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As diferentes perspectivas de análise das estruturas negativas

6. ESPAÇOS E ESTRUTURAS

6.5. As estruturas negativas

6.5.1. As diferentes perspectivas de análise das estruturas negativas

As diferentes perspectivas de análise arqueológica das estruturas negativas podem agrupar-se em dois grandes conjuntos, um que salienta as suas características funcionais, enquanto elementos independentes ou integrados em estruturas mais complexas, associando-se a outros materiais de construção e artefactos; e outro que valoriza os gestos e contextos simbólicos/rituais que lhes estão associados.

As estruturas negativas podem estar relacionadas com a construção de espaços habitacionais ou funcionais constituindo a fundação destas estruturas (“fundos de cabana”), ou os elementos para a sustentação das paredes ou coberturas (buracos de poste). As estruturas interpretadas como “fundos de cabana” caracterizam-se por apresentar morfologias alongadas, tendencialmente circulares e subcirculares, tendo profundidades reduzidas, mas diâmetros relativamente significativos (Lizcano, et al., 1993; Bruno, 2010, p. 88; Alves, et al., 2013, entre outros), podendo associar-se a outros elementos de construção como argamassas de argila, buracos de poste, elementos pétreos, entre outros. A interpretação de algumas das estruturas negativas identificadas em sítios neolíticos e calcolíticos como “fundos de cabana”, não significa que as estruturas habitacionais fossem em negativo, uma vez que nas propostas da sua reconstituição se coloca a possibilidade destas estruturas apresentarem paredes constituídas por terra e ou engradados de ramagens e coberturas igualmente em materiais perecíveis

87 (Jongsma e Greenfield, 2002, p. 7). Assim, a estrutura negativa constituiria apenas a fundação da estrutura habitacional. Esta proposta é considerada desajustada por vários investigadores (Márquez Romero, Jiménez Jáimez, 2010), uma vez que referem que não se identificam quantidades significativas de vestígios de materiais de construção, que permitam a sua reconstituição como estruturas habitacionais com uma parte em negativo e outra em positivo. Todavia, esta ausência de materiais de construção também se coloca para as estruturas habitacionais com fundações pétreas, como já se referiu anteriormente, estando mais associada à dificuldade de preservação do que à sua efectiva inexistência. Na interpretação do povoado de La Orden-Seminário (Huelva), os autores da escavação consideram que os “pisos de habitación serían en superficie o muy someramente excavados en el subsuelo, lo que explicaría la distribución espacial ordenada de las estructuras siliformes (…)” (Vera Rodríguez, et al., 2009, p. 211). Para estes autores, a utilização continuada dos solos onde se localizava o sítio arqueológico, para a actividade agrícola, principalmente com a sua mecanização a partir do século XX, condicionou fortemente a preservação de estruturas e materiais arqueológicos que se encontravam depositados fora das estruturas negativas. Na análise do conjunto de estruturas negativas do sítio Varandas 2, cuja organização permite desenhar um espaço de tendência circular, os autores da escavação colocam a hipótese das estruturas corresponderem a fundações de construções em madeira ou em pedra (Gomes, et al., 2015, p. 155 e 157).

A interpretação das estruturas negativas como fundações de estruturas construídas em materiais perecíveis, como a madeira, também é sugerida para contextos funerários como o Outeiro Alto 2 (Valera e Filipe, 2012). Neste sítio arqueológico, os autores organizaram as diferentes estruturas negativas em conjuntos, considerando que a sua implantação padronizada as poderia associar à construção de um recinto circular, correspondendo as estruturas mais fundas à implantação de postes de madeira. Este contexto reforça o papel funcional de algumas estruturas negativas, mesmo quando identificadas em contextos “especiais”, em que outras estruturas deste tipo foram utilizadas como espaços funerárias ou apresentam outras deposições intencionais

Algumas das estruturas negativas poderão ter sido elaboradas para funções de combustão (lareiras e fornos). Estas estruturas negativas podiam apresentar paredes simples ou com revestimentos de argamassas de argila, apresentando formas tendencialmente côncavas, perfis circulares e profundidades reduzidas (Bruno, 2010, p. 92). As estruturas utilizadas nesta função podem apresentar blocos de pedra estalados por acção do fogo ou vestígios de carvões.

As estruturas negativas neolíticas e calcolíticas, à semelhança das estruturas registadas em cronologias históricas e em observações etnográficas, poderiam desempenhar funções de armazenagem, o que conduziu à sua designação como “silos” (Martin de la Cruz, 1986; Lizcano, et al., 1993; Hurtado, 1999, 2003, entre outros). As necessidades de armazenagem não são exclusivas das comunidades produtoras, ainda que a gestão dos recursos da agricultura e da pastorícia as tornem mais prementes e formalizadas (Kent, 1999, p. 80). As funções de armazenagem que algumas das estruturas negativas poderiam ter desempenhado não estariam somente ligadas a alimentos decorrentes de

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actividades agrícolas, como alguns autores referem, podendo estar igualmente relacionadas com a recolecção de algumas espécies vegetais alimentares ou artesanais, conservação de outros tipos de alimentos, ou de bens não alimentares (Barber,1991, Kent, 1999, p. 80). Assim, as necessidades de armazenagem seriam variadas e com diferentes ritmos, podendo estar mais ligadas à gestão dos vários recursos disponíveis por parte de uma comunidade, como forma de superar as suas necessidades ao longo das várias estações do ano, do que aos excedentes de uma actividade produtiva intensiva, como por vezes se refere ao colocar a tónica no papel da agricultura. As estruturas negativas utilizadas para armazenagem poderiam apresentar revestimentos de pedra ou argamassas de argila que permitissem a sua impermeabilização (Bruno, 2010, p. 94-95). Alguns dos elementos armazenados poderiam ser colocados em recipientes elaborados em materiais perecíveis (cestos) ou cerâmicos, alguns dos quais de grandes dimensões, como os que foram documentados no Porto Torrão (Rodrigues, 2012), que seriam colocados no interior da estrutura negativa, o que deixaria poucos vestígios nos depósitos de enchimento da estrutura, se não ocorresse um abandono repentino durante a sua utilização. Do mesmo modo que vários autores alertam para a dificuldade de transpor para outras cronologias o conceito contemporâneo de “lixo” (Martin e Russell, 2000; Márquez Romero, Jiménez Jáimez, 2010, Valera, 2010), também se considera importante repensar as necessidade e técnicas de armazenagem das comunidades neolíticas e calcolíticas.

Nas abordagens de pendor mais funcionalista, após a primeira utilização, que motivaria a construção da estrutura negativa, esta seria colmatada com materiais descartados, inutilizados, ou abandonados e outros detritos, tornando-se uma fossa (“lixeira”), o que permitia explicar a diversidade e fragmentação de grande parte dos artefactos identificados nos enchimentos destas estruturas. De facto, a dupla designação de silo/fossa atribuída a muitas estruturas negativas evidencia a dificuldade na diferenciação entre áreas de armazenagem e áreas de “lixeira”, descarte por parte dos arqueólogos (Kent, 1999). Alguns autores, como Susan Kent, consideram que esta distinção poderá identificar-se na diversidade de categorias de artefactos presentes em cada contexto, em que as áreas de armazenagem apresentam artefactos mais heterogéneos do que as de descarte (Kent, 1999).

A interpretação de estruturas negativas como fossas tem sido duramente criticada por vários autores, que consideram que o enchimento destas estruturas resulta de acções intencionais, e que muitos dos artefactos mesmo que fragmentados e diversificados podem resultar de selecções deliberadas (Márquez Romero, Jiménez Jáimez, 2010). Todavia, esta abordagem apresenta várias fragilidades porque é muito complexo demonstrar a intencionalidade do enchimento de grande parte destes contextos (Gomes, et al., 2015 a, p. 171), e porque as características físicas das estruturas negativas também permitem a sua colmatação por processos erosivos e pós-deposicionais (Schiffer, 1987; Angelucci, 2003, p. 61).

As estruturas de tipo fosso são estruturas negativas com morfologias e dimensões muito diversificadas, com múltiplas interpretações. Assim, alguns autores consideram que estas estruturas estariam associadas à utilização de recursos hídricos (Zafra, Hornos e Castro, 1999; Bruno, 2010, p.

89 113; Rodrigues, 2015), à definição de áreas para a manutenção de animais – currais (Feulner, 2012, p. 24) ou à delimitação de áreas residências e/ou espaços de agregação (para troca de produtos), tendo funções defensivas (Cámara Serrano e Molina, 2013). Para outros autores, as estruturas negativas tipo fosso teriam um papel exclusivamente simbólico (Márquez Romero, Jiménez Jáimez, 2010), delimitando áreas eminentemente rituais, dedicadas às observações astronómicas, ou áreas de necrópole, ou espaços interditos.

Algumas estruturas negativas apresentam depósitos diferenciados no seu interior, como enterramentos humanos (primários ou secundários) e deposições estruturadas ou altamente estruturadas de animais (inteiros ou segmentados), ou artefactos simbólicos ou quotidianos, completos ou fragmentados. Estas deposições com características específicas apresentam vários sinais de intencionalidade e padronização, relacionando-se com acções simbólicas e rituais, cujo significado é muito difícil de reconstituir por parte do arqueólogo, podendo estar associadas a contextos de vivência quotidiana, a contextos de abandono, áreas de necrópole e a áreas “especiais” (locais de agregação de grupos). As estruturas negativas em que se identificam deposições estruturadas podem ter sido construídas com esse objectivo em concreto, estando por isso todo o processo desde a sua abertura até à sua colmatação imbuído de gestos simbólicos. Contudo, nalguns casos é possível que as deposições intencionais ocorressem numa fase de reutilização da estrutura negativa, num contexto diferente da sua utilização inicial.

A grande diversidade de estruturas negativas identificadas nos sítios do Neolítico final e Calcolítico do Sul peninsular exige uma crescente pluralidade e abertura interpretativa por parte dos investigadores, que não devem afastar liminarmente nenhuma das possibilidades alternativas, mesmo as que se enquadram na longa tradição explicativa arqueológica. Com efeito, o estudo de estruturas negativas de cronologias mais recentes da Península Ibérica e de outras áreas geográficas evidência por um lado o carácter universal da deposição estruturada, intencional e simbólico – ritual de artefactos no interior de estruturas negativas (Márquez Romero, 2015, p. 227), e por outro a diversidade funcional que pode estar associada a estas construções (Garrow, et al., 2005).

O registo arqueológico destas estruturas depara-se com situações complexas, resultado de biografias longas e variadas, em que a conservação e identificação de contextos primários em geral e das deposições intencionais em particular são muito problemáticas e difíceis de tipificar. Considerando que nas comunidades calcolíticas o quotidiano e o simbólico/ritual estão interligados (Brück, 1999, p. 335; Meskell, et al., 2008), as utilizações funcionais das estruturas negativas podiam estar imbuídas de gestos simbólicos (a ritualização da escavação da estrutura, a sua adequação a determinada função/actividade), que arqueologicamente são completamente inacessíveis. Por outro lado, as deposições intencionais e estruturadas resultantes de gestos simbólicos também podiam desempenhar funções específicas no quotidiano das comunidades que as realizaram, evidenciando algumas características normalizadas e repetitivas, que são possíveis de registar arqueologicamente.

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