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As deposições intencionais de recipientes cerâmicos nas várias ocupações do sítio de

6. ESPAÇOS E ESTRUTURAS

6.7. As evidências simbólicas e rituais nos espaços e estruturas do sítio de São Pedro

6.7.2. As deposições intencionais de recipientes cerâmicos nas várias ocupações do sítio de

Some elements of daily life were played out with an added emphasis, in special context (…)

Richard Bradley, 2003, p. 364

A longa sequência de ocupações calcolíticas, com diferentes dinâmicas de construção e organização do espaço, documentadas no sítio de São Pedro condicionaram profundamente a preservação de deposições intencionais. O elevado estado de fragmentação da globalidade dos artefactos arqueológicos exige prudência nas leituras simbólicas de fragmentos e dos recipientes cerâmicos fragmentados em conexão. Com efeito, na maioria dos contextos em que se identificaram

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fragmentos de recipientes cerâmicos parcialmente quebrados em conexão, ou em que os fragmentos pertencentes à mesma peça se encontravam espacialmente próximos, não se documentaram evidências de estruturação nem intencionalidade específica, o que conduziu a que fossem interpretados como contextos de rejeição aleatória, de que se destacam como exemplos as unidades estratigráficas [125]; [257]; [1605]; [1706] (figura A3-65). Todavia, esta aleatoriedade na deposição não invalida totalmente o carácter ritual e simbólico destes contextos de descarte (Thomas, 2012), mas torna-os mais difíceis de identificar e demonstrar arqueologicamente. É igualmente importante referir que em alguns contextos específicos, como a associação de fragmentos de pequena dimensão de recipientes com decoração campaniforme à estrutura tipo empedrado do último momento de ocupação da fase V (figura A2-5; estampa 51), os fragmentos de recipientes poderão resultar de uma selecção e deposição intencional, com potencial carácter simbólico, ainda que a sua estruturação não seja evidente.

No sítio de São Pedro identificaram-se nove contextos com claros indícios de intencionalidade e estruturação de recipientes completos ou praticamente completos (num total de onze peças) no interior de estruturas negativas ou associados a elementos pétreos (tabela 4, figura A3-66). Estes recipientes foram na sua maioria depositados inteiros, sendo alguns deles posteriormente fracturados por pressão, devido à utilização continuada do sítio. O estado de conservação destas peças constitui desde logo um elemento diferenciador, uma vez que a grande maioria dos artefactos cerâmicos apresenta um elevado estado de fragmentação sendo muito complexa a reconstituição das suas formas.

Estas deposições estruturadas parecem corresponder à evidência material de manifestações simbólicas e rituais mais vastas, com etapas e preceitos que não deixam marcas no registo arqueológico, enquadrando-se na “(…) variante subterrânea (…) de la tradición prehistórica europea de condenación de la cultura material” (Márquez Romero, 2015, p. 227).

O recipiente [27] 1 é um vaso de bordo sem espessamento, direito e lábio convexo, com cerca de 12 cm de diâmetro, com algumas marcas de utilização (estampa 16). Esta peça identificou-se no interior de uma estrutura negativa de profundidade reduzida, numa área lateral, sem estruturação aparente (figura A3-66). Este contexto localiza-se no sector B, cortando alguns depósitos que encostam à muralha da fase II, o que o permite enquadrar nas fases de ocupação mais recente, provavelmente na fase IV.

Na unidade estratigráfica [165] que enche a estrutura negativa [191] foram identificados dois recipientes em bom estado de conservação, que não apresentavam evidências concretas de estruturação. O recipiente [165] 3 corresponde a um vaso de corpo achatado, com o bordo sem espessamento, introvertido e lábio convexo (estampa 16). O recipiente [165] 4 é uma taça hemisférica de bordo sem espessamento, direito e lábio convexo (estampa 16). A estrutura negativa em que estas peças foram depositadas apresentava uma planta circular e pouca profundidade, localizava-se no sector B e cortava a estrutura [26], que correspondia a um troço da muralha Sul da fase II. Assim, este contexto seria posterior à fase II, ainda que a sua proximidade com a superfície dificulte o faseamento mais pormenorizado.

101 O recipiente [462] 5 corresponde a um vaso de bordo sem espessamento, direito e lábio convexo, com cerca de 21 cm de diâmetro e alguma profundidade (estampa 15). Esta peça encontrava-se fragmentada em conexão, tendo sido depositada com o bordo a tocar o solo, entre pedras de xisto de média e grande dimensão (figura A3-66). Este contexto localizava-se numa área do sector E, enquadrando-se num momento avançado da fase de ocupação V.

O recipiente [1008] 1 corresponde a um vaso de morfologia esférica achatada, de bordo não espessado, ligeiramente exvertido (estampa 16). Este recipiente encontrava-se fragmentado em conexão, tendo sido depositado com a base a tocar o solo, numa ligeira depressão [1015], delimitada por lajes de xisto de pequenas dimensões dispostas em cutelo (figura A3-66). Este contexto localiza-se no sector D, enquadrando-se no final da fase IV ou na fase V.

No interior da estrutura negativa [1542] de contorno circular e profundidade reduzida identificaram-se duas unidades estratigráficas com duas deposições estruturadas de recipientes (figura A3-66). O recipiente [1538] 1 é um pote de morfologia globular, com o bordo não espessado, direito e o lábio convexo, de grandes dimensões (com cerca de 52 cm de diâmetro e cerca de 701 de capacidade). Esta peça encontrava-se fragmentada, mas mantinha a sua forma e posição original, com o bordo virado para baixo, sobre uma laje de xisto afeiçoada, que deverá ter constituído a sua tampa, estruturada com pequenas lajes de xisto, e cerâmicas e provavelmente com conteúdo, que permitiu manter o volume e a integridade. Sob esta peça identificou-se um seixo de quartzito e um bloco de granito, eventualmente parte de uma mó, mas que se encontrava bastante alterado, e o recipiente [1577] 1 de base plana com uma perfuração central pré-cozedura, que se encontrava depositado com o bordo virado para o solo (estampa 16). A forma deste recipiente apresenta características singulares, podendo a sua funcionalidade estar associada ao grande recipiente documentado. Estes contextos localizavam-se no sector D, nas proximidades de espaços domésticos, enquadrando-se num momento antigo da fase III, no qual grande parte do cabeço de São Pedro se encontrava abandonado e em ruína.

Tudo nestas deposições nos parece intencional e cuidadosamente estruturado, colocando-se mesmo a possibilidade de o recipiente [1538] 1 se encontrar visível à superfície durante algum tempo, uma vez que se localizava próximo de espaços de actividade (Mataloto e Costeira, 2016).

O recipiente [1718] 29 corresponde a um vaso de bordo não espessado, direito e lábio convexo, com cerca de 34 cm de diâmetro (estampa 15). Este recipiente foi deposto na vertical no interior na estrutura negativa [1750], de morfologia irregular e pouca profundidade, o que poderá ter comprometido o seu estado de conservação, uma vez que não se encontrava completa. Este contexto localizava-se no sector D, enquadrando-se na fase III.

O recipiente [1953] 1 corresponde a uma taça de paredes quase rectas e fundo ligeiramente convexo. Esta peça foi depositada com o bordo virado para o solo, fragmentada em duas partes, no interior da estrutura negativa [1928] (figura A3-66), identificando-se sobre ela um fragmento de uma haste de veado. Este contexto localizava-se no sector D, integrando-se na fase III.

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conexão, mantendo parcialmente a forma. Esta peça foi depositada em posição vertical, no centro da estrutura negativa [2600], que apresentava uma planta circular e irregular, e deverá ter sido realizada para esta acção específica (figura A3-66). Este contexto localizava-se no sector D, num momento antigo da fase II, em que a ocupação do cabeço de São Pedro seria pouco intensa.

O recipiente [2744] 135 corresponde a uma taça hemisférica, de bordo não espessado, direito e convexo e base convexa, que apresentava uma pega de morfologia arredondada junto ao bordo, o que a aproxima das colheres de grandes dimensões (estampa 16). Esta peça encontrava-se no enchimento da base da estrutura negativa [2794], de planta subquadrangular e base aplanada. Na base desta estrutura documentou-se igualmente uma haste de veado. Este contexto localizava-se no sector A, integrando-se num dos momentos de ocupação da fase II.

Tabela 4: Identificação e descrição dos recipientes cerâmicos depositados intencionalmente.

Recipiente Sector Forma

Tipo Diâmetro Máximo Orientação Deposição Estrutura Deposição Fase [27] 1 B Fechada

Vaso 12 cm Lateral Estrutura negativa IV

[165] 3 B Fechada Vaso 16 cm Indeterminada Estrutura negativa [191] III/IV [165] 4 B Aberta Taça 14 cm Indeterminada Estrutura negativa [191] III/IV [462] 5 E Fechada

Vaso 22 cm Bordo a tocar o solo

Estruturada por

pedras V

[1008] 1 D Fachada

Vaso 24 cm Base a tocar o solo

Depressão estruturada por pedras [1015] IV/V [1538] 1 D Fechada Pote 56 cm

Bordo virado para baixo, sobre tampa de

pedra

Estrutura negativa

[1542] III

[1577] 1 D

Aberta Taça com base

perfurada

18 cm Bordo a tocar o solo Estrutura negativa

[1542] III

[1718] 19 D Fechada

Vaso 33 cm Base a tocar o solo

Estrutura negativa

[1750] III

[1953] 1 D Aberta

Taça Ind.

Bordo a tocar o solo, fragmentada em duas

partes

Estrutura negativa

[1928] III

[2585] 1 D Fechada

Vaso Ind. Base a tocar o solo

Estrutura negativa

[2600] III

[2744] 135 A Aberta

Taça com pega 14 cm Indeterminada

Estrutura negativa

[2794] I/II

Na sua globalidade, as características morfo-tecnológicas destes recipientes não constituem elementos diferenciadores, ajustando-se aos padrões documentados para os diversos contextos do sítio de São Pedro ao longo das suas cinco fases de ocupação. Alguns dos recipientes apresentam vestígios

103 de utilização, o que poderia indiciar uma biografia utilitária anterior à deposição e amortização intencional.

A selecção destes recipientes evidencia a ritualização de objectos quotidianos (Bradley, 2003, Brück, 1999) que podem ter sido elaborados com este objectivo concreto, ou que por particularidades da sua biografia se tornaram elementos com destaque (Thomas, 1999, p. 125), dignos de um contexto especial de deposição.

Seis das deposições intencionais correspondem a formas fechadas fundas (vasos e potes) de média e grande dimensão, ajustando-se por isso mais a funções de armazenagem de conteúdos do que de consumo. Neste conjunto de deposições, as formas abertas surgem representadas por cinco taças hemisféricas, de média dimensão, individualizando-se morfologicamente as peças [1577] 1 e [2744] 135 por apresentarem uma perfuração na base e uma pega, respectivamente.

Apesar de ainda não se terem realizado análises aos sedimentos do interior dos recipientes, nem às suas superfícies internas para obter informações sobre os seus conteúdos, a integridade morfológica de muitas das peças, poderá sugerir que se encontravam preenchidas aquando da deposição.

No que se refere à orientação das deposições registam-se quatro recipientes com o bordo a tocar o solo, um dos quais com tampa de pedra (posição invertida), três com a base a tocar o solo e três em posição indeterminada.

À excepção do contexto [462] 5, todas as deposições foram realizadas no interior de estruturas negativas ou pequenas depressões, que na sua maioria apresentavam contornos circulares e profundidades reduzidas. As estruturas [1015], [1542], [1928] e [2600] parecem ter sido escavadas propositadamente para conter as deposições estruturadas de recipientes. No caso da estrutura [2794], as suas características morfológicas e métricas permitem colocar a hipótese de uma utilização anterior à sua colmatação.

Em termos espaciais, os contextos de deposição intencional de recipientes identificaram-se em vários dos sectores de escavação (figura A2-7), registando-se seis ocorrências no sector D, três no sector B e uma nos sectores A e E respectivamente. Nos sectores C e F não se documentaram deposições intencionais, o que pode estar relacionado com distintas condições de preservação.

Estas deposições enquadram-se nas várias fases de ocupação do cabeço de São Pedro, mas em proporção diferenciada. Assim, nas fases de ocupação mais antigas (I/II) apenas se enquadra o recipiente [2744] 135 que apresenta algumas especificidades que se distinguem dos restantes elementos referidos e tornam a sua interpretação mais problemática. Desde logo, importa assinalar que a morfologia do recipiente apresenta características peculiares, difíceis de paralelizar no sítio em estudo e com algumas semelhanças a recipientes identificados em contextos funerários. Estas características, associadas ao estado de conservação do recipiente e à localização na base da estrutura negativa [2794], na qual se identificou também um fragmento de uma haste de veado, constituem os principais argumentos que nos levaram a colocar a hipótese da sua deposição intencional. Todavia, esta interpretação fragiliza-se com o facto de não se identificarem sinais claros de estruturação na

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deposição e de o recipiente se encontrar num depósito com cerca de 134 fragmentos de recipientes classificáveis, no interior de uma estrutura negativa de planta subquadrangular e alguma profundidade, sendo o único contexto localizado no sector A.

Na fase de ocupação III integram-se cinco das deposições identificadas no sector D, correspondendo aos contextos que apresentam indícios mais significativos de estruturação. Os vestígios de ocupação da fase III documentam-se principalmente na área Norte do cabeço (sector D), correspondendo a estruturas negativas ou constituídas em materiais perecíveis, de que restam alguns buracos de poste, algumas lareiras, como [1389] e [1129] e à construção de uma estrutura quadrangular, que reutiliza o troço [716=832] da muralha da fase II. Apesar da dificuldade na interpretação estratigráfica desta área do cabeço, estes contextos domésticos parecem relacionar-se com as deposições dos recipientes [1538] 1, [1718] 19, [1953] 1 e [2585] 1.

As deposições [27] 1, [165] 3 e [165] 4, localizadas na vertente Sul do cabeço, sector B, não apresentam sinais evidentes de estruturação, associando-se a estruturas negativas que cortam vários troços da muralha da fase II, o que os torna posteriores à utilização e desmonte desta estrutura, integrando-se por isso nas fases III ou IV.

No segundo momento da ocupação da fase V, em que o empedrado já se encontrava edificado, enquadram-se as deposições [462] 5 e [1008] 1, que apresentam um elevado índice de estruturação, podendo estar associadas às vivências “simbólicas” no cabeço, após o seu abandono como povoado (Mataloto, et al., 2015; Mataloto e Costeira, 2016).

O conjunto de deposições de recipientes [462] 5, [1008] 1, [1577] 1, [1718] 19, [1953] 1 e [2585] 1, que apresentam maiores indícios de estruturação, isto é, que parecem resultar de acções deliberadas (Thomas, 2012), enquadraram-se nos inícios da fase III e nos finais da fase V, correspondendo a momentos de abandono ou de menor intensidade de ocupação, registando-se uma clara intencionalidade na escolha da vertente Norte do cabeço (sectores E e D) para a sua localização, o que poderá estar associado a questões de implantação e visibilidade. Com efeito, esta vertente é a mais imponente, quando observada da base da encosta, e aquela que melhor permite observar a Serra d’Ossa. As características das deposições, a sua espacialidade e temporalidade permitem reforçar o carácter simbólico destes contextos, enquanto elementos de ligação entre o Passado e o Presente (Mataloto e Costeira, 2016) e a importância do cabeço de São Pedro para a construção identitária das comunidades que habitavam este território em tempos de mudança como os que parecem caracterizar o segundo quartel e principalmente o final do 3.º milénio a.n.e. (Valera, 2015).

6.7.2.1. As deposições intencionais de recipientes – abordagem geral

As deposições intencionais de recipientes cerâmicos do São Pedro enquadram-se num contexto mais vasto do Sudoeste peninsular, em que apesar das parcas informações publicadas, estas se têm vindo a documentar em contextos muito diversificados.

105 Não obstante o desenvolvimento de novas propostas interpretativas, muitas delas enquadradas nas correntes pós-processualistas, sobre as deposições simbólicas de artefactos em sítios calcolíticos fortificados (Jorge, 2005, Vale, 2011) e de fossos (Valera, 2010, p. 37-39; Jiménez Jáimez e Márquez Romero, 2008), a questão das deposições intencionais de recipientes inteiros em cerâmica em contextos de habitat tem sido pouco abordada. Esta situação poderá relacionar-se com a acentuada valorização dos fragmentos (a parte) em detrimento dos recipientes (Baptista, 2013), com o intuito de destacar a intencionalidade das acções de fragmentação, dispersão e deposição de fragmentos nos variados contextos calcolíticos, ou com a reduzida identificação de deposições intencionais de recipientes inteiros em povoados.

Todavia, a bibliografia demonstra que a presença de recipientes inteiros com indícios de intencionalidade na sua deposição ocorre em vários povoados calcolíticos de diferentes geografias peninsulares, enquadrando-se em áreas e momentos de ocupação muito variados. Os Perdigões, Ponte da Azambuja e Mercador são alguns dos sítios do Alentejo médio em que se documentaram deposições estruturadas de recipientes cerâmicos inteiros no interior de estruturas negativas.

Nas recentes campanhas de escavação dos Perdigões (Reguengos de Monsaraz) têm-se identificado múltiplas deposições intencionais de recipientes de morfologias e dimensões variadas, algumas estruturadas com pedras, como é possível observar em várias das fotografias publicadas no blogue Perdigões 2011 sobre as campanhas de escavação de 2011, 2013 e 2014. Os contextos de deposições intencionais do fosso 3 e da fossa 5 do sector 1 já se encontram publicados. Na primeira estrutura documentou-se um vaso suporte inteiro, colocado na vertical, ladeado por seixos, e na fossa 5 a deposição de dois recipientes praticamente completos num dos lados do topo do enchimento (Valera, 2008, p. 20-23, figs. 5, 11 e 24).

Nas proximidades do povoado da Ponta da Azambuja 2, na margem da ribeira da Azambuja, identificou-se um recipiente de grandes dimensões (38 cm de diâmetro externo do bordo, 40 cm de altura e 2 cm de espessura), de paredes rectas e base plana, com dois elementos plásticos, praticamente completo, depositado intencionalmente na vertical, numa pequena cova (Martins, et al., 2004-2005). As características morfológicas deste recipiente e a sua proximidade com um povoado do Neolítico Final constituem bons argumentos para a sua integração nesta cronologia, assumindo-se assim como mais um exemplo de uma deposição intencional de um recipiente de grandes dimensões liso. O contexto em que se identificou este recipiente é complexo uma vez que não se conseguiu demonstrar a sua relação directa com o povoado da Ponta da Azambuja, constituindo por isso uma deposição isolada, próxima de linhas de água.

No povoado do Mercador (Mourão) registou-se a deposição intencional de um pequeno recipiente inteiro, no interior de uma estrutura negativa (fossa 20) de planta elipsoidal e profundidade reduzida (Valera, 2013 a, p. 64 e 309-311). A intencionalidade e carácter simbólico desta deposição são assinalados, mas não se avança para uma interpretação do seu significado. Este contexto parece relacionar-se com a fase de utilização do sítio.

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Na Estremadura documentaram-se deposições intencionais de recipientes cerâmicos no povoado do Outeiro Redondo e de Vila Nova de São Pedro.

No povoado do Outeiro Redondo (Sesimbra) identificaram-se dois recipientes fracturados em conexão sobre os derrubes das estruturas pétreas (Cardoso, 2011, p. 97, figs. 17 e 18), que aparentemente foram depositados em posição invertida, com os bordos fincados no solo. O primeiro destes recipientes correspondia a um vaso globular de bordo espessado interna e externamente, com múltiplas perfurações sob o bordo, que se encontrava decorado pelo exterior, imediatamente abaixo destas com linhas caneladas horizontais e oblíquas, e o segundo a uma taça de bordo espessado, com a superfície interna totalmente decorada com motivos espinhados e semicircunferências concêntricas (Cardoso, 2011, p. 94-95). A deposição destes recipientes foi interpretada como intencional, simbolicamente relacionada com o abandono do povoado.

No povoado de Vila Nova de São Pedro (Azambuja) recuperou-se, nas escavações da década de 40 do século XX, um recipiente de grandes dimensões completo, depositado com o bordo para cima, rodeado por pedras, no interior de uma estrutura negativa, associado à deposição de bovídeos (Paço, 1943). O significado simbólico desta deposição foi valorizado desde a sua identificação, tendo-se relacionado com um momento fundacional do povoado (Gonçalves, 1994), ou de uma área específica (Cardoso, 2011, p. 102).

Considera-se que a intencionalidade e formalização destas deposições deverão ser integradas no domínio do simbólico, uma vez que a localização e posição dos recipientes apresentados, em particular os depostos com o bordo virado para o solo ou os posicionados com uma clara estruturação, não se adequam a uma leitura funcional. É importante salientar que os recipientes estão completos e não apresentam, no sítio de São Pedro, e em muitos dos casos referidos, qualquer tipo de decoração, o que parece indicar uma valorização do recipiente como um todo, e eventualmente da sua função/utilização/conteúdo. Este aspecto parece ser reforçado pelo facto de a maioria corresponderem a recipientes fundos, e por vezes fechados, aptos para conservar conteúdos.

A inumação de recipientes cerâmicos completos no interior de estruturas negativas constitui uma das evidências arqueológicas de formalização do fim da “vida” ou “morte simbólica” de objectos, que apresentam uma grande capacidade comunicativa e transversalidade cronológica e cultural (Márquez Romero, 2015, p. 227).

As deposições estruturadas de artefactos do quotidiano podem estar associadas a diferentes episódios sociais e culturais (Brück, 1999 a; Brück, 2001; Gerritsen, 1999, p. 95; Cardoso, 2011; Anderson – Whymark, Thomas, 2012, p. 191; Márquez Romero, 2015, p. 231), marcando etapas destacadas da vida dos indivíduos (nascimento, diferentes momentos de crescimento, inter-relação de indivíduos, morte, entre outros), momentos concretos dos ciclos das várias actividades económicos desenvolvidas pela comunidade, fundação, construção e abandono de espaços e estruturas, episódios concretos da vida do grupo (problemas climáticos, ciclos de prosperidade e carência económica, fome e abundância, doença, conflitos internos, guerra, paz, alianças, entre outros).

107 Admitindo esta miríade de possibilidades interpretativas, a deposição de recipientes inteiros com o bordo a tocar o solo poderia estar associada à perda de uso das peças e/ou ao fim da utilização de espaços quotidianos, por isso a momentos de abandono, ou contextos problemáticos tal como se documenta noutras cronologias (Idade do Bronze, Idade do Ferro, Época Romana) e em paralelos etnográficos actuais (Cardoso, 2011, p. 100). Nos casos em que os recipientes se encontram depositados com a base a tocar no solo, ou seja, com a orientação em que seriam utilizados, poderiam