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O conflito aberto entre as cristologias rivais teve início no Natal de 428, em Constantinopla. O novo patriarca daquela cidade, Nestório, partidário da escola de Antioquia, pregou um sermão contra um título muito popular atribuído a Maria – Theotokos (portadora ou mãe de Deus). Esse termo não apenas revelava a grande reverência prestada à mãe de Jesus, mas apontava para a plena divindade do seu filho. Ao proibir que esse termo fosse utilizado, por entender que era teologicamente inadequado, esse patriarca atraiu a ira dos alexandrinos.

Nestório nasceu na região de Antioquia no final do 4° século e morreu exilado no deserto do norte da África por volta de 450. Provavelmente foi discípulo do grande erudito Teodoro de Mopsuéstia. Em 428, o imperador Teodósio II, partidário da teologia antioquina, o elevou ao cobiçado cargo de bispo de Constantinopla, para frustração dos alexandrinos. O imperador e o patriarca perseguiram os cristãos da capital que favoreciam a teologia de Alexandria. Nesta cidade egípcia, era patriarca Cirilo, cujo episcopado se estendeu de 412 a 444. Sua reputação ficou manchada na história da igreja por duas razões: teria enviado espiões a Constantinopla para apanharem Nestório em alguma heresia e o seu pensamento serviu de ponte entre duas heresias: o apolinarismo, anterior a ele, e o monofisismo, posterior.

Nestório não tinha problemas com a veneração de Maria, e sim com a confusão entre as diferentes naturezas de Jesus Cristo. Seguindo o seu preceptor Teodoro de Mopsuéstia, ele argumentou que a natureza divina não pode nascer nem morrer. Ela é imutável, impassível, perfeita e incorruptível. Assim, o que nasceu de Maria foi a natureza humana de Jesus, e não a natureza divina. O máximo que se podia dizer é que Maria é Christotokos, ou seja, a portadora de Cristo. Com isso, Nestório não estava negando nem a divindade, nem o nascimento virginal de Jesus Cristo. Ele acreditava tão firmemente na divindade do Filho de Deus que negava qualquer atribuição a ele de características ou experiências próprias da criatura. Por outro lado, a Virgem Maria deu à luz o homem Jesus Cristo, que, desde o momento da sua concepção, estava intimamente unido ao Logos pré- existente e divino.

Nestório publicou seus argumentos contra o termo Theotokos na encíclica pascal de 429, tornando oficiais as suas declarações. Em Constantinopla, os alexandrinos começaram a fazer propaganda contra o patriarca, insinuando que ele era partidário do antioquino Paulo de Samosata, cuja heresia adocionista havia sido condenada há quase dois séculos. Ao mesmo tempo surgiu uma vigorosa troca de correspondência entre Cirilo e Nestório, na qual eles defenderam suas respectivas posições. Torna-se difícil entender o pensamento

desses líderes porque os seus argumentos são confusos, cheios de ambigüidades e, além disso, evoluíram ao longo do tempo. Mas não há dúvida de que pensavam de modo diverso sobre aspectos fundamentais da encarnação. No fim, a doutrina ortodoxa da pessoa de Cristo, definida após a morte deles, veio a ser uma espécie de meio-termo entre os seus conceitos.

A principal questão na cristologia de Nestório é que ele não podia conceber uma natureza humana sem uma pessoa ligada a ela. A verdadeira humanidade não poderia existir de modo algum sem uma pessoa humana individual que fosse o seu centro. Para ele, prosopon (pessoa) e physis (natureza) estão juntos, tanto na humanidade como na divindade. Por conseqüência lógica, ele teve de afirmar que Jesus Cristo era duas pessoas, a encarnação sendo a habitação mútua dessas pessoas uma na outra: o eterno Filho de Deus e o ser humano mortal Jesus. Tentando explicar como duas pessoas podiam ser uma só, Nestório postulou um tipo especial de união que denominou synapheia, em latim conjunctio (conjunção). Jesus Cristo era uma conjunção da natureza-pessoa divina com a natureza-pessoa humana: o Logos divino e eterno e a pessoa humana de Jesus em íntima união. Ele ilustrou essa relação com a analogia do casamento, em que duas pessoas diferentes se juntam em uma união que transcende as diferenças.

No seu esforço de afirmar a absoluta distinção das naturezas, Nestório acabou adotando, como acusou Cirilo, um adocionismo disfarçado, no qual o Verbo nunca assumiu realmente uma existência humana. Na encarnação, o Filho de Deus e o Filho de Davi formaram uma união – um vínculo de companheirismo e de cooperação de vontades – que transcendia as naturezas diferentes, mas um não participou realmente das experiências do outro. O Logos operou os milagres e o homem Jesus sofreu e morreu. Apesar do desejo louvável de preservar a integridade das duas naturezas e de valorizar a humanidade de Jesus Cristo, impedindo que fosse absorvida na divindade, Nestório não conseguiu explicar a unidade de Cristo. O Cristo nestoriano tornou-se dois indivíduos, e não um. O Filho de Deus não experimentou verdadeiramente a existência humana na carne.

A posição de Cirilo sobre a encarnação é expressa através da sua contribuição original para a cristologia – a doutrina da “união hipostática”, ou seja, a união de duas realidades em uma só hipóstase ou sujeito pessoal: o Logos. Isso significa que o sujeito da vida de Jesus Cristo era o Filho de Deus que assumiu uma natureza e existência humana sem deixar de ser divino. Não havia um sujeito pessoal humano na encarnação. A hipóstase ou subsistência pessoal de Jesus Cristo era o eterno Filho de Deus que condescendeu em assumir a carne humana através de Maria. Portanto, Maria deu à luz a Deus em carne. Para Cirilo, a natureza humana de Jesus Cristo incluía todos os aspectos da verdadeira humanidade – corpo, alma, espírito, mente, vontade -, mas não possuía uma existência pessoal independente do Logos, sendo, portanto, impessoal. Da união hipostática decorre o importante princípio da “comunicação de atributos” (communicatio idiomatum). Por causa da união das duas naturezas na encarnação, as características de uma natureza podem ser atribuídas à outra, isto é, são características da pessoa como um todo. Assim, é correto dizer que o Verbo nasceu, cresceu e morreu, e que o ser humano, Jesus, operou milagres, perdoou pecados e derrotou a morte.

Na sua luta contra Nestório, Cirilo apelou ao bispo de Roma, que respondeu condenando Nestório e recomendando a sua deposição. Em troca desse apoio, o papa exigiu a condenação da heresia pelagiana, que será estudada mais adiante. Cirilo usou a carta do papa para pressionar o imperador a convocar um concílio para resolver a controvérsia. O terceiro concílio ecumênico reuniu-se em Éfeso no ano 431. Inicialmente compareceram apenas Cirilo e seus partidários. O concílio aprovou a segunda carta de Cirilo a Nestório como a interpretação autorizada do Credo Niceno acerca da pessoa de Jesus Cristo, bem como condenou Nestório e sua cristologia. Não houve a promulgação de um novo credo, e sim de uma fórmula dogmática: “O eterno Filho do Pai é um e exatamente a mesma pessoa que o Filho da Virgem Maria, nascido no tempo e na carne; por isso, ela pode ser corretamente chamada Mãe de Deus”. Pouco depois da conclusão dos trabalhos, o bispo de Antioquia e seus colegas chegaram e se reuniram num concílio rival. Em seguida, os bispos do Ocidente e os delegados papais também chegaram e se reuniram com o grupo de Cirilo, que ratificou os atos anteriores.

O imperador acabou concordando com a deposição e exílio de Nestório depois de obter a anuência de João, o bispo de Antioquia. Por sua vez, este exigiu que Cirilo afirmasse que Jesus Cristo tinha duas naturezas, o que ele fez com relutância. Cirilo defendeu seu acordo com Antioquia no documento conhecido como Fórmula de Reunião (433), no qual insistiu que as duas naturezas são distintas somente no pensamento, e não de fato. Essa fórmula foi assinada pelos dois bispos e ratificada pelo imperador, evitando o cisma das duas cidades. Duas grandes heresias cristológicas haviam sido condenadas, o apolinarismo (Cristo não tinha uma mente humana) e o nestorianismo (Cristo era duas pessoas), mas muitas questões ainda permaneciam abertas e carentes de solução.

Informações adicionais

Textos: Gomes, 379-393 (Cirilo); Bettenson, 93-96.

Análises: Olson, 215-226; González, I:341-354; McGrath, 420s; Lane, I:71-75; Hägglund, 79-82; Kelly, 234-249; EHTIC, III:18s (Nestório), I:281s (Cirilo de Alexandria), I:308s (Concílio de Éfeso). Autores católicos: Altaner e Stuiber, 287-291; Hamman, 245-254; Padovese, 56-57; Moreschini e Norelli, II/2, 221-260.