• Nenhum resultado encontrado

OS MECANISMOS DE PRODUÇÃO

1- A Relação Família – Entorno Social.

As famílias que constituíram esse subgrupo caracterizavam-se, em termos sociais, pelo Isolamento. Em suma, as famílias apresentam pouca satisfação com o local onde moravam, relações escassas e conflituosas com a vizinhança e padeciam da falta de relacionamento com pessoas significativas no entorno e/ou na família extensa que pudessem oferecer apoio social e, finalmente, eram avaliadas, de modo geral, negativamente no entorno social (sofriam preconceito)

Pouca satisfação ou insatisfação com o local onde moram e relações escassas e conflituosas com os vizinhos

Com exceção de alguns cuidadores (avó e mãe - Família C) que se diziam satisfeitos com o bairro onde moravam, devido à existência de serviços como o posto de saúde e creche, nas outras famílias, os cuidadores se diziam pouco satisfeitos (Família A) ou insatisfeitos (Família B) uma vez que consideravam que o local onde moravam não oferecia muitos serviços.

No tocante, entretanto, ao relacionamento com a vizinhança, as três famílias referiam- se à insatisfação, uma vez que consideravam que o entorno social do local onde residiam não era prestativo: “aqui ninguém gosta de ajudar ninguém!” (Lúcia - Família B). De fato, o

relacionamento desses cuidadores com o entorno social proximal (vizinhança) era, em grande parte, marcado não só pelo isolamento social, mas também pela presença de conflitos. Nas três famílias notava-se pouca interação com os vizinhos, permanecendo, no momento em que não estavam trabalhando, recolhidas dentro de suas casas, embora fosse costume da vizinhança permanecer na calçada, no final da tarde, enquanto as crianças brincavam na rua. As mães dessas famílias também entravam e saíam de casa sem “olhar para o lado”, além de manterem as janelas da casa sempre fechadas para que a família não fosse vista (“vigiada”, segundo elas), pelas pessoas do entorno. O isolamento em relação à vizinhança era justificado pela necessidade de evitarem problemas ou desentendimentos: “tem muita reclamação na cabeça, de vizinhos” (Gisele - Família A).

Os problemas ou desentendimentos com a vizinhança aconteciam frequentemente, seja por motivos “do passado” (como no caso de Lúcia- Família B, que tinha problemas com uma vizinha há muito tempo por causa de boatos), seja devido a reclamações, boatos e até mesmo às notificações feitas ao Conselho Tutelar. Os desentendimentos entre as famílias e os vizinhos eram marcados por agressões verbais (gritos, “bate-boca”, palavrões e ameaças) como também por provocações mais violentas (jogar pedra quebrando os vidros da casa da vizinha, derrubar o varal fazendo com que as roupas limpas caíssem na terra, etc). Muitas vezes, quando os conflitos se exacerbavam, vizinhos chegavam a chamar a polícia o que tinha como consequência aumentar o isolamento dessas famílias, uma vez que outras pessoas da vizinhança preferiam manter-se afastadas delas, evitando um relacionamento mais próximo, de modo a “evitar problemas futuros”20 .

Preconceito do Entorno social em relação às famílias

No contexto das relações conflituosas, acima descritas, o “julgamento” negativo que boa parte do entorno social fazia dessas famílias era formatado. Assim, muitas de suas características serviam de elemento para que se constituísse na vizinhança uma atitude preconceituosa em relação a elas. Nesse bojo, a condição de pobreza extrema, o péssimo estado de conservação das casas onde moravam (sujeira, desorganização, presença de entulho), como também alguns de seus problemas pessoais, como o consumo de álcool e/ou outras drogas, atual ou no passado (Luis - pai Família B; Gisele - Família A; Mariana da Família C) ou a “promiscuidade”, considerando a constante troca de parceiros (Mariana-

20 A expressão foi de uma das vizinhas da Família B, ao relatar à pesquisadora as razões pelas quais que não

poderia mais ficar (tomar conta) das crianças desta família, em sua casa, na ausência da mãe. Segundo ela, seu marido não queria que se envolvesse em “problemas”, pois ficara com medo quando a polícia chegou para separar uma briga entre o casal da Família B com outra vizinha.

Família C), faziam com que fossem “conhecidas” e assunto de comentários não só na vizinhança, mas também em instituições com nas escolas, nos programas de assistência social, etc.

Muitas vezes, essas características acabavam virando “rótulos” em função dos quais os outros se relacionavam com elas. Por exemplo, Luiz pai de Tatiana (Família B) ficou conhecido por toda a cidade devido a um episódio em que tentou suicídio ao tentar pular do alto de uma torre. As crianças e a esposa passaram a ser “as filhas e a mulher daquele que quase pulou da torre”.

Os episódios de violência conjugal, atuais ou do passado (Família B e Família A, respectivamente), também eram alvo de comentários e fomentavam a segregação dessas famílias por parte do entorno social que dizia não querer “se meter em confusão”.

A frequentação da residência (especificamente no caso da Família A) por pessoas /amizades consideradas “maus elementos” (geralmente alcoolistas e usuários de outras drogas, segundo os comentários) fazia com que os vizinhos reclamassem abertamente, o que aumentava o afastamento.

Por fim, essas famílias também eram avaliadas negativamente e, por isso, segregadas, por conta do modo com que criavam seus filhos: “Essas crianças são largadas, eu tenho muita dó, como é que pode?!” (vizinha - Família A). O julgamento negativo do entorno social proximal sobre o modo que essas famílias criavam suas crianças já havia gerado notificações ao Conselho Tutelar21.

Ausência de pessoas significativas (parentes ou amigos íntimos)

O padrão de conflituoso de relacionamento com os vizinhos se aplicava também às relações com pessoas mais próximas, significativas, como parentes (família extensa) e amigos íntimos. De fato, nas três famílias referiu-se mais propriamente a uma “quase ausência” de pessoas significativas nas suas vidas, com as quais poderiam contar ou com as quais compartilhar suas intimidades. Não tinham contatos com familiares e até mesmo não sabiam do “paradeiro” dessas pessoas, devido ao longo tempo sem notícias (Família A e Família B). Elas não recebiam visitas de familiares e nem faziam visitas a estes, sendo que suas crianças não conviviam com avós e tios22. Somente na Família B, no plano da família extensa, a

21No caso da Família A, depois que vizinhos observaram, há longo tempo, que as crianças ficavam fechadas

sozinhas em casa, nos finais de semana e devido à falta de cuidados de higiene com as crianças, uma notificação foi feita por um deles.

22 Inácio da Família C é exceção, pois convivia com os avós e tios, uma vez que morava na casa da avó e, até

cuidadora relatou poder contar com uma pessoa, sua avó, às vezes. Com relação a amigos íntimos, todas disseram ter apenas com 1 amigo.

Dada a ausência de relacionamento, as cuidadoras dispunham de quase nenhuma ajuda, nem mesmo de natureza prática:

“Minha mãe é meio embassada, né... ela cuida lá do meu outro sobrinho e tem muita coisa na cabeça dela também...” “Minha família nunca fez nada para mim. Só eu mesmo que faço as coisas para mim”. (Lúcia- Família B).

Os sentimentos expressos pelas genitoras, especificamente as da Família A e B, com relação aos próprios pais eram, muitas vezes, negativos, havendo referências a vivências relacionadas à violência e à negligência na própria infância. Seus relatos indicavam terem experienciado abuso físico muito cedo (antes dos 5 anos), sendo que apanhavam em todas as partes do corpo, com o auxílio de objetos: “vassoura, borracha, copo, tudo...” (Gisele - Família A), tendo, por essa razão, sido hospitalizadas. A genitora da Família A teve uma fratura no braço decorrente de punição corporal enquanto que a genitora da Família B teve que ser hospitalizada na UTI depois que seu pai colocou suas pernas em um balde de água fervendo (ver no APÊNDICE B) síntese das informações obtidas com o a Entrevistas História da Infância do Cuidador).

Falta de apoio social

A somatória dos fatores acima indicados fazia gerava, em consonância ao isolamento, a experiência da falta de apoio social. Com base nas informações obtidas a partir do QAS (Questionário de Apoio Social, APÊNDICE C), em termos subjetivos, as três genitoras se perceberiam podendo contar com pouquíssimo apoio tanto em termos materiais quanto psicológico (Apoio Afetivo, Emocional, Informacional e de Interação Social Positiva). E com base nas informações coletadas ao longo das observações, essas efetivamente dispunham de pouca ou nenhuma oferta de ajuda no entorno social proximal23:

23 Durante o acompanhamento das famílias, foram feitas intervenções visando tecer relações no entorno, no

sentido de garantir alguns tipos de apoio, devido a necessidades urgentes observadas nas crianças. Por exemplo, no caso de Tatiana - Família B que, doente, precisava de algum adulto para dar o antibiótico no período em que a mãe estivesse no trabalho. Isso foi conseguido junto a uma nova vizinha, que há pouco residia no bairro. A ajuda durou uma semana apenas, pois seu marido a proibiu de ficar com as crianças daquela mãe devido a “confusões” (conflitos com outros vizinhos, presença de polícia na casa, etc.). Em outra situação, outra vizinha, depois de um tempo tomando conta das crianças para Lúcia (Família B) que lhe pagava certa quantia de dinheiro, por essa ajuda, comunicou que não queria mais as crianças na sua casa devido ao comportamento difícil delas: “mau-

“Aqui ninguém gosta de ajudar ninguém...” (Lúcia da Família B) “Minha família nunca fez nada para mim. Só eu mesmo que faço as coisas para mim”. (Lúcia da Família B).

“As minhas filhas tem eu para ajudar, mas não tenho ninguém para me ajudar...” (Avó de Inácio Família C).

No que concerne ao apoio social formal, ou seja, aquele que poderia vir de profissionais de programas do município esse, praticamente, não existia, à exceção da escola. Pode-se afirmar, nesse nível, que não havia qualquer instituição governamental ou ONG que acolhesse as crianças da faixa etária em questão, no período oposto ao da escola ou que tivesse em seu mandato realizar apoio e orientação de pais/responsáveis no tocante a aspectos de saúde ou qualquer outro. 24

Isto colocado, frente à incapacidade dos cuidadores, nas famílias desse sub- grupo, de dar adequadamente resposta às necessidades fundamentais das crianças, verificou-se, igualmente, que no entorno social da família, considerando apoios formais e informais disponíveis, nenhuma outra pessoas vinha ao encontro da criança, para responder às suas necessidades.