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7. A CULTURA MATERIAL – MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO

7.2. Os materiais cerâmicos

7.2.1. Definição de conceitos e dos conjuntos analisados

(…) el prehistoriador ha de crear un mundo de conceptos adecuados (…) Michael Kunst, 2006, p. 27

Toute quantification doit avoir une finalité precise et hiérarchisée (…). Quantifier pour quantifier n’a aucun sens (…)

Patrice Arcelin, MarieTuffreau - Libre, 1998, p. 3

a) Recipientes cerâmicos

Os recipientes constituem o conjunto mais numeroso dos artefactos cerâmicos, apresentando um elevado grau de fragmentação. Os recipientes cerâmicos apresentam características muito diversificadas, tendo como principal vocação conter produtos, mas podendo desempenhar uma vasta gama de funções (armazenagem, confecção, consumo, entre outros) e tendo múltiplos significados

113 socioculturais.

Os fragmentos de recipientes cerâmicos do sítio de São Pedro encontram-se acondicionados em centenas de contentores, organizados por sectores de escavação, tendo sido divididos em classificáveis (bordos, bases, carenas, elementos plásticos e de preensão isolados ou associados a fragmentos, bojos com características especificas como decorações, tratamentos de superfície, entre outros) e não classificáveis (fragmentos de bojos lisos), no decurso do tratamento de materiais pela equipa de escavação. Esta organização conduziu a que este trabalho se centrasse nos fragmentos classificáveis, não se analisando os bojos e por isso não se apresentando nenhuma quantificação destes fragmentos.

No que se refere aos fragmentos classificáveis de recipientes optou-se pelo estudo de todos os que eram provenientes dos sectores A, C, E e F (tabela 5, figura A2-1), uma vez que permitiam abordar áreas diversificadas (centrais e periféricas), o seu enquadramento estratigráfico abrangia toda a diacronia de ocupação do sítio e a sua interpretação estratigráfica é menos problemática do que as dos sectores B e D, tornando possível uma análise temporal das transformações dos recipientes cerâmicos. Considera-se que esta selecção permite analisar cerca de metade dos recipientes deste sítio arqueológico e por isso trabalhar um conjunto amplo e representativo.

Em relação aos fragmentos de recipientes decorados, aos elementos plásticos e de preensão e aos fragmentos que apresentavam especificidades e se encontravam individualizados considerou-se pertinente realizar o estudo global, incluindo por isso os materiais dos sectores B e D (figura A2-1), por forma a questionar muitos dos pré-conceitos relacionados com estes artefactos na área regional e na cronologia em apreço.

Tabela 5: Quantidade de fragmentos de recipientes cerâmicos analisados por sector de escavação.

Sector Número de Fragmentos de Recipientes cerâmicos

[0] 96 A 2781 B 285 C 3473 D 177 E 1400 F 1930 Total 10142

O conjunto de recipientes cerâmicos em estudo é composto por 10.115 fragmentos classificáveis e 27 recipientes cuja forma é totalmente reconstituível.

Este conjunto encontra-se, assim, muito fragmentado, tendo sido apenas possível realizar a colagem de 96 fragmentos, grande parte dos quais pertenciam à mesma unidade estratigráfica, não permitindo na maioria dos casos a remontagem total dos recipientes, o que contribui para acentuar a reduzida dimensão e a dispersão dos fragmentos no sítio arqueológico.

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O cálculo do número mínimo de recipientes em contextos pré-históricos é sempre um exercício complexo e problemático, não só devido às irregularidades inerentes às peças cerâmicas manuais, mas também devido à ausência de métodos normalizados que permitam definir um conjunto coerente de regras de quantificação. Assim, o cálculo do número mínimo de recipientes tende a ser realizado de forma diversa e algo anárquica pelos vários autores que estudam cronologias pré-históricas, não sendo explícitas as regras e objectivos das suas quantificações.

Uma das soluções para o cálculo do número mínimo de recipientes reside na contagem exclusiva de todos os fragmentos de bordo identificados no sítio arqueológico (Vilaça, 1995; Sousa, 2010). Todavia, considera-se que esta opção se apresenta pouco operativa no sítio em análise, uma vez que se está perante um amplo conjunto, em que se identificou um número significativo de bordos lisos de pequenas dimensões (2221), que não permitem a remontagem do recipiente nem a sua classificação tipológica. Para além disso, nos conjuntos de cerâmica manual, os fragmentos apresentam irregularidades morfológicas, na coloração das superfícies provocadas por processos de cozedura irregulares e uma certa diversidade nos elementos decorativos o que complexifica as associações de fragmentos a um mesmo recipiente.

Perante estas problemáticas, considerou-se que não fazia muito sentido calcular o número mínimo de recipientes em termos globais, e por essa razão procuraram-se outras abordagens, inspiradas no protocolo de quantificação de cerâmicas (Arcelin, Tuffreau, 1998). Os autores deste protocolo consideram que no estudo de um amplo sítio arqueológico é importante segmentar os recipientes cerâmicos de acordo com critérios precisos para a sua quantificação, nomeadamente para o cálculo do número mínimo de recipientes. Assim, decidiu-se realizar estas quantificações organizando os fragmentos classificáveis, principalmente os bordos (elemento com maior aptidão para a determinação morfotipológica) por sectores e por formas (tipos). Estes critérios levam à exclusão dos fragmentos de bordo provenientes de superfície e dos que apresentam dimensões reduzidas e não permitem a sua caracterização morfológica. Os resultados destas quantificações serão apresentados no capítulo do estudo dos materiais cerâmicos. Para além desta abordagem geral, realizaram-se algumas contagens mais restritas, referentes a unidades estratigráficas específicas, ou aos depósitos no interior de estruturas positivas e negativas.

b) Colheres e Coadores

As colheres e os coadores são constituídos por um elemento côncavo, designado por concha ou pá, que se encontra perfurado no caso dos segundos, e um cabo ou pega, apresentando diferentes características morfológicas e métricas. Na Pré-história, estes artefactos podiam ser elaborados em diferentes matérias-primas como osso, madeira e cerâmica. Associa-se as colheres e os coadores na mesma categoria de análise, porque apresentam características morfológicas semelhantes, podendo ambos relacionar-se com funções de manipulação de conteúdos (elementos auxiliares na preparação,

115 confecção e eventualmente consumo).

O conjunto das colheres em análise é constituído por 78 peças em cerâmica, provenientes de todos os sectores de escavação (tabela 6), mas que não correspondem à totalidade destes artefactos, uma vez que se identificou um grande número de exemplares desta categoria no decorrer do estudo dos recipientes cerâmicos. Assim, é provável que o estudo integral da cerâmica classificável dos sectores B e D aumente o número de peças desta categoria.

Tabela 6: Quantidade de fragmentos de colheres em

cerâmicas analisadas por sector de escavação.

Sector Colheres [0] 4 A 15 B 22 C 14 D 14 E 2 F 7 Total 78

As colheres apresentam diversos estados de conservação, sendo os fragmentados claramente maioritários (74), registando-se somente quatro peças cuja forma é integralmente reconstituível. O elevado estado de fragmentação condiciona a análise morfológica do conjunto, constituindo um óbice na própria identificação das peças, uma vez que os pequenos fragmentos da pá facilmente se confundem com bordos de recipientes de pequenas dimensões. Esta dificuldade de identificação e reconhecimento dos fragmentos de colheres pode constituir numa das explicações para a sua fraca expressão em muitos dos contextos calcolíticos do Sul peninsular.

c) Queijeiras ou Cinchos

Os artefactos designados por queijeiras são peças em cerâmica sem fundo, com as paredes multiperfuradas, apresentando morfologias cilíndricas, cónicas ou campanulares. A designação de queijeira é um termo com uma longa tradição na comunidade arqueológica ibérica, resultando da associação destes artefactos à produção de queijo. Para alguns autores, como J. L. Cardoso, o termo queijeira é desajustado da função proposta, sendo mais rigorosa a designação de “cincho”, que se refere ao molde onde se prensa o queijo (Cardoso, 2006, p. 38). A dificuldade em demonstrar inequivocamente a relação exclusiva entre estes recipientes e a elaboração de queijo e a possibilidade de poderem desempenhar outras funcionalidades conduziu a que alguns investigadores defendessem a utilização de designações mais neutras e abrangentes como “recipientes perfurados sem fundo” (Tews,

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2016). Apesar da dificuldade na atribuição de funcionalidade a este grupo de artefactos, utiliza-se a designação queijeira ou cincho.

O conjunto de queijeiras em estudo é constituído por 22 fragmentos (tabela 7), provenientes dos vários sectores de escavação do sítio de São Pedro, no entanto não se consegue garantir se este número corresponde à totalidade de fragmentos destas peças, uma vez que é possível que sejam identificados mais exemplares com o estudo integral dos materiais classificáveis dos sectores B e D.

Tabela 7: Quantidade de fragmentos de queijeiras ou cinchos

analisados por sector de escavação.

Sector Queijeiras ou cinchos

[0] 2 B 10 C 4 D 4 E 1 F 1 Total 22

d) Componentes ou elementos de tear

Componente ou elemento de tear define-se como um artefacto imprescindível num engenho para tecer, podendo desempenhar diferentes funções consoante a técnica utilizada. Estas designações distinguem-se do tradicional termo peso de tear pelo seu carácter funcional mais abrangente.

Na Península Ibérica, durante o 3.º milénio a.n.e., uma parte dos componentes de tear seriam elaborados maioritariamente em cerâmica, apresentando duas formas principais – placas e crescentes e múltiplas variantes.

A placa é uma peça em cerâmica com quatro lados e morfologia rectangular, quadrangular, trapezoidal e ovalada, com múltiplas perfurações; o crescente, igualmente em cerâmica, tem uma forma curva com secção de morfologia diversificada, e habitualmente duas perfurações.

O conjunto de componentes de tear é composto por 3.706 peças completas e fragmentadas, que correspondem à totalidade dos artefactos desta categoria identificados no sítio de São Pedro (tabela 8). Uma parte deste conjunto foi o tema de um trabalho individual (Costeira, 2010), o que permitiu uma primeira abordagem mais detalhada.

Os componentes de tear analisados apresentam diversos estados de conservação, sendo os fragmentados maioritários (97,5%), como se pode observar no gráfico da Figura 11.1 (p. 285).

Apesar de se terem realizado remontagens não é possível garantir que todos os fragmentos sem colagem constituam peças isoladas. Neste sentido, com o objectivo de obter uma maior exactidão no cálculo do número mínimo de componentes de tear analisados, utilizaram-se dois métodos de

117 aproximação, como se havia realizado anteriormente (Costeira, 2010, p. 45):

i) adicionar as peças inteiras (51) às integralmente reconstituíveis (38) e aos fragmentos com perfuração (2101), obtendo-se um total de 2190 componentes de tear;

ii) dividir os fragmentos com perfuração por dois (2101:2 = 1051) e adicionar o resultado às peças inteiras (51) e às integralmente reconstituíveis (38), obtendo-se um total de 1140 componentes de tear.

O método ii) baseia-se na ideia de que uma peça inteira tem as duas extremidades perfuradas. Conclui-se assim que o número mínimo de componentes de tear se situa entre os 1140 e os 2190.

Tabela 8: Quantidade de fragmentos de componentes de tear analisados por

sector de escavação.

Sector Fragmentos de Componentes de Tear

[0] 336 A 676 B 1187 C 215 D 982 E 66 F 244 Total 3706

O conjunto total é também composto por 1516 fragmentos mesiais, dos quais apenas 10 foram remontados. Estas peças não são utilizadas nos métodos de contagem referidos anteriormente porque, não tendo perfurações, não apresentam características visíveis que permitam estruturá-las num componente de tear.

A maioria das remontagens realizou-se antes da inventariação, sendo atribuído apenas um número de inventário às que pertenciam à mesma unidade estratigráfica, mas quando ocorreram após a marcação os fragmentos mantiveram os números de identificação já atribuídos.

e) Cossoiros ou fusaiolas

O cossoiro é uma peça em cerâmica, pedra ou osso, de morfologia diversificada, mas de secção tendencialmente circular, com uma perfuração central, que é utilizada como peso para potenciar o movimento giratório no processo de fiação. Assim, o cossoiro seria colocado numa das extremidades do fuso, provavelmente elaborado em madeira, para que com a sua secção horizontal circular, o equilibrasse e lhe imprimisse velocidade, permitindo a obtenção de um fio uniforme, resistente e fino (Castro Curel, 1980, p. 127; Alfaro Giner, 1984, p. 74; Médard, 2003). A presença de cossoiros documenta-se ao longo de todo o Mediterrâneo e na Europa Central desde o Neolítico final (Alfaro

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Giner, 1984, p. 72; Médard, 2003; Tiedmann, Jakes, 2006), sendo identificados em vários contextos calcolíticos ibéricos, ainda que a sua expressão quantitativa seja reduzida. Estas peças apresentam morfologias discóides, esféricas, cilíndricas e bitroncocónicas, tendo dimensões diversificadas, algumas delas relativamente robustas.

Tabela 9: Quantidade de fragmentos de cossoiros

analisados por sector de escavação.

Sector Cossoiros [0] 3 A 4 B 6 D 10 F 2 Total 25

Neste trabalho utiliza-se o termo cossoiro ou fusaiola para designar 25 peças fragmentadas (tabela 9), com morfologias diversificadas e perfuração central, porque considero que os seus atributos se podem ajustar à sua utilização no processo de fiação, e porque se distinguem claramente das formas de componentes de tear identificadas. Deste modo, considerei coerente a associação destas peças numa categoria autónoma dos componentes de tear, ainda que as actividades em que se integram estejam relacionadas.

f) Artefactos cerâmicos diversificados

No conjunto de artefactos cerâmicos diversificados, mas com reduzida expressão quantitativa, incluíram-se seis fragmentos de peças cilíndricas designadas por suportes, três bolas de argila irregulares e oito peças discóides, que parecem resultar do reaproveitamento de outros fragmentos cerâmicos. As peças discóides são frequentemente interpretadas como tampas na bibliografia arqueológica (Vilaça. 1995, p. 44). Contudo, a reduzida dimensão que as peças deste conjunto apresentam tornam difícil de sustentar a sua função como coberturas de recipientes cerâmicos.