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Crise educacional e possibilidades de uma nova professoralidade

A crise da profissão docente arrasta-se há longos anos e não se vislumbram perspectivas de superação no curto prazo [...] um sentimento generalizado de desconfiança em relação às competências e à qualidade do trabalho dos professores, alimentado por círculos intelectuais e políticos que dispõem de

um importante poder simbólico nas actuais culturas de informação (Nóvoa, 1995, p. 22)

No subcapítulo, anterior, apresentamos a denominada crise da instituição escolar diante das mudanças que estamos vivendo na sociedade atual, peculiarmente a partir da globalização, das inovações tecnológicas que revolucionam o conhecimento e das mudanças nos valores. A escola, como mostramos, enquanto instituição estabelecida, é colocada em xeque pelos novos conhecimentos, pelas novas relações sociais e pelas profundas mudanças de valores e parâmetros que afetam a cultura e a escola contemporâneas. Assim, a escola necessita reposicionar-se perante essas importantes mudanças sociais e ocupar um outro lugar diante do novo panorama. Será indispensável uma instituição adequada aos novos tempos, que permita acolher diversos saberes, diversas culturas, que saiba lidar com a tecnologia, que tenha uma postura crítica diante dessas novas possibilidades, que instigue os alunos a uma reflexão crítica sobre os novos conhecimentos e sobre os novos valores da sociedade.

Diante dessas exigências da contemporaneidade que demandam uma transformação da instituição escolar, correlativamente surgem outros desafios para o profissional da educação. Se à escola cabe adotar novas funções e estratégias, o professor também necessita adotar novas atitudes face aos novos rumos atuais das instituições educativas. Ademais, o seu lugar tradicional de transmissor e detentor de conhecimentos também tem sofrido profundos questionamentos. Libâneo (2002) chega a frisar que, após o auge das tecnologias de informação, da possibilidade do uso de instrumentos e meios de comunicação e informação, no âmbito escolar, o papel do professor poderia considerar-se, aparentemente, obsoleto, dispensável.

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Contudo, ele sustenta que essa parafernália tecnológica, longe de cercear a atividade e função dos docentes, lhes permitiria ocupar um papel mais criativo:

Têm sido freqüentes as afirmações de que a profissão de professor está fora de moda, de que ela perdeu seu lugar numa sociedade repleta de meios de comunicação e informação. Muitos pais já admitem que a melhor escola é a que ensina por meio de computadores. [...] Desse modo, não haveria mais lugar para a escola e para os professores. [...] Ao contrário, pois, do que alguns pensam, existe lugar para a escola na sociedade tecnológica e da informação, porque ela tem um papel que nenhuma outra instância cumpre. É verdade que essa escola precisa ser repensada (Libâneo, 2002, pp. 25-26).

Assim, o papel do docente precisa ser repensado e reavaliado. Chegamos a uma instância tão crítica que a própria profissionalidade do professor deve ser colocada em questão. Lembremos as ponderações de Vilella (2002) quando se pergunta: o que é ser professor? Em que consiste a professoralidade? Como alguém se torna professor? Os professores, enquanto profissionais, têm uma identidade, eles possuem traços distintivos característicos de uma profissão?

Diante dessas perguntas que examinam o próprio status profissional dos

docentes, podemos experimentar perplexidade. Afinal, por que motivos será necessário discutir a professoralidade, a profissão docente? A docência é uma atividade milenar. O homem transmitiu os seus conhecimentos já desde os primórdios da civilização. Mas a atividade docente, entendida como profissão remunerada, pode ser detectada já nas atividades dos sofistas, no início do século V. a. C.:

[...] os historiadores da Grécia e da filosofia consideram os sofistas fundadores da pedagogia democrática, mestres da arte da educação do cidadão. Arte e não ciência, pois os sofistas se apresentavam como técnicos e professores de técnicas e não como filósofos. A sofística, escreve Brehier, não designa uma doutrina e sim um modo de ensinar (Chauí, 2002, pp. 159-160).

Resulta curioso que a docência, já estabelecida nas tradições culturais do Ocidente desde a Grécia Antiga, esteja sempre em vias de justificar seu status, de demonstrar sua condição de profissão. Sem dúvida contribui para essa situação o fato de que, por motivos políticos, culturais e sociais, a função do professor tem sido desvalorizada, as condições de trabalho e a situação salarial dos docentes em geral têm piorado. Diante desse deterioro das suas condições laborais, é possível afirmar que o status social de professor ainda não tem o devido reconhecimento. Cabe então indagar em que sentido afirmamos que ele é um profissional? Ele é um profissional e não um amador, por desempenhar uma função específica, por ter sido capacitado com uma formação técnica adequada para exercer esse papel. É necessário um preparo

teórico e prático para realizar a atividade docente.13 Além do mais, esse profissional

obtém os recursos necessários para sua subsistência (ou deveria obtê-los) e declarou

13 Cardona (2006) analisa o conceito de profissão, destacando que não é linear, depende de diversas interpretações e diferenças estabelecidas historicamente entre autores e correntes teóricas comportando o sentido de uma elevada preparação: ‚A definição do conceito de profissão não é linear sendo alvo de diferentes interpretações consoante os autores e as correntes teóricas em que se enquadram. Qualitativamente profissão distingue-se de ofício, ocupação ou emprego, por exigir uma elevada preparação, competência e especialização daqueles que a praticam‛ (Cardona, 2006, p. 32).

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publicamente, ao formar-se, que exerceria de forma competente essa atividade.14 O

professor é um trabalhador que exerce sua profissão em creche, escola, colégio ou universidade, que desempenha sua função específica para cada faixa etária, já que

tem diploma ou título que certifica sua profissão.15

Lembremos que mesmo a docência tendo desempenhado um importante papel ao longo da história, são procedentes as perguntas de Vilella (2002) quando indaga o que é professoralidade. Na época atual, após o panorama que traçamos anteriormente, destacando as mudanças sociais, econômicas e culturais que atingem a escola e todas as atividades pedagógicas, é necessário repensar o que significa ser professor hoje. Vilella (2002) sustenta que a professoralidade não é uma identidade, não é algo fixo ou algo que se é, mas algo que advém, algo que se constrói nas práticas, nas trocas, nos encontros docentes. Para ele ser professor é sempre vir-a-ser-professor:

[...] a professoralidade não é uma identidade que um sujeito constrói ou assume ou incorpora mas, de outro modo, é uma diferença que o sujeito produz em si. Vir a ser professor é vir a ser algo que não se vinha sendo, é diferir de si mesmo. [...] a professoralidade não é, ao meu ver, uma identidade:

14 O dicionário Houaiss é um auxiliar importante para esclarecer o sentido da noção profissão, na língua portuguesa: ‚PROFISSÃO: 1.ação ou resultado de professar (‘reconhecer publicamente’, ‘jurar’) 2. declaração ou confissão pública de uma crença, uma religião, uma tendência política ou um modo de ser. 3. atividade para a qual um indivíduo se preparou e que exerce ou não [...] 4. trabalho que um pessoa faz para obter os recursos necessários à sua subsistência e à de seus descendentes [<+‛. (Houaiss, 2001, p. 2306).

15 Novamente o dicionário Houaiss é uma ferramenta que nos ajuda a pensar o sentido da noção de professor: ‚PROFESSOR: 1. aquele que professa uma crença, uma religião 2. aquele cuja profissão é dar aulas em escola, colégio ou universidade; docente, mestre [...] 2.1. p. e. aquele que dá aulas sobre algum assunto [...] 2.2 aquele que transmite algum ensinamento a outra pessoa [...] 3. aquele que tem diploma de algum curso que forma professores [...], que exerce a profissão de ensinar ou tem diploma ou título de professor [<+‛. (Houaiss, 2001, p. 2306).

ela é uma diferença produzida no sujeito. [...] A professoralidade é um estado de risco de desequilíbrio permanente. Se for um estado estável, estagnado, redundaria numa identidade e o fluxo seria prejudicado (Vilella, 2002, p. 32). Nessa ótica, o professor se torna um profissional que vive em um dinamismo contínuo, alimentado pelas trocas com alunos, colegas, funcionários, pais, pelos encontros na escola e nas atividades fora dela. O resgate desse dinamismo permite repensar a formação de professores, que face às vicissitudes características de sua função, não deve incutir nesses profissionais noções e atitudes fixas, mas prepará-los para a novidade, para a criação: ‚Repensar a formação de professores passa, a meu ver, necessariamente, por considerar a condição humana em sua processualidade, isto é, como sujeitos subjetivados no interior de práticas coletivas, institucionais e sociais *<+ ele se constitui e se constrói dentro das pr{ticas *...+‛ (Vilella, 2002, p. 38).

Um aspecto relevante da formação dos professores consiste em capacitar esses profissionais para lidar com aspectos práticos, com questões concretas da sua função. A dimensão prática da formação dos professores será analisada mais detalhadamente no Capítulo II, ao falarmos especificamente da formação dos educadores de infância. Essa formação pode conjugar o conhecimento teórico e a práxis correspondente. Contudo, não é possível separar teoria e prática no processo que leva alguém a tornar-se professor. E essa conjunção de teoria e ação já foi identificada por alguns teóricos como o próprio núcleo articulador da formação do professor: ‚A teoria e a prática educativa [...] são consideradas o núcleo articulador da formação do educador, na medida em que os dois pólos devem ser trabalhados simultaneamente, constituindo uma unidade indissolúvel‛ (Candau & Lelis, 2002, p. 67). Kramer (2002), por sua vez, concorda com esta perspectiva quando destaca que são fundamentais os

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saberes produzidos pelos professores na sua prática, no contato com alunos, no seu dia-a-dia. Contudo, isso não implica renunciar à reflexão teórica; ao contrário, a práxis será aprofundada pela análise crítica do contexto e da realidade social onde é produzida essa atividade:

[...] as práticas concretas feitas nas creches, pré-escolas e escolas, e aquilo que sobre elas falam seus profissionais são o ponto de partida para as mudanças que se pretende implementar. [...] É fundamental valorizar o saber produzido na prática, sem abrir mão de fazer análise crítica da situação específica e do contexto mais amplo, das políticas e dos movimentos sociais que tanto ensinam (Kramer, 2002, pp. 128-129).

Além do mais, a prática do professor se desenvolve no encontro com os outros. Ele não exerce sua profissão, nem reflete sobre ela da mesma forma com que um teórico que se depararia com um objeto de estudo, distante, abstrato. O docente tem seu laboratório, seu gabinete de experiências a partir dos encontros, das vivências, dos afetos que nascem no intercâmbio intersubjetivo. A sua formação não se perfaz de um exercício individualista, de formulações isoladas, mas nasce a partir da troca, no seio de experiências partilhadas. O docente, assim, se forma com os outros: [...] só é possível se formar com o outro, nos mais diferentes espaços e tempos em que circulam conhecimentos, valores e saberes. ‚[...] Em práticas sociais as mais diversas que permitam que a história de cada qual seja contada, ressignificada, mudada‛ (Kramer, 2002, pp. 127-128).

Alarcão (2005) também sublinha a importância da ação, da prática do docente, do valor do exercício cotidiano em sala de aula, envolvendo a interação com os outros. Essa interação será fundamental. O professor se constitui como tal na dimensão do entre, de contatos concretos na escola; ele é, portanto, constituído pelos outros. A profissionalidade docente se constrói justamente nessa dimensão intersubjetiva: ‚O professor não pode agir isoladamente na sua escola. É neste local *...+ que ele, com os outros *<+ constrói a profissionalidade docente‛ (Alarcão, 2005, p. 44).

Nóvoa (2000), ao falar da profissionalidade docente, ao refletir sobre a identidade do professor, levanta diversas questões e dificuldades que afetam estes profissionais. Na sua ótica, os professores têm vivido profundas crises nos últimos vinte anos. Sem dúvida, a globalização e as inovações técnicas como apontamos no início, com toda a ampla gama de transformações sociais que acarretam, têm ameaçado o status desses profissionais. Assim, a construção da identidade de professor tem sido uma empreitada contínua, uma longa luta, um permanente exercício no meio de conflitos. Não haveria, então, identidade, constituída pacificamente, fixada de uma vez e para sempre, mas no exercício da profissão docente, encontraríamos um longo processo identitário:

A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, mas um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica que

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caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor (Nóvoa, 2000, p. 16).

Em resumo, a professoralidade, o ‚ser‛ professor, longe de consistir em uma aquisição definitiva é uma atividade, um processo permanente, uma construção contínua, um devir professor, que exige lidar com a teoria e a prática, nos encontros com os outros. A formação de professor, portanto, tem que levar em conta essas dimensões.

Agora, após termos abordado algumas questões da condição do professor em geral, queremos focalizar a situação específica dos educadores de infância. Visamos apresentar alguns aspectos de sua formação e sua ação, considerando que, durante muito tempo, os docentes que lidavam com as crianças pequenas (0 a 6 anos) eram os mais desvalorizados, desconsiderados como profissionais. Esses docentes não eram reconhecidos como tais, as suas práticas não eram consideradas profissionais, mas atividades decorrentes de uma pretensa natureza feminina.