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As definições de negligência, no contexto nacional, no âmbito legal e profissional

4- negligência resultante de uma dificuldade de agir e responder de forma a satisfazer as necessidades das crianças (pais/responsáveis vivem em um ambiente tão caótico que não

1.3 O estudo da negligência no Brasil e as definições frequentemente adotadas

1.3.2 As definições de negligência, no contexto nacional, no âmbito legal e profissional

Em paralelo à literatura científica, a negligência é também abordada em outros documentos, nos quais se propõem definições, como nas Leis e nos guias, manuais ou cartilhas elaborados por organismos governamentais e não governamentais que circulam em meio aos profissionais da saúde e da educação, geralmente, nos diversos serviços.

No que se refere às definições legais, nota-se, por exemplo, que o texto do Código Penal refere-se apenas a situações extremas de negligência, manifestadas no abandono (Art. 133- abandono de incapaz: “Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância, ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de se defender dos riscos resultantes do abandono”. Há ainda referência à negligência, porém de modo vago, dentro de uma proposição geral relativa a maus-tratos infantis, sendo esses definidos do seguinte modo:

Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalhos excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina. (Art.136).

No Estatuto da criança e do Adolescente (ECA, 1990), apesar de o seu conteúdo prever a negligência infantil como uma violação de direito, não existe definição específica sobre o termo.

Ante a esse panorama jurídico, nota-se esforço por parte de órgãos governamentais, como o Ministério da Saúde, e de não governamentais, como ONGs, no sentido de desenvolver e difundir definições relativas aos maus-tratos em geral, e a cada uma das modalidades em específico, incluindo a negligência, de forma que os profissionais que trabalham com o público infantil fossem sensibilizados e estivessem mais bem preparados para lidar com a problemática. Pode-se dizer que, mais do que as produções científicas, a

informação constante no material produzido nesse âmbito colabora para a formação de concepções que tendem a se generalizar, no sentido de estabelecer um senso comum sobre o tema.

À guisa de síntese, formulou-se o quadro abaixo, em que se apresenta o conteúdo das três principais definições em circulação, divulgadas em documentos oficiais1.

Fonte / Finalidade Definição de Negligência

Guia para Profissionais de Saúde - Maus-tratos contra crianças e Adolescentes: Proteção e Prevenção

ABRAPIA (1997)2

Ato de omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para o seu desenvolvimento.

Guia de atuação frente aos maus- tratos na infância e na adolescência dirigido a pediatras e demais profissionais da saúde.

Sociedade Brasileira de

Pediatria[SBP] (2001).

Ato de omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para o seu desenvolvimento (Abrapia, 1997). O abandono é considerado uma forma extrema de negligência. A negligência pode significar omissão em termos de cuidados básicos como a privação de medicamentos; cuidados necessários à saúde; higiene; ausência de proteção contra as inclemências do meio (frio, calor); não prover estímulo e condições para a freqüência à escola”

Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes por profissionais da Saúde: um passo a mais na cidadania em saúde. Ministério da Saúde (2002)3

Negligência e abandono – assim são chamadas as omissões dos pais ou de outros responsáveis (inclusive institucionais) pela criança e pelo adolescente, quando deixam de prover as necessidades básicas para seu desenvolvimento físico, emocional e social. O abandono é considerado uma forma extrema de negligência. A negligência significa a omissão de cuidados básicos como a privação de medicamentos; a falta de atendimento aos cuidados necessários com a saúde; o descuido com a higiene; a ausência de proteção contra as inclemências do meio como o frio e o calor; o não provimento de estímulos e de condições para a freqüência à escola.

Quadro 1: Definições de negligência encontradas a partir de guias recuperados eletronicamente

Nota-se que a proposição básica é a definição geral da Abrapia (1997). Ao longo do tempo, contudo, percebem-se avanços nessa proposição, no sentido de integrar as omissões

1 Os guias citados foram recuperados eletronicamente.

2 Essa mesma definição foi incorporada por Guias posteriormente desenvolvidos em outros contextos, em outras

datas, como, por exemplo, o proposto pelo Hospital Pequeno Príncipe juntamente com a Secretaria de

Estado da Educação do Paraná e o Sindicato das Escolas Particulares daquele estado (2007).

3 Essa mesma definição foi reutilizada no guia proposto pela Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo

(2004), dirigido aos profissionais da saúde, referente também à “Notificação de maus-tratos contra crianças e

dos responsáveis e as repostas às necessidades básicas para o desenvolvimento. Os guias chamam a atenção também para o abandono como uma forma extrema de negligência e tentam operacionalizar o conceito fornecendo alguns indicadores, os quais são, predominantemente, físicos, embora note-se esforço na tentativa de abarcar necessidades básicas infantis também de cunho emocional e social.

É importante notar que em todos os guias consultados também se enfatiza a necessidade de se separar o fenômeno da negligência das situações de pobreza, chamando-se a atenção para o aspecto de a negligência poder acontecer sem intencionalidade por parte do agente, indicando, por isso, ser a intencionalidade valorizada como um elemento diagnóstico da negligência.

No mais, coloca-se a necessidade de comparar valores/recursos sócio-culturais da comunidade em que se insere a família, para uma adequada avaliação da negligência:

Por causa da situação de miséria e de extrema pobreza em que muitas famílias vivem no Brasil, grande parte delas chefiada por mulheres que precisam trabalhar fora de casa para garantir a sobrevivência dos filhos, a identificação da negligência freqüentemente é um ato de difícil discernimento. Principalmente quando o profissional ou a equipe de saúde se depara com o questionamento da existência de intencionalidade numa situação objetiva de negligência. Alguns autores refletem que uma boa referência é comparar os recursos que aquela família dispõe para suas crianças com os recursos oferecidos por outras famílias de mesmo estrato social. Outros estudiosos sugerem a comparação dos tratos dispensados a cada filho, buscando identificar algum tratamento especialmente desigual. No entanto, independente da culpabilidade dos pais ou dos responsáveis pelos cuidados da vítima, é necessária a notificação e a tomada de decisão a favor da proteção desse menino ou dessa menina que está sofrendo a situação de desamparo (SBP, 2001).

Na proposição do Ministério da Saúde (2002), procura-se relativizar a culpa exclusiva da família na negligência, chamando a atenção também para as instituições sociais que se omitam em responder a necessidades básicas infantis. Nesse documento avança-se também no sentido de introduzir o elemento da cronicidade: “deve-se observar a ocorrência reiterada e contínua de algum indicador para determinar um caso como negligência” (p. 28).

Levando-se em conta esse detalhamento, em comparação ao conteúdo dos artigos científicos brasileiros, nos documentos se observa uma maior preocupação com a operacionalização do conceito, com foco na apresentação de indicadores, de modo a possibilitar a identificação da problemática por profissionais. Como os documentos foram, em sua maioria, entretanto, formulados no âmbito de órgãos relacionados à saúde, para

profissionais da saúde, os indicadores, na maioria das vezes, são físicos. Abaixo estão alguns exemplos de indicadores da negligência citados pelos guias:

• Aspecto de má higiene corporal (roupas sujas, dermatite de fraldas, lesões de pele de repetição);

• roupas não adequadas ao clima local;

• desnutrição por falta de alimentação, por erros alimentares persistentes, por restrições devido a ideologias dos pais (vegetarianos estritos, por exemplo);

• tratamentos médicos inadequados (não cumprimento do calendário vacinal, não seguimento a recomendações médicas, comparecimento irregular ao acompanhamento de patologias crônicas, internações freqüentes);

• distúrbios de crescimento e desenvolvimento sem causa orgânica. • lares sem medidas de higiene e de segurança;

• falta de supervisão da criança, provocando lesões e acidentes de repetição;

• freqüência irregular à escola, escolaridade inadequada à idade, não participação dos pais nas tarefas escolares;

• grandes períodos de tempo sem atividades, adolescentes com muito tempo livre sem supervisão, expostos ao provável contato com ambientes de risco.

Em suma, no contexto brasileiro, seja no âmbito científico ou no profissional, nota-se uma crescente preocupação com o fenômeno da negligência em específico, e, por isso, alguns avanços no que concerne a discussão em torno dela. A própria literatura nacional, contudo, indica a existência de uma lacuna no conhecimento em relação a este tipo de maus-tratos em nosso país (Davoli & Ogido, 1992; Faleiros, Matias & Bazon, 2009) e chamam a atenção para a complexidade do fenômeno e a fragilidade das definições adotadas (Cruz, 2004), indicando haver muita dificuldade de “encaixar” as diversas situações concretas, que se manifestam de diferentes formas, nos diferentes contextos sociofamiliares, em uma definição de negligência disponível (Riva & Romanelli, 2005).

Nesse plano, de acordo com apontamentos feitos em estudos nacionais (Matias & Bazon, 2002; Martins, 2006), é interessante notar que famílias notificadas ao sistema de proteção, por negligência, em geral, não reconhecem suas práticas como negligentes e nem mesmo apreendem as razões pelas quais estão sendo acompanhadas, não associando as medidas de proteção infantil aplicadas, incluindo o abrigamento de seus filhos, à avaliação negativa que é feita sobre cuidados que dispensam a eles. Isso denota o constante confronto

de valores e perspectivas concernentes aos cuidados infantis, mesmo no interior de uma mesma sociedade, que implicam grandes desafios à compreensão do fenômeno e à intervenção na área, frente à falta de parâmetros consolidados para efetuar a avaliação de situações concretas.

Nesse contexto, sabe-se que os órgãos responsáveis da proteção à infância, não raro, tomam decisões sem ter clareza dos critérios utilizados e acabam prejudicando famílias e crianças, havendo, nesse âmbito, um emprego frequente, porém equivocado, do termo “negligência” para descrever quadros extremos de pobreza (Cruz, 2004; Martins, 2006). Como escreve Cardarello (1998, p.324), os casos de negligência são assimilados aos “casos assistenciais” e vice-versa, surgindo a necessidade de diferenciá-los, ainda que, freqüentemente, os problemas apareçam associados (Davoli & Ogido, 1992; Morais & Eidt, 1999; Martins, 2006; Mello, 2008), o que é tanto mais difícil, segundo Santos e Ferriane (2007), quanto mais o contexto de análise caracterizar-se pela ausência e/ou precariedade de políticas públicas voltadas para o atendimento das crianças e dos adolescentes.

Assim, o pouco conhecimento do fenômeno, somado à fragilidade das definições até então disponibilizadas, demanda investimento na produção de mais conhecimento específico para, assim, alcançar critérios para identificar as situações de negligência e realizar a análise de sua manifestação, indo em direção à elaboração de um modo adequado de diagnóstico, que ofereça boas pistas às intervenções de tratamento e prevenção de conseqüências.

Parafraseando Gomes, Deslandes, Vaiga, Bhering & Santos (2002), na discussão que faz sobre os desafios colocados pelas situações de maus-tratos, é necessário desenvolver “uma compreensão teórico-prática que articule a singularidade de cada caso ao conhecimento acumulado no atendimento de milhares de famílias envolvidas” (p.713). É nessa linha de raciocínio que o presente trabalho de pesquisa foi implementado.

1.4 Objetivos

A presente pesquisa visou, de forma geral, estudar o fenômeno da negligência, a partir de dados empíricos obtidos junto a famílias notificadas ao Conselho Tutelar por tal razão, de modo a produzir conhecimento sobre as possibilidades de se confirmar (ou não) os casos, tomando como referencial a definição proposta por Lacharité et al., (2006), e estabelecer parâmetros diagnósticos.

Ao mesmo tempo, objetivou-se compreender o fenômeno, sua manifestação no contexto brasileiro, tentando apreender os mecanismos de produção subjacentes.

De modo específico, os objetivos foram descrever as características dos casos com os quais se lidou, no sentido de responder às seguintes questões: