• Nenhum resultado encontrado

Uma proposição conceitual para a negligência e os referenciais adotados no presente estudo

Tendo por base o panorama gerado por todos os apontamentos e questionamentos acima expostos, Lacharité et al., (2006) realizaram uma minuciosa revisão da literatura científica, com vistas a integrar e sintetizar em uma única proposição conceitual os aspectos que nos estudos específicos implementados, indicavam, recorrentemente, uma situação de negligência. Eles tomaram cuidado de evitar incorporar critérios rígidos, decorrentes, muitas vezes, de concepções de cuidados infantis de grupos sócioculturais hegemônicos, de modo a garantir a definição flexibilidade diante de valores e de representações sociais do grupo de referência da família avaliada. Assim, os autores colocam que a negligência equivale a uma

carência significativa de respostas às necessidades infantis reconhecidas como fundamentais, segundo conhecimentos científicos ou valores sociais comunitários, existindo um risco significativo ou a presença efetiva de consequências negativas para o desenvolvimento infantil (conhecidas empiricamente ou reconhecidas socialmente). Essa carência ou falta de respostas às necessidades da criança é atribuída a uma dificuldade significativa ou incapacidade (circunstancial ou crônica) do entorno social proximal da criança de agir conforme as normas mínimas de cuidados físicos, psicológicos ou educativos, reconhecidas na comunidade da qual faz parte. A responsabilidade em responder às necessidades das crianças é, em primeiro lugar, dos pais ou dos adultos que têm a guarda física dos filhos, mas, caso esses adultos não disponham de condições mínimas para o exercício das responsabilidades parentais, essa responsabilidade deve, em segundo lugar, ser “difundida” a outros atores que fazem parte dos diversos contextos de desenvolvimento da criança. As necessidades fundamentais são de ordem física, educativa e psicológica que variam na sua forma e intensidade em função da maturidade (idade) da criança.

Cumpre frisar que tal definição apresentada pelos autores, leva em conta, sinergicamente, as necessidades da criança que estariam sendo negligenciadas e as consequências dessa situação para o seu desenvolvimento e o contexto de produção da negligência. Segundo os autores, essa “abordagem mista” dá conta das principais manifestações da negligência infantil.

Ademais, tal proposta também se insere numa perspectiva ecossistêmica (Belsky, 1980, 1993), a qual tem sido frequentemente utilizada para compreender o fenômeno dos maus-tratos em geral (USDHHS, 2006; WHO/ISPCAN, 2006). O entendimento do fenômeno da negligência pelo prisma de um modelo ecossistêmico impõe o abandono das definições restritas, como as geralmente utilizadas pelos serviços de proteção, em favor de definições mais amplas, que incluam fatores contextuais importantes na avaliação de uma situação de negligência. Embora as definições restritas sejam, a rigor, mais facilmente operacionalizáveis, uma abordagem mais ampla encoraja intervenções que lidam com muitas variáveis ao mesmo tempo, situadas em vários níveis do sistema (Dubowitz et al., 1993).

No que se refere à etiologia, pode-se afirmar que não se dispõe, até o presente, de uma teoria suficientemente robusta, capaz de dar conta do fenômeno dos maus-tratos em geral, tampouco da negligência, especificamente. No entanto, uma abordagem ecossistêmica ajuda a esclarecer a produção do fenômeno, em toda a sua complexidade, deve-se ao interjogo de forças biológicas, psicológicas, sociais e culturais, cujas conexões são, muitas vezes, invisíveis (Belsky, 1980; Garbarino & Collins, 1999). Via de regra, as investigações

implementadas com base nesse paradigma têm oferecido informações sobre um número significativo de elementos associados à produção da negligência, denotando que as condutas negligentes dos pais em relação aos filhos devem ser entendidas a partir da interinfluência exercida entre a criança, os pais (e a família, num sentido mais amplo) e o entrono social no qual estão inseridos (Éthier, Biron, Pinard, Ganier, Desaunier,1998; Garbarino & Collins, 1999; Sullivan, 2000; Schumacher, Slep & Heyman, 2001; Lacharité et al., 2005; Lacharité et al., 2006; WHO/ISPCAN, 2006). Em síntese, as variáveis associadas à negligência relacionam-se a três planos distintos: o do contexto de vida das famílias, o relacionado às características das figuras parentais e o das crianças (Lacharité et al., 2006).

No que concerne o contexto de vida, destacam-se a falta de apoio social e de recursos econômicos (desemprego, baixo salário), culturais (baixa escolaridade) e sociais, tanto no plano coletivo como no individual, e a vivência crônica de estresse intra e extra-familiar e a exposição a eventos incontroláveis que fazem com que a vida em família seja caótica (Lacharité et al., 2006). Nesse plano, o isolamento social da família parece ser um fator de risco de muito importante. Mães negligentes reportam menos suporte de redes sociais formais e informais, descrevendo seus vizinhos como menos amigáveis e disponíveis, e parecem efetivamente mais “ilhadas” em seu entorno social (e pelo entorno, por serem percebidas como inadequadas), o que dificulta o estabelecimento de relações de reciprocidade e o próprio acesso aos apoios comunitários (Polansky, Gaudin, Ammons, Davis, 1985; Lacharité et al., 2006; Bazon, Bérgamo, Mello & Faleiros, 2010).

No plano das figuras parentais, destacam-se os fatores ligados diretamente a características apresentadas por essas, como a presença de problemas de saúde mental, problemas no desenvolvimento da personalidade, a apresentação de quadros depressivos e de dependência de drogas, somados a alguns indicadores mais propriamente relacionados à configuração familiar, como o número elevado de filhos. Fatores como a falta de competência educativa dos pais, as habilidades sociais deficitárias (sobretudo no que se refere a resolução de problemas), a impulsividade, a baixa autoestima, o sentimento de desconfiança e a problemas na própria história de desenvolvimento, são também destacados nesse nível e parecem ser variáveis importantes que contribuem para que os responsáveis tenham dificuldades com suas próprias crianças (Schumacher et al., 2001; Lacharité et al., 2006).

Por fim, no plano relativo às crianças, parece ter peso a presença de certas características negativas como a irritabilidade e a presença de problemas de comportamento (Black & Dubowitz, 1999; Schumacker et al., 2001; Lacharité et al., 2006).

Em conjunto, em termos de processos proximais, esses fatores parecem esboçar uma dinâmica em que os adultos de famílias que apresentam negligência têm e percebem ter pouco apoio social formal e informal, sentindo-se, por consequência, isolados (solitários) para fazer face às adversidades, em meio às quais sentem-se “submersos” (o que pode caracterizar um quadro de depressão). Essas famílias, na maioria das vezes, vivem situações adversas, algumas objetivas, relacionadas a condições concretas de vida, outras relacionadas aos relacionamentos interpessoais, incluindo aí o relacionamento com a criança, que tem ou é percebida como tendo problemas de comportamento (o que dificulta interações positivas). Nesse contexto de vida, esses cuidadores (que apresentam habilidades sociais deficitárias) não conseguem implementar certas habilidades para lidar com os problemas ou para buscar a ajuda necessária ou ativar os recursos relativos aos apoios sociais que poderiam responder às suas necessidades e às necessidades das crianças (Bazon et al., 2010).

Lacharité et al., (2006) oferecem uma sistematização concernente à etiologia da negligência infantil, propondo a existência de dois mecanismos distintos que atuam, entretanto, de modo articulado para a manifestação do problema em uma família: uma perturbação da relação entre as figuras parentais (os cuidadores) e a criança, caracterizada pela presença de pouquíssimas interações, sendo que, nos momentos em que há interação entre as figuras parentais e a criança, as condutas recíprocas são principalmente negativas; uma perturbação da relação entre a família e a coletividade à qual pertence (seu entorno) caracterizada, principalmente, pelo isolamento funcional das figuras parentais (cuidadores) e da criança.

No que concerne aos processos de natureza psicológica, no plano dos adultos, responsáveis diretos pelas crianças, a perspectiva teórica que traz mais contribuições para a compreensão dos padrões de interação estabelecidos é o modelo teórico das Deficiências Parentais (Crittenden, 1993), que se apóia na perspectiva do Processamento das Informações. Para essa autora, a negligência se dá devido a déficits no comportamento parental, sendo que ele opera independentemente de fatores econômicos.

Nesta perspectiva as situações de negligência são reagrupadas segundo 4 perfis de responsáveis que se distinguem na sua capacidade de integrar e tratar a informação concernente às necessidades infantis, fundamentalmente à emoção da criança:

1- Negligência resultante da não-percepção de aspectos essenciais de diferentes