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As estratégias adotadas para a concretização do trabalho proposto

CAPÍTULO III: A BUSCA DE UM CAMINHO: CONSTRUÇÃO DO QUADRO TEÓRICO METODOLÓGICO

3.2. Seleção de uma metodologia qualitativa e o método hermenêutico dialético

3.2.2. As estratégias adotadas para a concretização do trabalho proposto

A necessidade de se proceder à análise das condições históricas e dos entraves e desafios que definem o ‚agir professoral‛ das educadoras de inf}ncia de Portugal e do Brasil motivou-nos a optarmos pelo método hermenêutico dialético, valorizado por Minayo (1992) como um dos caminhos mais fecundos para se realizar uma investigação de natureza qualitativa. Não se trata simplesmente de se adotar a rica

perspectiva de compreensão dialética34, que consiste em acolher a ideia de que nada

existe de permanente ou eterno (inclusive as instituições e os regimes de produção

34 O termo dialética tem um longo percurso na Filosofia e nas Ciências Humanas, havendo adotado diversos sentidos ao longo do pensamento ocidental. Desde as ponderações de Heráclito (1991) em que a dialética alude ao jogo de contrários, à oposição e harmonia de opostos que caracteriza o devir da realidade, passando pela dialética socrática que alude ao diálogo matricial da filosofia, até as concepções de Hegel (1999) em que a dialética traduz o processo de efetivação do Espírito na Natureza, até chegarmos às concepções marxistas, nas quais a dialética evidencia o processo de contradições e lutas de classes que perfazem a história, assim também como na natureza há um jogo permanente de contradições. Empregaremos o termo dialética como o processo histórico que manifesta as diversas contradições, os confrontos de poderes, que vão tecendo a trama de relações em uma determinada sociedade. Lembremos a definição geral de dialética, apresentada por Abbagnano (1999): ‚Esse termo, que deriva de di{logo, não foi empregado, na história da filosofia, com significado unívoco, que possa ser determinado e esclarecido uma vez por todas; recebeu significados diferentes, com diversas inter-relações, não sendo redutíveis uns aos outros ou a um significado comum. [...] é possível distinguir quatro significados fundamentais: 1o D. Como método de divisão; 2o D. Como lógica do provável; 3o. D como lógica; 4o. D. Como síntese de opostos‛ (p. 269). Finalmente, Abbagnano (1999), alude à concepção materialista dialética, de Marx e Engels (1996), que considera que a luta de opostos opera tanto na natureza quanto na sociedade: ‚Segundo Engels, pode-se chegar às leis da Dialética por abstração, tanto da história da natureza quanto da história da sociedade humana‛ (p. 274).

social), isto é, que as contradições permeiam todos os domínios da realidade e explicam o seu dinamismo peculiar, bem como a categoria da totalidade. O decisivo

nessa definição metodológica é a união ou aliança complexa da hermenêutica35 e da

dialética; esta conduz o intérprete a procurar entender:

[<] o texto, a fala, o depoimento, como resultado de um processo social (trabalho e dominação) e processo de conhecimento (expresso em linguagem), ambos frutos de múltiplas determinações mas com significado específico. Esse texto é a representação social de uma realidade que se mostra e se esconde na comunicação, onde o autor e o intérprete são parte de um mesmo contexto ético-político e onde o acordo subsiste ao mesmo tempo que as tensões e perturbações sociais (Minayo, 1992, pp. 227-228).

Ao nosso ver, o método hermenêutico dialético nos assegurou a possibilidade de situarmos as falas das educadoras no seu contexto a fim de entendê-las a partir do seu interior e no campo da especificidade histórica em que foram produzidas.

Focalizar um objeto de estudo, delimitar um método, escolher as estratégias discursivas para elucidar esse objeto e transitar com esse método é um desafio para o investigador, não raro uma provação para o cientista. Porém, no caso específico dessa investigação, importa sublinhar o caráter vivencial do trabalho do pesquisador; há um

35 A hermenêutica é um método de interpretação de textos, tradicionalmente vinculado à análise dos sentidos ocultos de textos religiosos, como a Bíblia, e filosóficos. Na filosofia contemporânea, este método tem sido revigorado pelas leituras, por exemplo, de Heidegger (1993), Gadamer (2004) e Paul Ricoeur, dentre outros filósofos, que tentam destrinchar os sentidos implícitos nos textos filosóficos, através de uma análise minuciosa dos significados das palavras de cada texto e da relação desses significados com o contexto em que foram enunciadas. Ver Abbagnanao, 1999, p. 497.

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compromisso existencial prévio que instigou quem realiza a pesquisa. Geralmente, no trabalho acadêmico, as questões são condensadas num leque de problemas dado e aborda-se o objeto por regras metodológicas previamente estabelecidas. Trata-se de uma espécie de trabalho ‚cirúrgico‛, no qual são recortadas parcelas da realidade e adotados critérios a priori para refletir com precisão sobre o objeto de estudo proposto. Na vida cotidiana, as coisas se desenrolam de uma forma bastante diferente. Todos estamos na vida, todos somos lançados diante de problemas que urgem por respostas; o instrumental, a delimitação, a estratégia, vem depois. Sacudidos pelo viver, instigados pelas peripécias difíceis da realidade social, estamos já no problema; as circunstâncias suscitam a reflexão; a reflexão é atiçada pelas circunstâncias. A vida provoca – e provoca o Homem. A prática docente – agora aludindo à própria autora desta tese, ela mesma educadora de infância -, ao longo de vinte e três anos, trabalhando na escola com as crianças pequenas e durante três anos como professora universitária no curso de formação de educadores de infância, colocou-nos frente a frente com a experiência da formação de crianças e de professores. Num tempo em que as exigências da profissão docente tem-se alargado, tendo sobre si holofotes e cobranças, a formação desses profissionais torna-se alvo de preocupações e do próprio reconhecimento de sua complexidade, enquanto fator da maior importância para se assegurar a qualidade da educação. O compromisso mais específico com a educação das crianças pequenas (0 a 6 anos) e com a formação dos profissionais que com elas trabalham, suscitou questões e evidenciou inquietações que desejamos aprofundar e analisar nesta tese, tomando por base os saberes e as dimensões que constroem o percurso dos profissionais e, sobretudo, o dos educadores da infância.

Como já foi assinalado, o ato educativo é complexo e, como tal, dificulta a elaboração de um corpo teórico que permita tecer considerações totalmente

‚objetivas‛. No caso da educação de infância, em virtude de ter-se constituído mais recentemente como um campo de reflexão pedagógica, as dificuldades de construirmos um corpus teórico mais definido sobre a área, torna-se ainda mais difícil.

Tais circunstâncias provocaram diversos desafios e encruzilhadas, questões e dúvidas, que sempre se tenta equacionar na educação. Assim, poderíamos também argumentar, apropriando-nos das palavras de Linhares (2000):

Refletindo sobre a minha caminhada, percebo como é difícil sequenciá-la; como fui; como fui me fazendo pela força de imposições que as circunstâncias e estruturas condicionaram em meu entorno, mas, também, como fui escolhendo guiada por um desejo fino, sutil, mas também forte, neste caminho da escola, do magistério, da aprendizagem do qual nunca me afastei (p.44). Retomando as palavras de Linhares (2000), podemos destacar que o campo teórico deste trabalho não surgiu de um recorte neutro e frio, mas de um envolvimento bastante significativo, que foi sendo construído ao longo da trajetória

profissional do investigador, como educadora de infância e professora universitária.36

O pensamento não permaneceu alheio à paixão. É o que nos lembra Linhares (2000), questionando, nesse caso, especificamente a filosofia idealista, mas oferecendo uma reflexão que se aplica aos mais diversos campos de conhecimento: ‚A filosofia idealista, com pensadores como Max Scheler, afirma que antes que o conhecedor vem o

36 Como foi dito, esta pesquisa surge a partir de inquietações viscerais nascidas da prática da autora da tese como docente de infância, ao longo de 20 anos, no Rio de Janeiro. Parte dessa experiência é narrada na nossa dissertação de mestrado em Memória Social: Roca (2003).

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amante, significando o quanto o amor por determinados objetos de estudo guia e direciona a produção do conhecimento‛ (p. 44).

Assim, a estratégia metodológica, que escolhemos nesta tese, por força da conjunção de urgências reflexivas e compromisso existencial, emoção e desafio racional, visou eminentemente a uma abordagem qualitativa. Sobretudo pela importância que se reveste na construção do conhecimento em educação, tanto no âmbito das concepções e das políticas como no das práticas educativas e institucionais de formação de professores. Como em qualquer processo social, o objeto Educação/Formação oferece um nível possível de ser quantificado, porém o ultrapassa quando se trata de compreender dimensões significativas da experiência dos educadores, que excedem o quantificável, aquilo que pode ser conceitualizado ‚friamente‛, pois dependem de significados, percepções e valores desses sujeitos que educam.

Uma das estratégias que escolhemos, aos efeitos de aprofundar a metodologia proposta, consistiu num enfoque valorativo das falas das educadoras de infância já mencionadas anteriormente: decisão que nos levou a assimilar como parte significativa da matriz teórico conceitual da investigação a concepção social da linguagem de Bakhtin (2006; 1992) e, como se impõe, uma das categorias centrais ao

seu pensamento que desta decorre - o dialogismo.37

Na visão desse pensador, cada homem se constitui e se identifica enquanto ser social por estar imerso num ambiente de trocas de natureza diversificada, envolvendo sujeitos investidos em diferentes posições sociais, movidos por

37 *<+ dialogismo se refere |s possibilidades abertas e infinitas geradas por todas as pr{ticas discursivas de uma cultura, toda a matriz de enunciados comunicativos onde se situa um dado enunciado. *<+ ‚O dialogismo bakhtiniano *<+ se aplica tanto ao discurso cotidiano como | tradição liter{ria e artística *<+ seja ele verbal ou não verbal, erudito ou popular‛ (Stam, 1992, p. 74).

propósitos diversos. É através da linguagem, pensada como produção sócio histórica, que cada sujeito se instaura no mundo, e é capaz de instituir o outro e de estabelecer relações significativas ou interações: ‚*...+ as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios‛ (Bakhtin, 2006, p. 42).

A perspectiva que sustenta que através da linguagem o sujeito institui o outro, leva a uma compreensão ampliada do diálogo e ao próprio dialogismo entendido pelo autor como o princípio constitutivo da linguagem (a palavra se dirige sempre a um interlocutor) e como a condição do sentido do discurso.

No modo de ver bakhtiniano, conforme comenta Marques (2001), o discurso não é individual por duas razões: não apenas ele se constrói entre, pelo menos, dois interlocutores, que, por sua vez, são seres sociais, como também ‚[<] ele se constrói como diálogo entre discursos, isto é, mantém relações com outros discursos. O discurso, para Bakhtin, é uma ‘construção híbrida’, (in) acabado por vozes em concorrência e sentidos em conflito‛ (p. 4).

Ao optarmos por uma abordagem sócio histórica, assumimos um caminho cujas perspectivas metodológicas superam as dicotomias externo/interno, social/individual, entendendo-se que é a partir da experiência com o mundo objetivo e do contato com as formas culturalmente determinadas de organização do real ‚e com os signos fornecidos pela cultura‛ que os indivíduos vão construir seu sistema de signos, o qual consistir{ numa espécie de ‚código‛ para a decifração do mundo (Vygotsky, 1991).

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