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As definições de negligência nas publicações científicas nacionais

4- negligência resultante de uma dificuldade de agir e responder de forma a satisfazer as necessidades das crianças (pais/responsáveis vivem em um ambiente tão caótico que não

1.3 O estudo da negligência no Brasil e as definições frequentemente adotadas

1.3.1 As definições de negligência nas publicações científicas nacionais

Pode-se dizer que o conceito de negligência, desde que foi separado do conjunto de “abusos” e passou a ser uma modalidade distinta (Azevedo & Guerra, 1989), é apresentado de diferentes maneiras pela literatura científica brasileira, a exemplo do que ocorria em âmbito internacional, no qual o consenso em torno de uma definição única não existia (Zuravin, 1999). Dada à modesta produção de conhecimento sobre a negligência no Brasil, percebe-se também que os autores nacionais não avançam em direção a uma definição mais completa de negligência, utilizando-se daquelas que, embora contemplem elementos importantes, não conseguem englobar em uma única definição todos os aspectos discutidos em nível internacional.

Percebe-se que no início das pesquisas sobre maus-tratos e negligência infantil, a maioria das definições utilizadas por pesquisadores brasileiros, ao investigarem esse tema, centrava-se principalmente no comportamento parental, referindo-se primordialmente às “omissões parentais” (Davoli & Ogido, 1992; Backes, 1999; Morais & Eidt, 1999, Cruz, 2004). É o caso, por exemplo, da definição empregada por Morais e Eidt (1999) que, baseando-se em Brasil (1993), definem a negligência como:

Negligência é o fato de a família se omitir em prover necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente. Configura-se no comportamento dos pais ou responsáveis quando falham no alimentar, vestir adequadamente seus filhos, medicar, educar e evitar acidentes. Tais falhas só poderão ser consideradas abusivas, quando não são devidas à carência sócio-econômica (p.9).

Observa-se também que, embora tendam a operacionalizar o que seria comportamento negligente a partir de alguns exemplos, os autores não estabelecem parâmetros para uma avaliação do que seria o cuidado suficientemente adequado.

Davoli e Ogido (1992), implicitamente, estabelecem uma relação entre um cuidado mínimo recebido e o desenvolvimento normal infantil na sua definição, sem, no entanto, explicitarem a variável de risco ou presença de consequências negativas como um parâmetro. Estes autores definem a negligência se pautando em referências internacionais, como as de Pardeck (1988), Slavenas (1988) e Young (1986), nas quais se enfatiza que a negligência ocorre “por descuido, ou simples omissão, da tarefa de prover o mínimo necessário ao desenvolvimento normal da criança, ou do adolescente, tanto no seu aspecto físico quanto emocional”.

Backes (1999) chama a atenção na sua definição para a relação entre o comportamento parental/omissão parental e consequências evitáveis, definindo a negligência como atos de omissão de cuidados e de proteção à criança contra agravos evitáveis, com ou sem recursos materiais-financeiros. Esses incluiriam atitudes tais como: não educar, não impor limites, não mandar uma criança à escola (logo, privá-la de condições para o seu desenvolvimento cognitivo), não alimentá-la adequadamente, não medicá-la quando necessário, não protegê-la de inclemências climáticas ou, simplesmente, não mantê-la com um mínimo de higiene.

A presença de consequências aparece de forma um pouco mais clara em referências como a de Morais e Eidt (1999), que tentam ser mais específicos em relação à definição do fenômeno, chamando a atenção para os diversos graus de severidade na manifestação da negligência. Na proposição feita por esses autores, o grau da severidade da negligência está associado à maior probabilidade de prejuízos ou na constatação de danos. Assim, baseando-se em Caminha (1999), definem a negligência leve, dando exemplos, como o de uma criança vivendo em um lar sem rotina (sem horário para banho, alimentação, etc.); moderada, referindo-se a existência de descuido com relação à higiene, por exemplo, devido aos riscos de consequências como o aparecimento de doenças; a negligência grave dar-se-ia em situações em que os responsáveis pais deixassem, por exemplo, de mandar a criança para escola ou não seguissem um tratamento médico, considerando-se os prejuízos significativos, cognitivos e físicos (na saúde), associados a essas.

Embora Azevedo e Guerra (1998) chamem a atenção também em sua definição para os diferentes graus de severidade da negligência, as autoras não relacionam essa variável a possíveis consequências ou presença de consequências negativas enfatizando mais a

frequência do comportamento ou, talvez (implicitamente), para a cronicidade do comportamento ou da omissão:

Quando os pais (ou responsáveis) falham em termos de alimentar, de vestir adequadamente seus filhos, etc., e quando tal falha não é o resultado das condições de vida além de seu controle. A negligência pode se apresentar como moderada ou severa. Nas residências em que os pais negligenciam severamente os filhos, observa-se, de modo geral, que os alimentos nunca são providenciados, não há rotinas na habitação e para as crianças, não há roupas limpas, o ambiente físico é muito sujo com lixo espalhado por todos os lados, as crianças são muitas vezes deixadas sós por diversos dias..

Nota-se que essas autoras começam a integrar na definição, com mais ênfase, a dimensão educativa do cuidado, e mais especificamente o aspecto de falta de supervisão parental, fazendo a seguinte consideração: “(...) Recentemente, o termo vem sendo ampliado para incorporar a chamada supervisão perigosa (Azevedo & Guerra, 1998).

Dez anos depois da difusão dos primeiros apontamentos sobre a negligência, coexistem definições que retomam fundamentalmente as definições iniciais, sem acrescentar novos elementos (Vagostello, 2002; Cruz, 2004; Aligeri & Souza, 2005, Martins e Jorge 2009), mas também surgem algumas outras definições que propõem novos elementos a serem incorporados. Benetti (2002), apoiando-se em Wolf (1999), integra claramente em sua definição, aspectos relacionados ao comportamento do adulto cuidador com os associados às conseqüências vividas pelas crianças, seguindo as discussões travadas em nível internacional:

Negligência consiste em atos ou omissões que causem danos psicológicos, cognitivos e físicos a criança, resultado da falha em prover as condições mínimas de sobrevivência e atenção às necessidades básicas da criança, de afeto, alimentação, educação, supervisão e cuidado. Nessa categoria também são considerados os casos de exposição da criança a episódios de violência familiar, uso de drogas, prostituição e os casos de abandono da criança por período de tempo significativo, sem supervisão adequada, seja em casa ou na rua (p 135).

Além disso, pode-se notar uma progressiva sistematização no sentido de colocar o problema não só no plano do comportamento parental (omissões), mas no da falta de respostas às necessidades físicas, sociais e/ou emocionais.

Na sequência detecta-se a definição de negligência empregada por Matias e Bazon (2005), Faleiros e Bazon (2008); Faleiros, Matias e Bazon, (2009), com base nas proposições feitas por Bringiotti (2000), seguindo as orientações do National Center on Child Abuse and Neglect (NCCAN- serviço ligado Children's Bureau da Administration for Children and

Families, que é parte do Department of Health and Human Services, dos EUA). Numa tentativa de melhor operacionalizar o conceito, os autores empregam uma definição que se desdobra em subtipos: (a) “abandono físico”, (b) “abandono emocional” e (c) “falta de controle parental”, tendo por base, concomitantemente, as necessidades infantis não respondidas e a incapacidade parental de respondê-las:

(a) situações em que as necessidades físicas básicas da criança (alimentação, higiene, vestimenta, proteção e vigilância em situações potencialmente perigosas ou em que há demanda de cuidados médicos) não são atendidas temporal ou permanentemente, por nenhum membro do grupo com quem a criança vive;

(b) falta persistente de respostas às expressões emocionais e condutas de proximidade/interação iniciadas pela criança, ausência de iniciativa de interação e contato por parte de alguma figura adulta estável, renúncia por parte dos adultos em assumir as responsabilidades parentais em todos os aspectos;

(c) demonstração de incapacidade dos adultos responsáveis, que não solicitam ajuda, para controlar/manejar o comportamento da criança, deixando de estabelecer (ou não conseguindo estabelecer) regras ou de reagir diante de seu desrespeito, passando a ignorar, com o passar do tempo, o lugar onde a criança está, com quem está e o que faz, considerando “não poder mais com o filho... tão difícil!”.

Observa-se nas definições acima, um rompimento com uma definição restrita, atrelada principalmente às problemáticas relacionadas às necessidades físicas infantis, normalmente ligadas mais à pequena infância, o que teria caracterizado o foco dos primeiros trabalhos em negligência. A proposição foi, desta forma, em direção a uma maior operacionalização de necessidades de cunho educativo e afetivo, além dos físicos.

Riva e Romanelli (2009), por meio de um estudo com cinco famílias de baixa renda em que buscaram identificar se a negligência estaria presente, assinalam a dificuldade de “encaixar” as situações concretas nas definições de negligência, uma vez que as manifestações são diversas, nos diferentes contextos familiares. De todo modo, esses autores tiveram que adotar uma definição, tendo defendido a necessidade de essa incluir uma noção de responsabilidade para além dos pais, estendendo-a também à comunidade e ao estado. Ademais, esses autores enfatizam também que a negligência não é necessariamente intencional. Segundo eles, “A negligência ocorre quando há falta, nem sempre intencional, de cuidados básicos, e se expressa através de ação ou omissão por parte dos pais e responsáveis,

da comunidade e do Estado, podendo causar prejuízo ao desenvolvimento físico, emocional e social de crianças e adolescentes”.

Em seu estudo sobre a negligência, Martins (2006) define o fenômeno como “Um modo de exercer a paternagem/maternagem estranhas ao meio sociocultural de pertencimento daquela família, à inabilidade para cuidar de crianças pequenas, à dificuldade dos pais em responder não só às necessidades materiais básicas das crianças, mas suas necessidades emocionais e, finalmente, à omissão” e acrescenta um elemento novo às definições anteriores relativo à consideração de aspectos socioculturais, indicando a necessidade de implicar parâmetros oferecidos pelo meio no qual a família vive.

Por fim, Mello (2008) e Bazon et al., (2010), em estudo específico sobre a negligência definem o fenômeno, utilizando-se da proposição da World Health Organization & International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect (ISPCAN, 2006) que aponta que a negligência “inclui tantos eventos isolados quanto um padrão de cuidado estável no tempo por parte dos pais e/ou outros membros da família, pelos quais estes deixam de prover o desenvolvimento e bem estar da criança/adolescente, considerando o que eles poderiam fazer isso) uma das seguintes áreas: saúde, educação, desenvolvimento emocional, nutrição, abrigo e condições seguras”. Esta definição proposta faz referência a características como a cronicidade ou o caráter circunstancial da negligência englobando diferentes dimensões do desenvolvimento infantil e incluindo, como a maioria das definições Brasileiras, fatores contextuais, que dizem respeito à avaliação da capacidade ou não dos pais ou familiares poderem assumir os cuidados, diante de situações muito adversas como a pobreza, por exemplo.

Pode-se dizer que a importância e necessidade de discriminar o fenômeno da negligência da pobreza é um dos pontos mais comumente destacados nas referências brasileiras, refletindo a grande preocupação dos pesquisadores em relação a esse aspecto, na medida em que, na prática, num país com uma estrutura sócio-econômica como a do nosso, as duas problemáticas frequentemente se confundem. Algumas autoras, como Azevedo e Guerra (1998), deixam claro que uma situação só pode ser diagnosticada como negligência quando “não é o resultado das condições de vida além de seu controle”. Davoli e Ogido (1992) apontam que a falta de recursos torna o problema mais evidente, mas não é suficiente para caracterizá-lo. Morais e Eidt (1999) veem a pobreza como uma forma de negligência contextual e consideram a pobreza e a exclusão social como uma das variáveis produtoras da negligência.

Pode-se também frisar que as definições brasileiras, adotadas em contexto científico, em conjunto, incluem todos os elementos discutidos internacionalmente, mas nenhuma sozinha dá conta de englobar todos os elementos considerados atualmente importantes para a definição do fenômeno. Observa-se que ora se enfatiza um elemento, ora outro, não se denotando, portanto, uma definição mais completa, alinhada aos esforços em curso, em nível internacional.