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O processo de escavação arqueológica do sítio de São Pedro

4. AS INTERVENÇÕES ARQUEOLÓGICAS NO SÍTIO DE SÃO PEDRO

4.3. As intervenções arqueológicas de salvaguarda prévias à construção da Via Circular

4.3.2. O processo de escavação arqueológica do sítio de São Pedro

Os resultados obtidos com as sondagens de diagnóstico não comprometeram o avanço do projecto de construção, mas impuseram a escavação integral da área a afectar, que no final dos trabalhos rondava os 2000 m2 (que corresponderá a cerca de 2/3 da área ocupada), a preservação de toda a informação produzida pelo registo e o desmonte das estruturas identificadas (figuras A3-8, A3- 9 e A3-10).

Os trabalhos de escavação prosseguiram imediatamente após as sondagens, utilizando-se meios mecânicos para a remoção dos estratos superficiais. Nestas primeiras acções de limpeza e preparação do terreno, apenas se recolheram os materiais arqueológicos que permitiam classificação e reconstituição gráfica, sendo os restantes seleccionados e depositados junto ao muro de propriedade mais ocidental.

No início dos trabalhos não foi autorizado o arranque das oliveiras que se dispersavam por grande parte da área de escavação, permanecendo a maioria ao longo de toda a intervenção, o que condicionou o registo na sua área de implantação. Deste modo, durante o processo de escavação apenas se removeram as oliveiras estritamente necessárias, principalmente por motivos de segurança.

Após os trabalhos de escavação, o sítio de São Pedro, com excepção de duas pequenas áreas a Oeste e a Nascente, foi destruído para no seu lugar surgir a Via Circular Poente à Vila de Redondo (figuras A1-3, A1-11 e A3-11).

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4.3.2.1. A área de intervenção: organização e caracterização

Na área intervencionada implantou-se uma quadrícula de referência concordante com as primeiras valas de sondagem, orientada a Nordeste. Esta malha cruzava no canto das duas valas iniciais, onde se marcava o valor de 100 m, desenvolvendo-se, posteriormente, no sentido Sul – Norte e Oeste – Este, de acordo com os preceitos das coordenadas cartesianas (Mataloto, 2010, p. 267). Num dos limites da base da antena de telecomunicações instalou-se o ponto de referência altimétrica (318, 62 m).

Dividiu-se a área de escavação, com cerca de 2000 m2, em seis sectores, de A a F (figura A2-1), com o intuito de orientar a abordagem no terreno, simplificar a organização da informação e permitir a rápida localização das estruturas e materiais. Estes sectores foram definidos tendo em conta as características topográficas do terreno e as estruturas pétreas de maiores dimensões, não tendo nenhum significado funcional nem leituras estratigráficas particulares.

O sector A circunscrevia-se ao topo do cabeço, correspondendo a uma área de cerca de 160 m2, delimitada pela estrutura de fortificação mais recente (Fase IV). Neste sector documentaram-se as várias fases de ocupação do sítio arqueológico, registando-se uma potência estratigráfica com alguma expressão.

O sector B correspondia ao espaço existente entre as duas estruturas de fortificação, sendo o mais extenso, com cerca de 600 m2, e complexo, ao concentrar o âmago de toda a ocupação pré-histórica do sítio numa fina estratigrafia.

O sector C localizava-se a Sul, correspondendo à área exterior da muralha de maiores dimensões (fase II) e incluía uma área de cerca de 445 m2. Neste sector, documentam-se principalmente as fases de abandono/reconstrução desta fortificação.

O sector D situava-se na área virada a Norte, na zona de maior declive, entre a muralha de maiores dimensões e a estrutura [483], apresentando grande potência estratigráfica, tendo uma área de aproximadamente 460 m2. De facto, as características topográficas desta área, associadas às estruturas arqueológicas, originaram uma bacia de deposição, onde as unidades do interior eram mais recentes que as dos limites, embora estas se encontrassem a cotas mais elevadas, devido aos processos de erosão.

O sector E localiza-se a Oeste, num espaço com cerca de 102 m2, delimitado pela antena de telecomunicações e o muro de propriedade a Oeste Esta área foi muito afectada pela construção da primeira estrutura referida, o que dificultou a sua conexão com os restantes sectores. Neste espaço registaram-se sobretudo evidências das fases mais recentes de ocupação do sítio arqueológico.

O sector F resultou no alargamento para Oeste dos sectores A, B e E, de 87 m2, 77 m2 e 54 m2, respectivamente, perfazendo um espaço triangular. Na extremidade Norte desta área a estratigrafia encontrava-se bastante afectada, com a presença do afloramento rochoso praticamente à superfície.

39 4.3.2.2. Escavar em área um sítio pré-histórico

(…) archaeological sites are immensely complicated (…) the ideal excavation is very difficult to achieve. I believe that the larger the continuous area of excavation can be, the more complete and undistorted the results will be. Philip Barker, 1977, p. 101

(…) area-excavation strategy is often the most desirable course of action upon which an excavator should embark. (…) A site is

more easily understood when entirely exposed than when it is divided into a series of holes.

Edward Harris, 1989, p. 20 Aparentemente complicado, principalmente no início, torna-se um

método relativamente fácil e rápido, consoante o grau de pormenorização que se queira obter.

Amílcar Guerra, 1982, p. 19

O contexto da intervenção e a necessidade de escavar integralmente uma ampla área de afectação conduziram à utilização de uma metodologia de escavação em área aberta, ou na expressão original inglesa open area, seguindo-se os princípios preconizados por Barker (1977) e Harris (1989). Este método procura inter-relacionar o vector cronológico (diacrónico) com o vector espacial/contextual (sincrónico) na interpretação arqueológica (Guerra, 1982, p. 8), pretendendo registar o dinamismo do passado.

Globalmente procedeu-se à definição e registo de unidades estratigráficas (depósitos, estruturas positivas, interfaces negativas) e à sua remoção manual, em conformidade com a sua forma e contorno, procurando seguir a sequência inversa à sua formação (Barker, 1977, p. 91; Harris, 1989, p. 15). A escrupulosa delimitação das diferentes unidades estratigráficas identificadas, entendidas como o elemento mínimo de registo, permitiu a leitura dos ritmos de sobreposição temporal e a elaboração de imagens de estratigrafia vertical e horizontal. De facto, a organização da realidade arqueológica em unidades estratigráficas “(…) apresenta vantagens no pensar da estratigrafia e dos seus processos de formação, assim como aprofunda a abordagem do pormenor (…)” (Valera, 2007, p. 81), permitindo uma maior aproximação à pluralidade de “gestos” do passado.

No caso concreto do sítio arqueológico de São Pedro todas as unidades estratigráficas foram definidas com a superfície humedecida e raspada a colherim, de modo a salientar os seus contornos, facilitando assim a diferenciação dos estratos.

Para a identificação de cada unidade estratigráfica utilizou-se um algarismo árabe atribuído sequencialmente de acordo com a ordem de aparecimento no acto de escavação, independentemente da sua posição ou antiguidade. Esta numeração iniciou-se no 1 e terminou no 3134, não correspondendo a ordem numérica necessariamente à formação deposicional das unidades estratigráficas.

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Todas as unidades estratigráficas foram registadas individualmente num desenho de planta à escala 1:20, fotografia digital e numa ficha descritiva individual, que sintetiza as suas principais características físicas e inter-relações estratigráficas. De modo a agilizar o processo de escavação criou-se uma listagem esquemática global de unidades estratigráficas (figura A4-64) com os seguintes descritores:

• Número de unidade estratigráfica (UE) • Sector (Sec.)

• Data de identificação; • Metros;

• Descrição das principais características físicas e dos materiais identificados; • Indicação das inter-relações estratigráficas imediatas (Sob UE; Sobre UE) • Autor da fotografia digital (Foto digital) e do desenho (Des.)

• Responsável pela escavação da unidade estratigráfica (Esc.).

A ficha de registo individual de cada unidade estratigráfica (figura A4-65), construída com base na proposta do manual de arqueologia do Museu de Londres (Museu de Londres, 1994), apresentava critérios mais detalhados, adequados às especificidades dos depósitos, estruturas (resultado de acções de acumulação) e interfaces negativas (acção de subtracção). Esta ficha estrutura-se em oito partes:

• Identificação

• Descrição e classificação • Relações estratigráficas/Matriz

• Interpretação e observações relevantes para a discussão

• Indicação do tipo de registo gráfico e fotográfico, da data e do responsável pela escavação da unidade estratigráfica

• Referência às amostras de terra recolhidas e às categorias de achados identificados • Indicação da fase e cronologia

• Observações finais.

Todas as unidades estratigráficas são identificadas pelo número de unidade, referência ao sítio arqueológico de proveniência (SPD), metros e sector da escavação em que se localizam, tipo de contexto e ano da campanha.

Os depósitos são descritos com base em critérios macroscópicos, nomeadamente a coloração, compactação, composição, frequência de inclusões, espessura, extensão, grau de definição, método e condições de escavação.

A coloração foi definida de acordo com as tonalidades predominantes (cinzenta, castanha, beije, amarela, entre outas), sem recurso a um dicionário ou tabela de cores. A composição podia ser de base

41 argilosa, arenosa ou siltosa e respectivas variantes e combinações, com diferentes graus de compactação (endurecida, compacta, semi-compacta, solta). Identificação dos elementos orgânicos e geológicos (inclusões) embalados pelo depósito, considerando o respectivo tipo, calibre e frequência. Identificação dos elementos artificiais presentes no depósito. Indicação do grau de definição do depósito, considerando as opções pronunciado, claro e difuso e avaliação da sua fiabilidade (contaminado, fiável, muito fiável). Referência ao equipamento utilizado e às condições atmosféricas na remoção do depósito.

Na descrição das interfaces negativas referiu-se o contorno do topo, as dimensões máximas, orientação e inclinação, a morfologia das arestas laterais e da base, o perfil das paredes e a sua orientação em relação à base, a truncagem e o número de depósitos de enchimento.

As estruturas positivas foram descritas de acordo com o tipo de materiais que a compõem, dimensão, regularidade e disposição do aparelho, aglutinante, morfologia em planta e perfil, orientações, dimensões máximas preservadas e número de fiadas conservadas.

Para além do desenho de planta à escala 1:20 realizado para todas as unidades estratigráficas, procedeu-se ao registo gráfico os perfis de todas as estruturas de cota negativa e dos alçados de todas as estruturas de cota positiva, recorrendo-se igualmente à escala 1:10 sempre que considerado necessário e cientificamente justificável.

A análise estratigráfica culmina na elaboração de um esquema comummente conhecido como matriz de Harris, que pretende “(…) representar as relações complexas entre as diversas UEs de forma a individualizar agrupamentos de UEs, fases e períodos de ocupação de um determinado local.” (Guerra, 1982, p. 9). Esta matriz é uma ferramenta imprescindível na interpretação de um sítio arqueológico. No entanto, a extensão do arquivo estratigráfico construído, com 3134 unidades identificadas e os parcos recursos humanos disponíveis no processo pós-escavação, ainda não permitiram concluir esta tarefa, tendo apenas sido elaborada uma parte da matriz estratigráfica referente ao sector A (Mataloto, Gauss, no prelo). Apesar destas limitações, neste trabalho, com a disponibilidade de Rui Mataloto, foi possível apresentar o faseamento da maioria dos depósitos e estruturas positivas e negativas analisadas.

No decorrer da escavação das unidades estratigráficas procedeu-se à recolha sistemática de materiais arqueológicos, diferenciados unicamente segundo a sua matéria-prima, acondicionados em sacos de plástico e identificados com fichas de materiais.

Nestas fichas indica-se o sítio arqueológico, o sector e a unidade estratigráfica de proveniência, o tipo de material (cerâmica, líticos, metal, fauna, carvões, outros), o ano da campanha de escavação, a data, o responsável e a forma da recolha (crivo/manual). Sempre que as características e condições do depósito exigissem, foram efectuadas recolhas sedimentares para a realização de análises posteriores.

O carácter de salvaguarda desta intervenção arqueológica exigiu um sério equilíbrio entre o tempo disponível e a sistematização das recolhas. Assim, os sedimentos escavados, salvo casos específicos, não foram crivados, o que não impediu a recolha de materiais de dimensões muito

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reduzidas, principalmente no que se refere às categorias de líticos lascados (Nukushina, et al., no prelo).

Os artefactos não têm, excepto raras excepções, registo tridimensional individual, reportando-se a sua localização à unidade estratigráfica de proveniência (Harris, 1989, p. 124). Esta perspectiva decorre da valorização do contexto como ferramenta metodológica (Hodder, 1986, p. 123) face aos artefactos isolados, que na sua globalidade apresentam um elevado estado de fragmentação e uma posição dificilmente interpretada como intencional. Com efeito, um sítio arqueológico como o de São Pedro, com uma longa diacronia de ocupação em época pré-histórica, apresenta sistematicamente contextos de formação antrópica de remobilização, o que associado ao dinamismo dos processos e fenómenos naturais que condicionam as realidades arqueológicas desde o seu abandono até à sua identificação e escavação exigem a máxima prudência na definição da posição original (fabrico, utilização ou deposição) dos artefactos. Considero assim, muito arriscado a supervalorização de alguns fragmentos (normalmente os classificáveis) em campo na ilusão de que isolados permitem reconstituir contextos originais. Por outro lado sou relativamente céptica face ao significado simbólico de grande parte dos fragmentos que se identificam em áreas de habitat, com longas diacronias de ocupação, como é proposto por alguns investigadores que têm realizado trabalhos deste género em povoados calcolíticos, principalmente do interior Norte de Portugal (Vale, 2011; Mcfadyen, 2016, no prelo). As concentrações artefactuais expressivas ou deposições de artefactos interpretadas como acções intencionais foram consideradas contextos específicos, estando registadas como unidades estratigráficas (a título de exemplo observe-se as unidades [381]; [1008] e [1538]), o que permite demonstrar as potencialidades deste método no registo de realidades concretas e individualizáveis (Valera, 2007, p. 81).

O espólio foi submetido a um processo de limpeza, embalagem e acondicionamento em contentores, devidamente separados por categorias de matérias-primas, organizados por sectores de escavação. Os artefactos cerâmicos foram divididos entre materiais inclassificáveis (bojos simples) e materiais classificáveis (todos os elementos que permitem uma aproximação à morfologia da peça, e/ou que tenham características de destaque). Os fragmentos das diferentes categorias de cerâmica classificável de cada unidade estratigráfica foram colocados no mesmo saco. Os artefactos líticos foram organizados de acordo com as diferentes categorias – pedra lascada, pedra polida, pedra afeiçoada.

Todo o material foi marcado com o acrónimo do sítio em maiúscula (SPD) e o número de unidade estratigráfica.

Os elementos classificáveis receberam um número de inventário atribuído numa sequência restrita a cada unidade estratigráfica. Esta opção resulta por um lado da valorização da unidade estratigráfica como elemento mínimo de registo, e por outro lado, da grande dimensão do conjunto artefactual classificável, que tornava praticamente inoperante uma sequência de inventário única. Assim, número de unidade estratigráfica e número de inventário são indissociáveis na identificação

43 dos artefactos.

Todo o espólio arqueológico deste sítio encontra-se num espaço na vila do Redondo, sendo a sua preservação da responsabilidade da Câmara Municipal.

4.3.2.3. Breves notas finais

O método de escavação em área aberta é, na actualidade e principalmente nas intervenções de salvaguarda, o mais utilizado no contexto arqueológico português, convergindo com a arqueologia mundial (Hammond, 1993). No entanto, muitos pré-historiadores portugueses continuam a manter sérias reservas e muitas críticas a escavações em que a unidade essencial não é um quadrado restrito e controlável, mas toda a área em escavação, onde a estratigrafia não é a aferida quadrado a quadrado, mas em plano, onde o artefacto é indissociável do seu contexto e a ficha de registo individual se sobrepõe ao caderno de campo.

Não se pretende fazer a apologia do método de escavação em open area, que tem limitações e imperfeições, mas demonstrar a sua aplicabilidade em sítios arqueológicos pré-históricos e as vantagens profissionais e éticas da sua utilização (Harris, 2006, p. 142). No caso concreto do sítio de São Pedro, o método de escavação em open area permitiu construir uma visão em área das várias estruturas positivas calcolíticas, identificar estruturas negativas num povoado de altura com muralhas, registar o dinamismo e sobreposição dos diferentes momentos de ocupação pré-histórica e reconhecer a diversidade de contextos dos artefactos.

Considera-se que as principais fragilidades das intervenções arqueológicas como a que se realizou no sítio de São Pedro não residem na aplicação do método de open area, mas na difícil conciliação entre o tempo disponível para a execução dos trabalhos, a dimensão da equipa e o material necessário à realização de um trabalho rigoroso e pormenorizado. Os princípios da estratigrafia arqueológica, em que se fundamenta o método de open area pretendem ser universais (Harris, 2006, p. 147), no entanto a definição das estratégias da sua aplicação exige reflexão e adaptação à grande variabilidade e idiossincrasia dos sítios arqueológicos (Hodder, 1999, p. 2). Este método permite uma escavação e registo pormenorizado de sítios pré-históricos de dimensões variadas, interpretados como povoados, mas também de contextos mais restritos como os monumentos megalíticos (Mataloto e Boaventura, 2010, p. 10).

No pós-escavação, o tratamento e estudo da grande quantidade de dados arqueológicos que uma intervenção com estas dimensões produz é também uma etapa muito problemática, não só devido aos meios e tempo necessários, muitas vezes superiores aos da fase de escavação para a sua realização, mas principalmente devido à dificuldade na obtenção de financiamento. Esta fragilidade no estudo dos dados produzidos na escavação vai comprometer a sua publicação e divulgação não só para a comunidade científica, mas principalmente para a sociedade em geral. Sem retorno de informação, a escavação arqueológica arrisca tornar-se numa etapa solitária, científica e socialmente pouco

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consequente.