimado pela tuberculose.

No ano seguinte, 46 pastores e leigos redigiram um documento – a “Remonstrância” – resumindo em cinco pontos a rejeição do calvinismo clássico: o decreto eterno de salvação refere-se àqueles que irão crer e perseverar na fé; Cristo morreu por todos os homens, embora somente os crentes sejam beneficiados por sua morte; o homem não pode fazer nada realmente bom até que tenha nascido de novo por meio do Espírito Santo; a graça não é resistível; os fiéis são assistidos pela graça nas tentações e são impedidos de cair se desejarem o auxílio de Cristo e “não forem inativos”. Os remonstrantes incluíam alguns líderes políticos que haviam participado da luta contra a Espanha. Renovaram-se os tumultos. O principal líder dos Países Baixos, príncipe Maurício de Nassau, apoiou os calvinistas. Para tratar da questão, foi convocado um sínodo nacional de teólogos e pastores. O Sínodo de Dort ou Dordrecht, de novembro de 1618 a janeiro de 1619, reuniu mais de cem delegados, inclusive da Inglaterra, Escócia, França e Suíça. Os remonstrantes foram condenados por heresia. Cerca de 200 foram depostos do ministério e uns 80 foram exilados ou presos, entre eles o presbítero, estadista e filósofo Hugo Grotius (1583-1645). Um líder político foi executado. Em resposta aos cinco pontos dos remonstrantes, os cânones do Sínodo de Dort afirmaram um conjunto de doutrinas ortodoxas que foram sintetizadas nos mencionados cinco pontos do calvinismo. O sínodo não se pronunciou sobre o supra e o infralapsarismo. Após a morte do príncipe Maurício em 1625, o arminianismo ressurgiu na Holanda, sendo organizada em 1634 a Fraternidade Remonstrante, depois Igreja Reformada Remonstrante.

A teologia de Armínio está contida em um grande número de tratados. Suas principais obras sobre a controvérsia arminiana, escritas entre 1602 e 1608, são Exame do panfleto do Dr. Perkins sobre a predestinação, Declaração de sentimentos, Carta endereçada a Hipólito A. Collibus e Artigos que devem ser diligentemente examinados e ponderados. Armínio fez questão de afirmar que sustentava os princípios protestantes básicos, inclusive a salvação pela graça mediante a fé, dando-lhe, todavia, sua própria interpretação. Como foi visto, inicialmente ele rejeitou fortemente o supralapsarismo, considerando-o uma doutrina perniciosa. Rejeitou também o infralapsarismo e o monergismo como um todo, alegando que torna Deus o autor do pecado, é contrário à natureza amorosa de Deus e à liberdade humana, e conflita com o desejo de Deus de salvar a todos, entre outros argumentos. Propôs um conjunto alternativo de quatro decretos de Deus referentes à salvação: 1. decreto de nomear Jesus Cristo como mediador e salvador; 2. decreto de receber aqueles que se arrependessem e cressem, salvando em Cristo os penitentes e crentes que perseverassem até o fim e sujeitando à condenação os impenitentes e incrédulos; 3. decreto de administrar de modo suficiente e eficaz os meios necessários ao arrependimento e à fé; 4. decreto de salvação ou perdição das pessoas, fundamentado na presciência divina.

Armínio começou fazendo uma distinção entre a providência de Deus e a predestinação. Elas incluem diferentes decretos. Na sua providência, Deus decreta permitir a queda. Ele não poderia evitá-la depois de criar os seres humanos dotados com o livre- arbítrio. Ou seja, Adão não caiu por decreto de Deus, mas por simples permissão dele. A

predestinação se refere aos seres humanos como caídos e carentes de redenção. Depois que eles caíram, ou em virtude de saber que cairiam, Deus decretou providenciar um salvador e salvar por meio dele todos os que se arrependessem e cressem, deixando na perdição os demais. Quanto à predestinação da humanidade caída, trata-se de algo que se aplica a grupos, não a indivíduos. Os objetos da eleição e da condenação são conjuntos indefinidos de pessoas – os crentes e os incrédulos. Em Romanos 9, Esaú e Jacó representam esses dois grupos, os que buscam a justificação pelas obras ou pela fé. Já a predestinação de indivíduos é condicional e se baseia somente na presciência de Deus acerca do que eles farão livremente com a liberdade que Deus lhes dá.

Ao tentar esclarecer como a salvação pode ser unicamente pela graça e não por obras, Armínio propôs o conceito de “graça preveniente”. Essa graça é oferecida a todas as pessoas e é absolutamente necessária para que os pecadores – mortos em pecado e escravos na vontade – creiam e sejam salvos. Ela é necessária, mas não suficiente, e pode ser resistida. Se a pessoa não resistir à graça preveniente e permitir que opere em sua vida pela fé, ela se tornará em graça justificadora. Aqui está o sinergismo de Armínio. A vontade humana, libertada pela graça preveniente (a operação do Espírito Santo), precisa cooperar reconhecendo a necessidade de salvação e permitindo que Deus conceda a fé. Esse conceito da graça preveniente é o que distingue o arminianismo do pelagianismo ou do semipelagianismo, ao atribuir a Deus a iniciativa da salvação e reconhecer a incapacidade do ser humano de contribuir para a própria salvação sem a graça auxiliadora de Cristo.

Armínio não negou explicitamente a depravação total e a perseverança dos santos, embora arminianos posteriores o tenham feito. O maior impacto do arminianismo ocorreu na Inglaterra e nos Estados Unidos, entre os anglicanos, batistas gerais e metodistas. Os herdeiros de Armínio se dividiram em dois grupos – arminianos da mente: deístas, defensores da teologia natural, liberais dos séculos 18 e 19, e arminianos do coração: pietistas, metodistas, pentecostais e outros. O teólogo holandês se propôs a reformar a teologia reformada, mas criou um paradigma protestante inteiramente novo, embora já presente parcialmente na teologia anabatista – o sinergismo evangélico.

Textos: Bettenson, 372-374.

Análises: Olson, 465-466, 471-483; González, III:269-302; Lane, II:23-28; Hägglund, 229- 230; McGrath, 535-536; Berkhof, 136-138, 169-171, 198-199.

3. O pietismo

Assim como o arminianismo foi uma reação contra a ortodoxia reformada ou calvinista, o pietismo reagiu contra a excessiva preocupação luterana com a ortodoxia. Naturalmente, foram duas reações bastante diferentes, o arminianismo na área da teologia em si e o pietismo no âmbito da espiritualidade. Infelizmente, o termo “pietismo” tem hoje, com freqüência, um sentido negativo, significando uma espiritualidade individualista, subjetiva, emocional e alienada do mundo, muitas vezes associada a um sentimento de superioridade religiosa. O pietismo pode levar a essas atitudes, mas o movimento original não teve esses fatores como suas características principais. Na verdade, ele foi um vigoroso movimento de renovação e revitalização do luteranismo nos séculos 16 e 17, tendo como

objetivo completar a Reforma, ou seja, suprir alguns elementos que supostamente faltaram na obra de Lutero. A reforma doutrinária do pioneiro precisava ser complementada por uma reforma igualmente necessária na vida cristã pessoal. Ao contrário da ênfase nas crenças ou doutrinas corretas (ortodoxia), os pietistas valorizaram os sentimentos corretos (ortopatia) e o viver correto (ortopraxia). Sua marca característica foi a preocupação com a experiência religiosa pessoal, particularmente o arrependimento e a santificação.

O precursor do movimento pietista foi o pastor luterano Johann Arndt (1555-1621), autor da influente obra devocional O cristianismo verdadeiro (1610). Considerado a Bíblia do pietismo, esse livro foi a obra mais lida e influente da Alemanha depois da própria Bíblia. Ao invés da justificação pela fé, deu ênfase ao novo nascimento e à união com Cristo mediante o arrependimento e a fé genuínos, que envolvem o “coração”. O verdadeiro cristianismo não consiste em fórmulas doutrinárias, sacramentos e liturgia, mas em mudanças visíveis nas atitudes, afeições e modo de vida do cristão. As transformações na área afetiva irão influenciar o plano intelectual. Em outras palavras, a ortodoxia no ensino e na doutrina seria assegurada pelo arrependimento genuíno e pelo viver santo, e não pelas elaborações sistemáticas e discussões polêmicas.

O patriarca ou fundador do pietismo propriamente dito foi Philipp Jakob Spener (1635-1705). Nascido na Alsácia, ele teve como madrinha uma condessa rica e profundamente piedosa em cujo castelo leu O cristianismo verdadeiro e foi educado na nova forma de espiritualidade. Ajudado por sua mentora, estudou teologia em Estrasburgo e Basiléia. Passou algum tempo em Genebra, onde recebeu a influência do pregador reformado Jean de Labadie (1610-1674), outro simpatizante do cristianismo experimental. Ao iniciar o seu pastorado em Frankfurt, Spener estava firmemente decidido a implementar essa nova visão da vida cristã. Como o principal ministro da cidade, ele implantou um programa de reformas que incluiu a criação de collegia pietatis (grupos de devoção), também denominados “conventículos de Frankfurt”. Tratava-se de pequenos grupos que se reuniam nas casas e nas igrejas para orar, estudar a Bíblia, debater sermões e cultivar a vida cristã. Essa iniciativa mostrou-se controvertida e atraiu muitas críticas, principalmente por causa do espaço dado aos leigos. Seu objetivo era infundir o “cristianismo do coração”, uma vida de forte devoção a Cristo e santidade pessoal.

O nome “pietismo” derivou de uma pequena obra de Spener, Pia desideria ou “desejos piedosos” (1675), que continha tanto uma forte crítica da situação da igreja estatal luterana quanto um programa de reformas. Nesse texto clássico do pietismo, Spener censurou as falhas morais e espirituais dos líderes civis e eclesiásticos, a crença na eficácia automática do batismo e o cristianismo formal e nominal. Sem rejeitar o luteranismo e a prática do batismo infantil, apresentou uma série de “propostas para corrigir as condições da igreja” com seis etapas, incluindo a difusão dos collegia pietatis, maior disciplina espiritual, espírito pacífico nas controvérsias e ênfase à espiritualidade na formação dos pastores. No final do livro, o autor revelou o propósito fundamental do pietismo – a doutrina do “homem interior” ou do “novo homem” já presente na obra de Arndt. Por causa das controvérsias, Spener foi expulso da Frankfurt. Após cinco anos como capelão na corte do príncipe da Saxônia, em Dresden, mudou-se em 1691 para Berlim, onde pastoreou uma igreja influente e trabalhou pela difusão do movimento pietista na Alemanha. Quando

morreu, em 1705, o pietismo era um movimento influente nas igrejas luteranas de toda a Alemanha.

O continuador da obra de Spener e grande organizador do pietismo foi August Hermann Francke (1663-1727), que nasceu em Lübeck numa família culta e fortemente influenciada por esse movimento. Em 1684, foi estudar na Universidade de Leipzig, a cidadela da ortodoxia luterana, tornando-se o líder do movimento pietista local, o collegium philobiblicum (grupo dos amantes da Bíblia). Três anos depois, experimentou uma conversão radical marcada por conflitos e fortes emoções. Fez dessa experiência – centrada na “luta do arrependimento” – a norma para toda iniciação cristã genuína. Atraído para o círculo de Spener, dedicou-se ao programa de reforma da igreja luterana, dando-lhe continuidade após a formatura e início da carreira pastoral. Tornou-se o centro de uma grande controvérsia e foi acusado de heresia pelos colegas. Em 1690, ajudou a fundar a Universidade de Halle, influenciada por Spener. Fundou várias instituições caritativas, que incluíam escolas, orfanato, editora e centro de missões. Com o apoio do rei da Dinamarca, enviou à Índia os primeiros missionários estrangeiros protestantes. Tornou-se o educador mais requisitado da Alemanha, bem como o líder de um esforço beneficente que granjeou enorme simpatia, ilustrando a ênfase social do pietismo.

Outro personagem singular da história inicial desse movimento foi o conde Nikolaus Ludwig von Zinzendorf (1700-1760). Nascido em Dresden, onde era forte a influência de Spener, destacou-se desde a infância por sua profunda espiritualidade. Criado pela avó pietista, aos seis anos escrevia poesias de amor a Cristo. Aos dez anos, iniciou os estudos em Halle sob a rigorosa orientação de Francke. Em 1716, foi estudar Direito na Universidade de Wittenberg, onde ajudou a criar o grupo pietista “Ordem do grão de mostarda”. Mais tarde, trabalhou para o governo e comprou uma propriedade em Berthelsdorf, à qual deu o nome de Herrnhut (“vigília do Senhor”). Em 1727, acolheu nesse local um grupo de refugiados religiosos vindos da vizinha Morávia. Eram membros da Unitas Fratrum ou União dos Irmãos e herdeiros espirituais do pré-reformador João