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O Concílio de Éfeso e a Fórmula de Reunião foram soluções temporárias, pois as questões estavam longe de ser resolvidas. As duas posições em conflito sobre as naturezas de Cristo continuavam essencialmente as mesmas, cada grupo achando que a posição do outro punha em risco a doutrina da salvação. Os antioquinos insistiam na plena humanidade de Cristo, por causa de sua ênfase no papel humano na salvação. A ênfase soteriológica alexandrina recaía mais na graça de Deus do que na realização humana. Os partidários dessa posição alegavam com certa razão que os alexandrinos viam Jesus Cristo mais como o exemplo humano do que como o Salvador divino. O fato de Pelágio – com sua forte insistência na capacidade humana de obedecer a Deus sem o auxílio da graça – ter sido acolhido por antioquinos da Síria e da Palestina pouco antes do Concílio de Éfeso, parecia confirmar isso. No Ocidente latino esse debate não existia, pois a doutrina das duas

naturezas de Cristo já havia sido definida satisfatoriamente por Tertuliano há mais de dois séculos.

A controvérsia cristológica reacendeu em virtude do comportamento do novo patriarca de Alexandria, Dióscoro, um ciriliano radical que insistia em “uma só natureza encarnada do Logos divino”. Ocupava a sé de Antioquia um ardoroso defensor das duas naturezas, Teodoreto de Ciro. O estopim do conflito foram as idéias de Eutiques, um velho monge de Constantinopla, partidário de Alexandria. Ele foi um passo além de Cirilo não só ao reduzir a humanidade de Cristo a “uma gota de vinho no oceano da sua divindade”, mas ao negar que Cristo fosse consubstancial com os seres humanos, o que parecia uma clara rejeição da fé de Nicéia. Para ele, Jesus Cristo não tinha uma personalidade humana e nem mesmo uma natureza humana como a nossa. Ele era um ser híbrido entre o humano e o divino (tertium quid ou terceiro algo), uma única natureza divina-humana que misturava as duas naturezas de tal maneira que a natureza humana era absorvida pela divina.

No ano 448, o ardiloso Dióscoro fez com que Eutiques fosse condenado por um sínodo em Constantinopla e em seguida lhe ofereceu refúgio em Alexandria visando forçar uma confrontação com Antioquia. O quarto concílio ecumênico fora convocado para reunir-se em Éfeso em 449. Dióscoro compareceu acompanhado de um bando de monges armados e assumiu o controle do concílio. A fórmula de Eutiques foi aprovada como ortodoxa – Jesus Cristo como o Deus-homem de uma só natureza cuja humanidade foi absorvida pela divindade. Os representantes de Antioquia, a começar do patriarca Teodoreto, foram condenados e depostos. Alguns alexandrinos chegaram a exigir que fossem queimados! Pior sorte teve o patriarca de Constantinopla, Flaviano, que chegou ao concílio trazendo um documento de Leão, o bispo de Roma, condenando Eutiques e delineando a cristologia ortodoxa (o Tomo de Leão). Ao tentar ler a carta do papa, Flaviano foi espancado com tamanha violência pelos monges de Dióscoro que morreu pouco depois. Esse conclave infame passou à história como o Sínodo dos Ladrões.

O imperador Teodósio II, agora simpatizante de Alexandria, concordou plenamente com as decisões do sínodo e negou um apelo do papa Leão I no sentido de que fossem revogadas. O eutiquianismo, pouco diferente do docetismo, havia triunfado; a própria fé de Nicéia foi questionada e a igreja estava a ponto de dividir-se. Providencialmente, no dia 28 de julho de 450 Teodósio morreu num acidente inesperado, ao ser lançado do seu cavalo. Foi sucedido por sua irmã Pulquéria, que, com seu esposo Marciano, começou a desfazer os atos do Sínodo dos Ladrões. Um novo concílio para substituí-lo como o quarto concílio ecumênico foi convocado para reunir-se em Calcedônia, perto de Constantinopla, em 451. A grandiosa cerimônia de abertura realizou-se no dia 8 de outubro, com a presença de 500 bispos. As atas do Sínodo dos Ladrões foram debatidas e os simpatizantes de Dióscoro começaram a abandoná-lo; ele foi deposto e exilado.

O Tomo de Leão, que havia sido previamente distribuído, foi debatido durante várias sessões. As deliberações teológicas se basearam na sua linguagem e conceitos, bem como nas cartas de Cirilo a Nestório e João de Antioquia, e nos escritos de Tertuliano. A Fórmula ou Definição de Calcedônia não seria um novo credo, mas uma interpretação e elaboração do Credo Niceno de 381. Os bispos condenaram tanto Nestório como Eutiques, afirmando que se deve confessar que Jesus Cristo é um só Filho, perfeito na sua divindade e

na sua humanidade, possuindo corpo e alma racional, consubstancial com o Pai quanto à divindade e conosco quanto à humanidade, à exceção do pecado. A parte principal diz que ele foi “revelado em duas naturezas sem confusão, sem mudança, sem divisão, sem separação; a diferença de naturezas não pode ser eliminada de modo algum por causa da união, mas as propriedades de cada natureza são preservadas e reunidas em uma só pessoa (prosopon) e uma só hipóstase, não separada ou dividida em duas pessoas”. Assim sendo, a declaração se afastou tanto da posição clássica alexandrina (“duas naturezas, sem confusão, sem mudança”) quanto da antioquina (“uma só pessoa, sem divisão, sem separação”).

A Definição de Calcedônia expressa a doutrina da união hipostática, tendo como objetivo maior proteger de distorções o mistério da encarnação. Sua parte essencial é conhecida como “os quatro limites de Calcedônia” – as expressões “sem confusão, sem mudança” protegem contra as heresias do eutiquianismo e do monofisismo, e “sem divisão, sem separação”, contra o nestorianismo. Jesus Cristo é Deus com uma natureza humana, e não um homem elevado a um relacionamento especial com Deus ou um híbrido de existência divina e humana. Os bispos Leão (influenciado por Tertuliano) e Cirilo (influenciado por Atanásio) pareciam entender que Cristo é o Logos divino que assume uma natureza humana carente de existência própria, ou seja, impessoal. O centro pessoal de consciência, vontade e ação é o Logos. Essa posição reflete o antigo princípio da imutabilidade e impassibilidade divina, e tem sido questionada ao longo da história, tanto por católicos quanto por protestantes, porque parece negar a genuína encarnação do Filho de Deus.

Calcedônia não encerrou definitivamente os debates cristológicos na igreja grega. A igreja ocidental estava preocupada com outras questões, como a natureza da salvação (graça e livre arbítrio) e a natureza da igreja (luta com os donatistas). No Oriente, o resultado das controvérsias cristológicas foram cismas permanentes: grande parte dos cristãos da Síria, Pérsia e Arábia formou igrejas nestorianas; os cristãos do Egito constituíram igrejas monofisitas independentes (coptas). Os bispos que permaneceram na igreja majoritária se dividiram em três grupos: (a) diofisitas – antioquinos moderados liderados por Teodoreto de Ciro, que continuaram a insistir na distinção radical das duas naturezas, sem chegar ao nestorianismo; (b) monofisitas moderados – herdeiros de Cirilo e liderados por Severo de Antioquia e Timótio Eluro (bispo de Antioquia); e (c) neocalcedônios, cujo principal teólogo foi Leôncio de Bizâncio.

Os monofisitas persuadiram o imperador Zenão (476-491) a apoiar a sua posição por algum tempo. Eles criticaram e por fim repudiaram a Definição de Calcedônia. Com isso, o monofisismo cresceu na igreja oriental no final do século 5° e na primeira metade do 6°. A situação mudou com o grande imperador Justiniano (527-565), que convocou um novo concílio para aclarar definitivamente qual era a interpretação correta de Calcedônia. Ele confiou os preparativos do concílio ao teólogo Leôncio de Bizâncio (c.485-543), cujas obras principais foram Contra nestorianos e eutiquianos, Trinta capítulos contra Severo e Respostas aos argumentos de Severo. No 2° Concílio de Constantinopla (553), a maneira pela qual Leôncio interpretou Calcedônia foi explicada a todos os bispos, que tiveram de reafirmar a Definição de Calcedônia. O objetivo desse concílio foi aplacar os monofisitas alexandrinos moderados para reafirmar a ortodoxia de Calcedônia. Constantinopla II condenou o herói de Antioquia, Teodoro de Mopsuéstia, e também a teologia de Orígenes.

A grande contribuição inovadora de Leôncio foi o princípio da enipostasia da natureza humana de Cristo no Verbo divino. Ele argumentou que a natureza humana do Salvador não era impessoal (como queriam os monofisitas alexandrinos), nem propriamente pessoal (como queriam os diofisitas antioquinos), mas enipostática, isto é, “personalizada na pessoa de outrem”. No seu entender, Jesus Cristo é o Verbo, o Filho de Deus, com uma natureza humana e a sua própria natureza divina, sendo ele a “pessoa” das duas naturezas.

Muitos cristãos atuais ficam perplexos com todas essas formulações, que parecem tão abstratas, artificiais e especulativas. Por que não ficar somente com as afirmações das Escrituras sobre a pessoa de Cristo, perguntam eles. Porém, é necessário entender que esses debates foram ocasionados pelas circunstâncias da época, quando a igreja procurava definir corretamente a sua fé a respeito da pessoa do Salvador em meio a diferentes opiniões e posições sobre esse assunto fundamental. Hoje essa questão é pacífica para a maioria dos cristãos, mas essa não era a situação daquele período da história da igreja.

Informações adicionais

Textos: Bettenson, 96-101, 156-160.

Análises: Olson, 227-240; González, I:355-366; II:75-85, 93-95; McGrath, 423s; Lane, I:80-83 (Concílio de Calcedônia), 89-91 (Concílio de Constantinopla II); Hägglund, 82-87; Kelly, 249-258; Berkhof, 98-99; Tillich, 100-104; Noll, 71-88; EHTIC, I:305s. Autores católicos: Altaner e Stuiber, 357-361 (Leão Magno), 504-506 (Leôncio de Bizâncio); Hamman, 255-266 (Leão Magno); Padovese, 56-60.