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Exigências e desafios contemporâneos da formação do educador de infância

CAPÍTULO II: FORMAÇÃO DE PROFESSORES E A EDUCAÇÃO DE INFÂNCIA

2.5. Exigências e desafios contemporâneos da formação do educador de infância

‚Artigo 34.

1. Os educadores de infância e os professores dos ensinos básicos e secundário adquirem a qualificação profissional através de cursos superiores organizados de acordo com as necessidades do desempenho profissional no respectivo nível de educação e ensino‛ (Lei No 49/2005 de 30 de agosto 2005. Cap IV. Lei e Bases do Sistema Educativo – Versão Nova Consolidada – Portugal).

‚TÍTULO IV

Dos Profissionais da Educação

Art. 62. A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de Licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas primeiras quatro séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal‛ (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9.394, 20 de Dezembro de 1996 – Brasil).

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A legislação que rege os educadores da infância, tanto em Portugal, quanto no Brasil, tem tido importantes mudanças. O status profissional do educador de infância tem sido reconhecido e regulamentado de forma clara pelos aparatos legais de ambos os países. Durante muito tempo, as regras de formação desses docentes não eram muito claras. Mas isso mudou nos últimos tempos. Esse profissional que lida com crianças de 0 a 6 anos deve ser, conforme as disposições legais atuais, preparado através de um curso superior universitário. Como vimos inicialmente, no nosso primeiro capítulo, ao realizarmos um breve histórico das diversas leis que, em cada um desses países, regula a ação desses professores, houve importantes ganhos para essa categoria profissional, que anteriormente foi desvalorizada, desconsiderada como tarefa menor no seio da própria atividade docente. Lembremos que, durante muitos anos, a feminização da docência afetou principalmente as docentes que trabalhavam com as crianças pequenas. Longe de serem valorizadas como profissionais, as suas tarefas eram equiparadas a capacidades próprias da natureza feminil, ao dom maternal de cuidar de crianças. O aspecto teórico e a formação prática eram ignorados. Boa professora era a boa mãe que conseguia implementar suas inatas condições para alimentar, dar banho e realizar outros cuidados. Longe daquelas épocas, hoje, mesmo ainda com muitas falências, o status dos educadores de infância é outro. As leis tendem a garantir que a formação dos professores de infância seja rigorosa, de caráter universitário; mesmo assim, as condições laborais, como

apontamos no histórico do primeiro capítulo, não são as ideais; o próprio papel

profissional – para além da aparelhagem legal que consagra a educação da infância como profissão universitária – está sendo repensado, rediscutido.

No seio dos debates em torno do status geral da profissão docente na contemporaneidade, que levantamos nos itens anteriores, a reflexão sobre a formação

dos educadores de infância tem aspectos específicos. Nosso foco reflexivo é a formação de professores de infância em Portugal e no Brasil. Nesses dois países, diversos teóricos apresentam importantes ponderações sobre a formação desses educadores, a quem seguiremos neste item. Em Portugal destacam-se Formosinho J. (2002); Portugal, G. (2002); Roldão (2002); Sarmento M. J. (2008); Oliveira-Formosinho (1998); Lopes A. (2002); no Brasil são relevantes as análises de Kishimoto (1999, 2002); Kramer (2002); Campos (1999), Corsino & Nunes (2000, 2001) dentre outros.

Portugal G. (2002) nos oferece importantes contribuições para analisar as mudanças da educação de infância em Portugal, assim como para esclarecer as alterações efetuadas especificamente nos cursos universitários de Aveiro destinados à formação desse segmento docente. Conforme sua explanação, esses cursos foram estruturados em quatro anos, sendo o último dedicado à Prática Pedagógica. A autora assinala a abrangência das diversas áreas estudadas durante o curso. O pedagogo dedicado | inf}ncia ter{ uma visão ampla das questões teóricas, uma ‚boa preparação em {reas vastas do conhecimento‛ (p. 98). As disciplinas estudadas se dividem em grandes áreas do conhecimento: 1) Área das Ciências da Educação; 2) Área de Linguagem, informação e comunicação; 3) Área de saúde, expressão motora e artística e 4 campos diversos, como ‚Ciências na Educação da Inf}ncia, Matem{tica na Educação da infância, História e Geografia na Educação da Inf}ncia‛ (pp. 98-99). Nessa diversidade de conteúdos, existe um propósito ‚globalizante e integrador‛, j{ que essas disciplinas devem ser focadas de forma transversal, não podem ser ministradas de maneira isolada, mas numa visão de conjunto, com ‚abordagens transdisciplinares‛ (p. 99).

A autora também frisa a singularidade do educador da infância que ao lidar com crianças pequenas, além de atender à transmissão de conteúdos, deve estar

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atento aos aspectos subjetivos dos pequenos. E isso exige: ‚a construção de relações de confiança, perceber o que é que as crianças necessitam, criar ambientes seguros‛, assim como lidar e trabalhar de forma solid{ria ‚com outros adultos significativos na vida das crianças‛ (Portugal G., 2002, p. 99). Neste ponto, fica clara a característica eminentemente relacional do trabalho educativo com crianças. Esse trabalho não se restringe a lidar com aspectos cognitivos apenas, mas implica atender ao desenvolvimento geral da criança, ‚enquanto membro de um grupo como o seu desenvolvimento cognitivo linguístico, sócio emocional ou físico motor‛. Trata-se de uma tarefa complexa que não se restringe aos muros da escola ‚mas que se alarga a contextos muito mais vastos‛ (Portugal G., 2002, p. 100).

Portugal G. (2002) frisa que o processo de tornar-se educador/professor é muito pessoal, singular; não há receitas prontas. Cada docente tem um percurso único, partindo dos seus conhecimentos prévios, das suas crenças e valores; no estágio da prática pedagógica, os formandos irão se defrontar com as exigências, com as premências da práxis. Nesse processo, eles terão que tomar decisões, adotar rumos, fazer escolhas perante os dilemas da prática:

‚Aprender a ser educador/professor envolve o reconhecimento da complexidade das tomadas de decisão. [...] deverá tomar decisões sobre a sua acção à luz de uma análise de situação, dos seus conhecimentos, responsabilidades e consideração das possíveis consequências de estratégias alternativas. [...] Aprender a ser educador/professor é um processo de contínua construção‛ (Portugal G., 2002, p.100).

A seguir, Portugal G. (2002), finaliza suas ponderações sobre a formação do docente da infância, destacando o essencial desse processo de auto-construção como educador/professor de infância, destacando especificamente a proposta formativa da Universidade de Aveiro ‚Desenvolver uma genuína consciência crítica e reflectida sobre a práxis pedagógica é o sentido da prática pedagógica da Universidade de Aveiro‛ (pp. 100-101).

Roldão (2002), por sua vez, destacará a importância das mudanças no instrumental legal que rege a educação da infância. Enfatiza os avanços trazidos pela alteração legislativa que exige a licenciatura aos educadores de infância, colocando-os no mesmo patamar que os docentes de ‚outros segmentos do ensino‛ (p. 37). Na sua ótica, essa mudança na formação desses docentes trará outros benefícios como melhoras salariais e outros ganhos que ‚constituem parte da complexa teia do reconhecimento público de uma actividade profissional‛ (p. 37). Essa exigência de formação universitária, assim como outros direitos e deveres conquistados recentemente pelos professores que lidam com crianças de 0 a 6 anos, além de melhorar o seu status laboral e o seu reconhecimento social, também evidenciará a ‚natureza científica plena da actividade destes profissionais, com o consequente reforço da cientificidade do saber educativo‛ (p. 38).

Uma outra postura será sustentada por Formosinho J. (2002) ao avaliar a formação universitária dos educadores da infância. Lembremos que Roldão (2002) valoriza o status científico conquistado por esses educadores; a formação universitária que garante a solidez dos seus conhecimentos. Por sua vez, Formosinho J. (2002) alerta para a possibilidade de que essa formação acadêmica, mesmo ancorada em bases científicas, não seja a ideal para os educadores de infância. O autor alude à academização da formação nas instituições de formação de professores de crianças.

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Essa tendência poderia levar a desenvolver, nesses docentes, um preparo teórico afastado da prática concreta, imprescindível para uma adequada atuação com as crianças pequenas. A academização é ‚a progressiva subordinação das instituições de formação profissional à lógica acadêmica nas diferentes dimensões institucionais‛ (p. 21).

Quais seriam os questionamentos principais de Formosinho J. (2002) à academização da formação dos docentes? Ele alerta para o fato de que é possível que os docentes sejam formados com conteúdos abstratos, desvinculados da prática, do contato concreto e efetivo com as crianças. Adverte também que, muitas vezes, o conhecimento acadêmico é altamente especializado, fragmentado, cindido em disciplinas estanques. Tal conhecimento pode afastar-se dos aspectos concretos e específicos da educação para crianças. Além disso, ele adverte que a academização também implica no desenvolvimento de comportamentos, de atitudes e de avaliações contrárias à docência. A intelectualização exagerada, o individualismo, a competitividade, próprias da lógica acadêmica, seriam alheios aos aspectos relacionais e morais imprescindíveis para educar crianças: ‚a acentuação do componente intelectual do desempenho, em detrimento dos componentes relacionais e morais, não conduz a uma pedagogia da autonomia e cooperação, não é conducente à preparação para uma escola comprometida comunitariamente e empenhada socialmente‛ (Formosinho, J. 2002, p. 20). Para o autor, a profissionalidade do educador da infância não se articula necessariamente com as exigências do saber acadêmico tradicional. A especificidade desses professores exige condições pessoais, morais e afetivas diversas daquelas que são transmitidas no ensino superior: ‚a profissionalidade do educador da infância se situa no mundo da interacção, o que a transforma numa profissionalidade muito diferente da suposta nos docentes do

ensino superior‛ (p. 25). Formosinho, J. (2002) conclui sustentando que, na atualidade, o pretenso avanço da formação acadêmica dos educadores de infância pode levar a efeitos indesejados. A formação desse profissional universitário poderia estar se desenvolvendo de uma maneira imprópria, inadequada para educar as crianças; haveria então: ‚uma tensão entre uma instituição baseada na especialização disciplinar estrita e a formação de professores como profissionais de desenvolvimento humano‛ (p. 30).

Veremos que as objeções efetuadas por Formosinho, J. (2002) à formação universitária dos educadores de infância, a sua academização, encontram eco em teóricos que discutem a formação do professor da educação infantil no Brasil, como Kishimoto (2002) e Kramer (2002), dentre outros.

Kishimoto (2002) começa apontando que a formação dos educadores de inf}ncia, no Brasil, durante muito tempo careceu de clareza para definir o ‚perfil profissional desejado nos cursos de formação propostos‛. Esses cursos de formação desconheceram a especificidade do educador das crianças pequenas. Colocaram-se no mesmo patamar os docentes de crianças de um leque muito amplo: de 0 a 10 anos. Tratava-se de cursos sem diferenciação, que incluíam a educação infantil ‚ao reboque das séries iniciais do ensino fundamental‛ (p. 107). Esta distorção na formação dos educadores de inf}ncia é definida pela autora como ‚escolarização‛, onde ignora-se as diversas necessidades concretas das crianças: motoras, sensíveis, afetivas, para valorizar ‚o excesso de leitura, escrita e c{lculo nas atividades infantis‛ (p.107). Kishimoto (2002) apresenta questionamentos semelhantes aos realizados por Formosinho J. (2002) à universitarização da formação dos docentes da educação: a forte tradição disciplinar dos conhecimentos universitários, o seu isolamento de cada uma das áreas dos saberes pedagógicos, a divisão em compartimentos estanques

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desses saberes. Essa fragmentação leva a ignorar a unidade e complexidade das necessidades das crianças pequenas. É necessário então que esse educador possa compreender a criança no seu contexto, no ambiente em que vive para desvendar os seus processos cognitivos:

Como levar o profissional a compreender que a criança pequena aprende de modo integrado, se ofereço conteúdos que não tratam da epistemologia desses conhecimentos? Se a criança constrói conhecimentos explorando o ambiente de forma integrada, a formação do profissional deveria passar por processos similares para facilitar a compreensão do processo de construção do conhecimento (Kishimoto, 2002, p. 109).

Kishimoto (2002) questiona a tradição verbalista dos cursos de formação de professores, em que os formandos lidam com livros, teorias, abstrações. Contudo, as crianças se desenvolvem numa totalidade vivida em que não é possível cindir pensar, sentir, expressar, brincar. Para uma capacitação adequada do educador de infância será necessária uma visão holística desses saberes das crianças, organizando conteúdos em ‚{reas de conhecimento mais integradas, como ambiente, corpo e movimento, linguagem, linguagens expressivas, brinquedos e brincadeiras, entre outras‛ (p. 109). Nesse intuito, para formar as crianças partindo de uma visão integral das suas necessidades, não pode faltar a arte. As expressões artísticas são essenciais nesse processo formativo; portanto, o educador de infância precisa, longe da tradição verbalista e intelectualista, lidar com todas essas áreas artísticas (Kishimoto, 2002).

As críticas de Kishimoto (2002) à tendência intelectualista, verbalista e abstrata presente nos cursos de formação de professores não o levam a negar a relevância teórica dessa formação. A autora não sustenta uma postura empirista assinalando que os saberes sobre a infância se restringem as práticas com as crianças pequenas. Ela preza uma formação em que possam articular-se as práticas, a experiência, e a reflexão teórica, a pesquisa que reflita sobre essas pr{ticas: ‚atribuir | formação pedagógica, estatuto científico, aliando a investigação e a formação, parece ser o caminho para a construção do novo profissional‛ (p. 111). A reflexão sobre a pr{tica pedagógica ganha, assim, estatuto científico, torna-se um campo autônomo de pesquisa; trata-se de uma reflexão sobre os afazeres com crianças: ‚A pr{tica pedagógica precisa erigir-se como área científica com corpo próprio de conhecimento. [...] Dar um novo estatuto à prática pedagógica requer olhá-la com outras lentes, usar outro paradigma, o científico‛. Esse corpo de conhecimentos sobre as crianças deve ‚dispor de quadros teóricos comuns para diagnosticar concepções de inf}ncia, instituição infantil, propostas curriculares, e utilizar instrumental de observação‛ (p. 112). Esse corpo de conhecimento, nascido da reflexão sobre as práticas com crianças, indica que os cursos de formação devem estar atentos a uma diversidade de experiências pois os docentes de inf}ncia são ‚polivalentes‛, ao se defrontarem com as diversas características das crianças: cognitivas, motoras, sensíveis, afetivas, familiares etc.

Kramer (2002) é outra autora que destaca a singularidade da formação dos docentes da educação infantil. Ela frisa a especificidade da infância, a singularidade dessa etapa essencial na vida humana. As crianças têm um enorme potencial criativo, que muitas vezes é sufocado numa cultura intelectualista. Elas, em contato com os mais velhos, poderão apreender com as histórias vividas, com as narrações desses

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interlocutores. No marco da interação, da troca com esses adultos, essas crianças são reconhecidas na sua dimensão cultural, aprendendo ‚com a história vivida e narrada pelos mais velhos, do mesmo modo a que os adultos concebam a criança como sujeito histórico, social e cultural‛ (p. 129).

Kramer (2002) também sublinha a importância da prática para a formação daquele que irá lidar com crianças. O educador da infância precisa refletir sobre essa prática, sem partir de concepções pré-determinadas, de receitas ou manuais para direcionar a experiência. Na própria ação, o educador de infância encontrará seu material para refletir sobre um fenômeno vivido, para elaborar seus conteúdos a partir do experimentado: ‚Os profissionais *...+ que atuam com crianças precisam assumir a reflexão sobre a prática, o estudo crítico das teorias que ajudam a compreender as práticas, criando estratégias de ação, rechaçando receitas ou manuais‛ (p. 129). Essa reflexão sobre a prática concreta do docente estará atenta aos diversos agonistas do processo docente – crianças, pais, parentes, auxiliares, administrativos. Ele deverá acolher a polifonia dos que produzem a ação educativa, as múltiplas vozes dessa tarefa formativa. A linguagem, conforme destaca a autora, é o eixo que possibilita a reflexão sobre essa diversidade: ‚O eixo norteador precisa ser a prática aliada à reflexão crítica, tendo a linguagem como elemento central que possibilita a reflexão, interação e transformação dos processos de formação em espaços de pluralidade de vozes e conquista da palavra‛ (p. 129).

Em resumo, neste capítulo refletimos sobre importantes perspectivas teóricas sobre a formação de professores em geral e sobre a formação de professores de educação de infância na atualidade. Após esse mapeamento teórico, no próximo capítulo traçaremos os pressupostos metodológicos com que sistematizaremos os depoimentos dos próprios docentes de infância de uma escola de Aveiro e outra do

Rio de Janeiro. No último capítulo, após esse percurso teórico metodológico nos posicionaremos sobre as diversas falas, as diversas perspectivas, impressões e sentimentos desses educadores de infância de Aveiro e do Rio de Janeiro.

CAPÍTULO III: A BUSCA DE UM CAMINHO: CONSTRUÇÃO DO QUADRO