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O final do século XX e o início do século XXI – ou a Arqueologia na actualidade

2. A HISTÓRIA DA INVESTIGAÇÃO DO CALCOLÍTICO NO ALENTEJO MÉDIO

2.4. O final do século XX e o início do século XXI – ou a Arqueologia na actualidade

Archaeology no longer has to be ‘new’ and unidirectional, presenting a unified front. It has the maturity to allow diversity, controversy and uncertainty. Ian Hodder, 1986 Para a superação dos limites apontados não há nenhuma fórmula, mas uma nova postura mental do investigador. Susana Oliveira Jorge, 1994

Nos anos 90, o conhecimento sobre o Neolítico e Calcolítico no Alentejo continuava em acelerada transformação, com a identificação de novos monumentos de cariz funerário (tholoi), de outras manifestações megalíticas como os menires e os recintos megalíticos (Gonçalves, 2000) e de vários povoados de características diversificadas. Estas novidades resultavam principalmente da

19 intensificação dos programas de prospecção, associados a projectos de investigação, construção de Cartas Arqueológicas de âmbito concelhio e/ou regional (Calado, 1986; 1993; 1995; Calado e Mataloto, 2001) e realização de estudos de impacte ambiental prévios à construção de grandes infra- estruturas, como a auto-estrada A2 e a Barragem de Alqueva (coordenado pela EDIA, SA). Muitos destes projectos tinham-se iniciado na década anterior, consolidando-se no final dos anos 90, com o desenvolvimento de um novo quadro de protecção e salvaguarda do património arqueológico, que a preservação das gravuras de Foz Côa tinha despoletado em Portugal.

De facto, nesta fase ocorrem profundas transformações institucionais na Arqueologia Portuguesa, com a criação do Instituto Português de Arqueologia (IPA) em 1998, que permitiu uma séria regulamentação dos trabalhos arqueológicos e o desenvolvimento de uma arqueologia de salvamento de ampla escala, que tinha de garantir a preservação pelo menos “pelo registo” de todos os sítios arqueológicos que fossem ameaçados. Neste contexto de reformulação das instituições centrais, os organismos municipais também se transformam no sentido da integração da arqueologia nas suas estruturas com a criação dos gabinetes autárquicos e incentivos ao conhecimento arqueológico dos seus territórios, como elemento de construção de identidades locais (Sande Lemos, 2007). O desenvolvimento da arqueologia de salvaguarda permite o despertar da arqueologia empresarial. Assim, as instituições intervenientes na actividade arqueológica diversificam-se e complexificam-se, nem sempre conseguindo estabelecer diálogos e parcerias, mas competindo nalgumas das suas esferas de acção, o que no caso das Universidades e das Empresas vai gerar um clima de confronto crescente, criando uma barreira, por vezes intransponível entre uma arqueologia de investigação, mais centrada nas universidades, e uma arqueologia mais técnica, de feição empresarial (Fabião, 2006; Valera, 2007 a), que têm suscitado intensos debates.

Nesta década, despontaram novas vozes contestatárias, desiludidas com as limitações e imposições positivistas da arqueologia processual e o autoritarismo na forma como a arqueologia pensava e construía o passado. Assistiu-se “(…) à emergência (…) de uma outra forma de maturidade disciplinar, que dispensa certezas e impossíveis verdades absolutas (…)” (Diniz, 1996, p. 11). A ciência aspirava à democratização, contrapondo a um discurso único e válido, múltiplas, relativas e imaginativas interpretações do passado. Estas transformações representavam a chegada das correntes pós-modernas, principalmente através da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Jorge, 1994; Jorge, 2014) à arqueologia portuguesa.

No final dos anos 90, as “antas continuam a ser muitas” (Gonçalves, 2000, p. 7) no Alentejo médio, mas já não são exclusivas, apesar de os dados publicados ainda reflectirem “(…) o atraso generalizado da cartografia arqueológica,(…) e a escassez de escavações em sítios de habitat.” (Calado, 2001, p. 31).

De facto, os mapas de distribuição de sítios arqueológicos de algumas áreas deste território, como a Serra d’Ossa (Calado, 2001), ou a Bacia do Guadiana, em território português e espanhol (Valera, 2013 a; Soares, 2013) começam a ficar “povoados”, não só no 3.º milénio a.n.e., mas também

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em momentos anteriores, obtendo-se novos dados para o estudo das transformações calcolíticas neste vasto espaço.

Uma das intervenções mais exemplificativas das transformações da arqueologia portuguesa no final desta década foi a realizada no sítio arqueológico dos Perdigões (Lago, et al., 1998; Valera, et al., 2008). Este sítio arqueológico, localizado na planície de Reguengos de Monsaraz foi identificado em prospecções nos anos 80, tendo sido alvo dos primeiros trabalhos arqueológicos no início da década seguinte (Gomes, 1994), posteriormente foi intervencionado num contexto de salvaguarda, pela empresa Era-arqueologia, devido aos efeitos negativos de intensos trabalhos agrícolas para a plantação de vinha (Lago, et al., 1998). Esta intervenção arqueológica, apesar das destruições, permitiu identificar um conjunto significativo de estruturas negativas, nomeadamente fossos, particularmente evidentes na fotografia aérea realizada (A7-25), de espaços sepulcrais e a recolha de um abundante e diversificado espólio artefactual, o que demonstrou o potencial informativo deste sítio (Lago, et al., 1998). Assim, de uma intervenção de emergência, os Perdigões tornaram-se no despontar do século XXI, num projecto de investigação de um sítio de fossos, desenvolvido em contexto empresarial e dinamizado principalmente por António Valera, afirmando-se no estudo da Pré-história do Sul peninsular e conseguindo uma grande projecção internacional.

No decorrer da investigação deste sítio, verifica-se uma substancial transformação teórico-metodológica que terá uma grande influência no estudo dos contextos integráveis no final do 4.º e 3.º milénio a.n.e. em todo o Alentejo. Com efeito, se na primeira publicação, os Perdigões surgem como um povoado, apresentando-se contextos e artefactos domésticos, a par dos contextos funerários (Lago, et al., 1998), com o avançar da investigação vai se afirmando um novo paradigma enquadrado nas correntes pós-modernas de inspiração anglo-saxónica, desenvolvidas em Portugal inicialmente por Susana e Victor Oliveira Jorge nos sítios calcolíticos de Freixo de Numão e Castanheira do Vento, Foz Côa (Jorge, 1994; Jorge, 2003; Jorge, et al., 2003; Jorge, et al 2005; Jorge, et al., 2007). Assim, o sítio dos Perdigões transforma-se num recinto com um expressivo significado ritual e simbólico (Valera, 2008; 2010 a; 2012 a; 2012 b 2013 b, 2015 b; Valera, et al., 2006; Valera, et al., no prelo; Evangelista, 2003). Esta mudança interpretativa e terminológica marcou todo o processo de escavação e publicação posterior, uma vez que as estruturas negativas, principalmente os fossos são claramente valorizados, em detrimento da identificação de estruturas positivas, por um lado porque se considera que a conservação destas realidades foi muito afectada pelos trabalhos agrícolas, e por outro lado porque se põe em causa a sua existência efectiva nestes contextos pré-históricos (Valera, 2013 b), Márquez Romero, Jiménez Jáimez, 2006; 2010). No estudo dos materiais tem-se atribuído maior destaque aos elementos conectados com manifestações simbólicas e rituais, alguns dos quais com claro carácter exótico e integrados em contextos funerários (Valera, 2010; Valera, 2015 b; Valera e Godinho, 2009; Valera, et al., 2014 a; Valera, et al., 2014b; Valera e Evangelista, 2014; Valera, et al., 2015), o que permite evidenciar o carácter excepcional deste sítio arqueológico. Enquanto o estudo e publicação dos artefactos relacionados com contextos e actividades quotidianas tem sido algo secundarizados

21 (Valera, 2008), remetendo-se para os dados publicados no primeiro artigo (Lago, et al., 1998). É igualmente importante referir-se a interpretação simbólica da fragmentação e deposição de vários destes artefactos, considerados como metáforas da ordem social e cosmogónica do passado (Brück, 1999), numa certa minimização do seu estudo funcional.

Estas modificações epistemológicas, no sentido de uma aproximação “hiper-interpretativa” (Garrow, 2012, p. 102), no estudo dos Perdigões alargaram-se a outros contextos de fossos identificados na planície alentejana no âmbito do projecto Alqueva, não só porque foram intervencionados pelas mesmas equipas, mas também porque condicionaram as abordagens das intervenções de salvaguarda, ao permitir a decapagem total de amplas áreas de afectação até ao topo das estruturas negativas, com o argumento de que não seria expectável a preservação e/ou existência de outro tipo de estruturas ou contextos.

A proliferação destes sítios de fossos e/ou “fossas” no Sul de Portugal e também em Espanha e a constatação da singularidade de muitos dos seus contextos, interpretados à luz de novos quadros teóricos, mais próximos de outros sítios europeus, conduziram à insatisfação com o tradicional conceito de povoado e à sua substituição por outros termos mais abrangentes e neutros, como o termo recinto (Márquez Romero e Jiménez Jáimez, 2008; Valera, et al., 2007, Valera, 2013). Todavia, a secundarização sistemática da identificação de contextos domésticos e funcionais em sítios de fossos, como antes se havia realizado para os “recintos murados” do Norte de Portugal (Jorge, 2003), acaba por comprometer o termo recinto com conotações eminentemente simbólicas (Márquez Romero, Mata – Vivar, 2016).

Na primeira década do século XXI, o Alentejo parece tornar-se um “mundo em negativo” (Valera, et al., 2013), um vasto espaço de grandes aglomerações rituais e cerimoniais, onde mais uma vez não pareciam ter vivido indivíduos, uma vez que se retira, perigosamente, a interpretação de povoado à maioria dos sítios arqueológicos. No entanto, os contextos e materiais domésticos continuam a ser identificados, não só nos sítios de altura fortificados, mas também em sítios aparentemente abertos e nos sítios de fossos (Hurtado, 2008; Mataloto e Costeira, 2008; Valera, 2013 a, Rodrigues, 2015).

De facto, a proposta interpretativa dos sítios de fossos, enquanto recintos, com destacado papel simbólico, não é exclusiva, tendo-se desenvolvido outras abordagens de cariz processualista/funcionalista, algumas com aproximações às correntes marxistas inspiradas na Arqueologia Social (Díaz-del-Río, 2008; Soares, 2013), que estudam os povoados no âmbito territorial, considerando a sua integração numa rede de povoamento hierarquizada e desigual, em que a dimensão dos sítios é o principal elemento de análise. Assim, as grandes aglomerações de planície (os sítios de fossos) são interpretadas como o centro económico, político e mesmo ideológico (Hurtado, 1984; 1995; Nocete, 1994; 2004; Zafra, et al., 1999; Zafra, et al., 2008), representando nos casos mais complexos o embrião de organizações de cariz estatal (Nocete, 2001, 2004; Morán, 2015). Neste modelo, os povoados fortificados de altura implantavam-se nas margens dos territórios, enquanto

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marcadores e protectores de fronteiras. Estas propostas afiguram-se demasiado teóricas, uma vez que a informação disponível para os sítios de uma mesma área geográfica é muito desigual, estando profundamente dependente dos projectos de minimização.

Com efeito, os trabalhos arqueológicos relacionados com o empreendimento Alqueva (fase de construção da barragem e plano de rega) permitiram o alargamento das abordagens e das problemáticas relacionadas com os contextos calcolíticos no Alentejo. Todavia, a localização e dimensão das áreas intervencionadas foi profundamente condicionada pelos objectivos do projecto, tendo-se concentrado preferencialmente na planície na bacia do médio Guadiana e de alguns dos seus principais afluentes, o que conduziu a uma explosão de sítios de fossos e a uma certa cristalização do número de sítios de altura, muitos deles identificados em anteriores programas de prospecção, mas sem que se tivessem desenvolvido trabalhos de escavação que o comprovassem. Contudo, é importante reconhecer que as prospecções tradicionais permitiram a identificação de um significativo conjunto de sítios enquadráveis no Neolítico final/Calcolítico, que apesar das fragilidades que a informação exclusivamente de superfície acarreta, não devem ser ignorados numa abordagem territorial, nem na construção de mapas de síntese, em que se referencia a maioria dos sítios de planície identificados recentemente por fotografia aérea, com recurso às tecnologias de informação geográfica (Valera e Pereiro, 2013) e sofisticadas metodologias de prospecção geofísica, desvalorizando -se muitos dos dados obtidos anteriormente (Valera, 2015). Esta selecção desigual da informação contribui para acentuar a diferença numérica entre povoados de fossos e povoados de altura, eventualmente fortificadas no Alentejo médio, contribuindo para a sobrevalorização dos primeiros.

A realização de intervenções arqueológicas em sítios de altura fortificados tem sido apenas efectuada nos casos em que os sítios foram afectados por projectos de construção como o que ocorreu nos povoado de São Gens (Mataloto, 2005), São Pedro (Mataloto, et al., 2007; Mataloto, 2010) na área da Serra d’Ossa ou no Porto das Carretas, na bacia média do Guadiana (Soares e Silva, 2010; Soares, 2013), ou quando surgem estruturas e materiais calcolíticos no decorrer de projectos de estudo de outras cronologias, como sucedeu no sítio do Caladinho (Mataloto, et al., 2014) e no sítio de São Miguel da Mota/Endovélico (Rocha no prelo). Todavia, a dimensão das áreas escavadas é muito desigual, o que em muitos casos dificulta a reconstrução da planta da fortificação e a compreensão das diacronias de ocupação do povoado. Assim, considera-se que no Alentejo, os povoados em geral e os fortificados em particular continuam sub-representados face a outras realidades, faltando a realização de projectos de investigações centrados nestes contextos.

Torna-se assim evidente que ainda há muito a fazer nas próximas décadas, no que se refere ao estudo do 3.º milénio a.n.e. no Alentejo, em particular dos povoados. É fundamental trabalhar os dados produzidos pelas numerosas e amplas intervenções de salvaguarda, ampliar as prospecções, não só nas áreas de construção de grandes obras públicas, mas também nos novos terrenos agrícolas e aumentar as datações dos sítios fortificados e de fossos, por forma a um enquadramento mais objectivo das

23 sequências de ocupação. E principalmente não centrar o debate em explicações unidireccionais, uma vez que a complexidade e longa duração de muitos dos sítios arqueológicos identificados, com ocupações temporalmente desfasadas e eventuais momentos de abandono, podem apesentar contextos, funções e significados plurais e variáveis ao longo da diacronia que se pretende reconstruir. Os sítios, como os territórios, as comunidades e os indivíduos que as integram são dinâmicos e raramente têm histórias lineares, ou com formatação prévia. As expressões rituais e funcionais de um espaço não são mutuamente exclusivas (Brück, 1999, p. 322), podendo associar-se ou suceder-se ao longo do tempo.

As várias fases do projecto Alqueva permitiram a realização de trabalhos de minimização e de salvaguarda arqueológicos regulados, que apesar das sucessivas modificações institucionais, foram fundamentais para a profissionalização da arqueologia portuguesa e destaque do seu papel social, contribuindo de forma decisiva para a transformação do Alentejo enquanto território arqueológico, evidenciando a sua complexidade e densidade no passado (Valera, et al., 2013) e por isso permitindo relativizar a imagem de região deprimida e deserta construída no presente.

De território de estudo secundário, o Sul do Tejo tornou-se a principal área de investigação da arqueologia portuguesa pré-histórica no início do século XXI, na qual os novos sítios de fossos identificados permitiam reforçar a sua integração na “Pré-história Ocidental” europeia (Valera, 2012 a; Valera, 2013; Márquez Romero, Jiménez Jáimez, 2008; 2010, p. 239-279), mas conduziram a um certo afastamento do mundo mediterrâneo.

O dinamismo dos trabalhos de campo e dos debates teóricos que têm sido realizados no âmbito do “Alentejo Calcolítico”, não são extensíveis a todo o território português, ainda que se desenvolvam projectos de investigação inovadores em áreas do Centro Norte (Jorge, 2003; Sanches, 1997; Muralha, 2007; Vale, 2011 Valera, 2007, entre outros) e se tenham realizado igualmente trabalhos de salvaguarda, em que se identificaram alguns sítios com estruturas negativas (Valera e Rebuge, 1998; Neto, et al.; 2015).

A área que ficou mais arredada deste dinamismo foi sem dúvida a Estremadura, uma vez que os seus povoados fortificados, salvo raras excepções, como o projecto de investigação desenvolvido no Penedo do Lexim, (Sousa, 2010), a continuação dos trabalhos no Zambujal (Kunst, 2007; Kunst, et al., 2013; Becker, 2013) e o estudo e publicação das estruturas e materiais de Leceia (Cardoso, 2000 c; 2003 a; 2003 c; 2006 a; 2010 a, entre outros) têm ficado um pouco à margem dos arqueólogos mais jovens, que encontram no Alentejo um espaço de trabalho mais amplo e aberto à “pós-modernidade”. Contudo, esta situação poderá alterar-se a breve trecho, como o evidenciam as mais recentes descobertas na cidade de Lisboa (Neto, et al., 2015; Neto e Cardoso, 2017; Basílio e Pereiro, 2017).

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3. O SÍTIO DE SÃO PEDRO: ENQUADRAMENTO GEOGRÁFICO E PAISAGEM