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MECANISMOS DE PRODUÇÃO

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

As proposições teóricas de Lacharité et al., (2006) aqui utilizadas como parâmetros para a avaliação/confirmação de negligência infantil foi bastante útil ao estudo da realidade brasileira, denotando com clareza a complexidade do fenômeno em questão.

A definição utilizada também permitiu a identificação de diferentes manifestações de negligência: primeiro, a negligência complexa, nomeada por Lacharité et al., (2006), em que necessidades de diferentes naturezas não são respondidas; e segundo, a negligência ainda em processo de produção, como no caso das famílias do Grupo 2. A definição adotada possibilitou a identificação de casos mais ou menos severos a partir da consideração de variáveis como cronicidade, freqüência, risco ou tipo de conseqüências associadas à falta de respostas às necessidades infantis. A análise dos fatores de risco conectados aos processos subjacentes à instalação dos mecanismos de produção esboçou a existência de diferentes etiologias, relacionadas a diferentes manifestações. Isso só foi possível porque a definição empregada integra o ponto de vista da criança negligenciada, suas conseqüências e o contexto de produção da negligência.

Abordar as situações de negligência sob o ângulo de experiências desenvolvimentais vividas pelas crianças, no quadro de suas relações com as figuras parentais, sua família e com a coletividade local, evita a centração da análise tão somente sobre os cuidadores/pais e suas responsabilidades, em prol de uma abordagem que abarca muitas outras variáveis que caracterizam a situação de negligência (Lacharité, 2009).

Nessa empreitada, a utilização complementar de um instrumento para a análise de necessidades desenvolvimentais (o CABE) em muito auxiliou na realização do trabalho, por considerar a importância de nuançar as concepções em torno do conceito de necessidades infantis em função de faixas etárias (Black & Dubowitz, 1999; Zuravin, 1999).

Dessa forma, puderam-se descrever diversas manifestações da negligência, confirmando a heterogeneidade do fenômeno associada a diferentes etiologias, na linha dos apontamentos da literatura (Zuravin, 1999; Dubowitz, 2007; Mennen, Kim, Sang & Trickett, 2010). Esse tipo de informação deve ter consequências na concepção de programas de intervenção, impondo considerações sobre o tipo, a intensidade e a frequência do acompanhamento que deve ser oferecido às famílias (Wilson, Kuebli & Hughes, 2005).

Os resultados também apontaram para a associação entre negligência e outros tipos de maus-tratos (Ney, Fung & Wickett, 1994; Trocmé et al., 2003, Faleiros, Matias & Bazon,

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2009), indo em direção a resultados que apontam que uma porcentagem muito pequena de casos são casos puros (Ney, Fung & Wickett, 1994). Os casos de co-ocorrência, além de não raros, no caso do presente estudo, foram os que claramente se apresentaram como mais complexos, nos quais os prejuízos infantis eram também mais marcados.

No que se refere à confusão entre negligência e pobreza, pode-se dizer que a desvantagem socioeconômica efetivamente cria condições concretas desfavoráveis ao desenvolvimento da família (Herrenkol et al., 1995; Kotch et al., 1995; Schumacher et al.,2001). Ela restringe não só a capacidade dos pais de responderem às necessidades físicas, mas também contribui para que sejam menos sensíveis e emocionalmente disponíveis aos filhos, dado o cenário de grande instabilidade e alto nível de estresse (Belsky, 1993). Contudo, isoladamente, esta variável não distinguiu famílias negligentes de não negligentes, confirmando apontamentos de vários autores (Sedlak & Broadhurst, 1996; Garbarino & Collins, 1999; Martins, 2006; Bazon et al., 2010). No presente estudo, variáveis antecedentes e mediadoras assumiram um papel mais significativo na construção da problemática, demonstrando que a pobreza não é suficiente para a sua produção (Crittenden, 1999; Stevenson, 2007). A vivência de negligência na própria infância, a falta de apoio social e o isolamento social se destacam nesse plano. Ademais, em termos psicológicos, notou-se que, para a produção da negligência, erros no processamento de informação, baseados em crenças e atitudes distorcidas, desempenham um papel relevante, pois parecem afetar diretamente a capacidade dos responsáveis de responderem às necessidades das crianças.

De todo modo, apesar de a pobreza aparecer fortemente associada às situações de negligência, seria importante implementar pesquisas para tentar averiguar o efetivo papel desempenhando por ela, num delineamento semelhante ao aqui utilizado, mas que envolvesse na investigação cuidadores notificados por negligência oriundos de diferentes extratos sociais, ainda que isso represente um importante desafio.

Tratando mais especificamente do apoio social, mais uma vez, frisa-se o quanto sua falta constitui-se um problema, e o quanto sua presença é fator de proteção nas famílias mais desfavorecidas. O apoio social além de contribuir diretamente para as respostas às necessidades mais básicas, como as físicas, contribui também para a diminuição do nível de estresse na família, garantindo aos cuidadores melhores condições para engajarem-se nas tarefas de cuidados. A presença de estressores crônicos no ambiente em que a família se insere ou mesmo dentro dela é um importante fator de risco para a negligência. Esses eventos incontroláveis, cotidianos, contribuem para tornar caótica a vida dessas famílias (Lacharité, Ethier & Nolin, 2006), sendo que o apoio social parece servir de anteparo a essa situação.

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De outro modo, quando o apoio social não existe, e ademais, há preconceito com relação à família por parte da comunidade, no entorno proximal, tem-se o isolamento social. Esse processo, na presente investigação parece ser o que constitui um dos mecanismos preconizados para a produção da negligência. Ademais, na linha das colocações de Lacharité (2009), o isolamento social também contribui para aumentar o potencial perturbador da relação pais/cuidadores- criança. É um outro mecanismo, uma vez que limita a presença de fatores de proteção ou de compensação nesta situação, sendo essa variável (isolamento social), portanto, central no planejamento de programas de enfrentado das situações de negligência.

Para Lacharité (2009) o isolamento social é a variável que distingue as situações de negligência, de outras situações como problemas de toxicomania ou de depressão na família. No presente estudo, essa variável serviu para diferenciar as famílias negligentes ou em risco da negligência de famílias que não vivem a problemática ou viviam outras problemáticas.

Nessa esteira, um dos dados que chamou mais a atenção, foi o chocante papel desempenhado pela instituição escolar, enquanto representação do Estado. Na montagem do problema do isolamento, a escola colocava, por intermédio de seus valores e práticas, famílias em alto risco para maus-tratos, incluído aí a negligência.

Como já foi descrito e exemplificado, a maior parte das famílias, apesar de todas as dificuldades, ao encontrar apoio informal, dava conta de garantir às crianças condições desenvolvimentais razoáveis. Entretanto, algumas crianças apresentavam demandas específicas, que requeriam ajuda especializada. Nessa situação, concebe-se que o apoio formal/institucional é imprescindível. Sua ausência tem conseqüências na dinâmica familiar, transformando a “negligência estatal” em “negligência familiar”, na qual pais/responsáveis são culpabilizados, como se fossem exclusivamente responsáveis pelos acontecimentos.

Outro aspecto, que muito chamou a atenção, foi o fato de que, apesar de os problemas apresentados pelas famílias negligentes serem bastante evidentes e chocantes para o entorno social proximal, que reconhecia e julgava negativamente o padrão de cuidados oferecido às crianças, considerado muito diferente do seu, a comunidade não apresentava disposição para agir, a não ser pela via do rechaço à família, eventualmente, notificando.

Ademais, em face aos casos crônicos, nos quais os problemas sérios no cuidado com as crianças certamente se manifestaram muito precocemente, com base nos dados obtidos, pode-se afirmar que as reações sociais s vivas começaram bastante tardiamente, em torno dos 06 anos, quando as crianças já manifestavam consequências das experiências evidentes, no seu desenvolvimento físico e psicossocial. De um lado, isso faz pensar no despreparo da comunidade, dos profissionais da educação e da saúde para identificar e notificar os casos, mais precocemente,

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com base em indicadores mais sutis, que não sejam “sequelas” (Bazon, 2007; Morais & Eidt, 1999, Noguchi, Assis & Santos (2004); Moura & Reichenheim, 2005;Faleiros, Matias & Bazon, 2009). De outro lado, é possível cogitar que prepondera, ainda, em termos culturais, valores relativos à infância que possivelmente afetam a sensibilidade às crianças, e às suas problemáticas. Estes valores propiciam condições para se conviver com tranquilidade com uma criança em sofrimento, com suas necessidades básicas rudimentarmente respondidas, constantemente exposta a perigo, desde que ela não perturbe o ambiente. A sensibilidade social e as reações decorrentes parecem depender fortemente do quanto a criança ou seu comportamento perturba ou não o ambiente.

Nessa direção, é provável que inúmeras crianças brasileiras em situação de negligência, jamais sejam identificadas no sistema de proteção, porque não “perturbam” suficientemente, estando condenadas, portanto, a padecerem por falta de qualquer tipo de intervenção.

Em relação à pertinência das notificações realizadas pelo setor educacional, pode-se dizer que, embora todas as crianças apresentassem, de fato, necessidades a serem respondidas, algumas das famílias não eram diretamente responsáveis pela falta de respostas a essas necessidades desenvolvimentais. Em alguns casos, o problema remetia à própria instituição escolar. No entanto, a maioria dos casos notificados efetivamente apresentava problemas ligados a situações de maus-tratos e/ou negligência, o que confirma a capacidade deste setor para identificar tais situações (Faleiros, Matias & Bazon, 2009).

Por fim, não se poderiam terminar as considerações sem fazer um apontamento quanto ao fato de se ter deparado com a forte tendência, na dinâmica social, de focalizar a figura da mulher/mãe como fonte de todos os problemas e também de todas as soluções, no tocante aos cuidados com as crianças e à criação/educação dos filhos. A tendência tão forte, em muitos momentos perpassou o próprio fazer da pesquisa, quando não raro, vários dos procedimentos de coleta de dados se dirigiam a essa figura exclusivamente.

Importa, contudo, frisar que, nesse movimento, muitas e muitas vezes, elas são colocadas no centro e responsabilizadas por situações nas quais há evidente co- responsabilidade de outros. Nas situações em que as crianças eram expostas à violência conjugal, por exemplo, não raro se observou a movimento de acusação das mães por não protegerem suas crianças, sendo “rotuladas” como negligentes, sem que jamais se questionasse o papel do homem nessa história. Os pais, em seu turno, nunca foram considerados no sistema de proteção, no sentido de serem co-responsáveis pelas situações vividas pelas crianças. Teve-se, dessa forma, “a hipervisibilidade das mulheres como mães e a invisibilidade dos homens enquanto pais” (Lacharité & Xavier, 2009, p.130).

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Limites e avanços do presente estudo

No que diz respeito às qualidades metodológicas do presente estudo, pode-se dizer que em relação à validade ecológica e fidedignidade, a pesquisadora teve proximidade com o objeto de estudo, no contexto de vida das famílias, onde pôde realizar inúmeras observações, durante um período razoável de tempo (10 meses). Outro cuidado metodológico refere-se ao esforço para triangular os métodos de coleta de dados, trabalhando-se com informantes múltiplos. Esses cuidados possibilitaram uma diminuição de vieses, contribuindo para a obtenção de dados confiáveis.

No que diz respeito às limitações, pode-se dizer que a utilização de uma amostra de casos oriundos exclusivamente do setor educacional provavelmente limitou o acesso a outras manifestações existentes. Do mesmo modo, a idade das crianças desta amostra, restrita à faixa dos 5 aos 6 anos, certamente restringiu o acesso a outro universo de casos.

Outro ponto a destacar, refere-se à utilização de uma amostra de casos suspeitos e não confirmados. Esta característica da amostra não permite a discussão da definição utilizada, no quadro de um processo estrito de replicação literal, tal como prevê Yin (2009), com via de se testar preposições teóricas. Para tal, recomenda-se, a replicação do presente estudo com amostras de outra natureza (de casos notificados pela comunidade, pela saúde, composto por crianças de diferentes idades). Em longo prazo, seria também importante realizar a replicação de casos confirmados por meio de outro método válido e legitimado para nosso contexto (“casos positivos”) e contrastá-los com casos “negativos”, de modo a melhor testar a validade do conceito de negligência empregado no presente estudo em relação à realidade sociocultural brasileira.

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