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Identidade e formação do professor: profissionalidade docente, cultura e realidade social

CAPÍTULO II: FORMAÇÃO DE PROFESSORES E A EDUCAÇÃO DE INFÂNCIA

2.4. Identidade e formação do professor: profissionalidade docente, cultura e realidade social

Após termos levantado diversas questões sobre a formação de professores, lembramos novamente que no âmago deste debate encontra-se a problemática da identidade do professor. Em outras palavras, o debate sobre o professorado constitui um dos pólos de referência do pensamento sobre a educação, objeto obrigatório da investigação educativa e mola mestra dos processos de reforma dos sistemas educativos. Conforme vimos, abordando a ótica de diversos teóricos da educação, a discussão sobre a profissionalidade docente acha-se em permanente elaboração, devendo ser analisada em função do momento histórico concreto e da realidade social que o conhecimento escolar pretende legitimar. Assim, podemos inferir que o conceito de profissionalidade docente também está em permanente elaboração.

Uma vez dito isto, é possível apresentar algumas conclusões gerais sobre a formação de professores, à luz de diversos teóricos da educação da atualidade. Conforme mostramos, a atividade docente não é exterior às condições sociais, psicológicas e culturais dos professores. Educar e ensinar é, sobretudo, permitir um contato com a cultura, na acepção mais geral do termo; trata-se de um processo em que a própria experiência cultural do professor é determinante. Assim sendo, torna-se relevante repensar os programas de formação de professores; quando isso ocorre, costuma observar-se uma ênfase mais forte nos aspectos técnicos da profissão do que

nas dimensões pessoais e culturais. Contudo, conforme mostramos ao longo deste

capítulo, o docente não se reduz a realizar uma função técnica ou a desempenhar um mero fazer teórico; ele é um sujeito que lida com sujeitos; ele avalia, interpreta, toma

decisões. Assim, há uma inegável dimensão social e política na formação dos professores; função que deve ter um lugar de destaque. Nesse sentido, a função dos professores define-se pelas necessidades sociais a que o sistema educativo deve dar resposta, as quais se acham justificadas e mediatizadas pela linguagem técnica pedagógica. O conceito de educação e de qualidade na educação tem acepções diferentes segundo os vários grupos sociais e os valores dominantes nas distintas áreas do sistema educativo. A imagem da profissionalidade ideal é configurada por um conjunto de aspectos relacionados com os valores, os currículos, as práticas metodológicas ou a avaliação. O conceito de profissionalidade ideal depende assim de critérios não apenas técnicos e teóricos, mas ele provem das necessidades de cada

sociedade que avalia o significado da noção de profissionalidade ideal.Para Sacristãn

(1995), a educação é:

objecto de um amplo debate social, graças ao qual se constroem crenças e aspirações que formulam diferentes exigências em relação ao comportamento dos professores. Esta diversidade nota-se muito claramente em momentos de conflito, nomeadamente entre as expectativas familiares e a acção dos professores. A evolução da sociedade tende a afectar à escola um conjunto cada vez mais alargado de funções; as aspirações educativas a que o professor deve dar resposta crescem, à medida em que se tornam de dia para dia mais etéreas ou invisíveis. *<+ Esta evolução da exigência social, especialmente

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projectada na educação pré-escolar e na escolaridade obrigatória em geral, conduz a uma indefinição de funções‛ (p. 67).

À luz dessas observações, vale relembrar que os professores não produzem o conhecimento que são chamados a reproduzir, nem determinam as estratégias práticas de ação. Assim, é muito importante analisar o significado da prática educativa e compreender as suas consequências no plano da formação de professores e do status da profissão docente. A prática educativa remete, não raro, para o processo de ensino aprendizagem e a própria investigação destaca, sobretudo, a ação didática. Contudo, a atividade dos professores não se circunscreve a essa prática pedagógica visível, sendo necessário sondar outras dimensões menos evidentes. ‚À educação referem-se acções muito diversas, que influenciam a prática didáctica. Nesta perspectiva, é necessário alargar o conceito de prática, não a limitando ao domínio metodológico e ao espaço escolar‛ (Sacristãn, 1995, p. 68). Do ponto de vista histórico, a prática educativa não deriva de um conhecimento prévio, como ocorre com certas engenharias modernas, mas sim uma atividade que gera cultura intelectual, de forma simultânea a sua estruturação enquanto profissão, como já se deu com outras práticas sociais e ofícios. Isso ocorre porque muitos especialistas esquecem tal fato quando chega a hora de refletir sobre a relação entre prática e conhecimento. Os problemas da prática não são desprovidos de fundamentação científica, mas correspondem a contradições que a própria prática cria:

A própria escolarização universal procura responder a necessidades económicas e sociais, tendo-se organizado do ponto de vista prático antes de existir um conhecimento formalizado em torno dos fenómenos ‚pedagógicos‛.

Do ponto de vista social, a educação escolar e extra-escolar é entendida como um espaço cultural partilhado, que não é exclusivo de uma classe profissional concreta, ainda que se conceda uma certa legitimidade técnica à acção docente (Sacristãn, 1995, p. 70).

Enfatizar, como faz o autor, a existência de uma cultura sobre o ‚pedagógico‛, partilhada socialmente e assumida pelos próprios professores, é importante para compreender um fato de sociologia profissional: as destrezas relativas à atividade de educar e de ensinar, bem como toda a cultura que as rodeia, constituem uma competência distribuída socialmente que não se encontra limitada a um único grupo profissional.

A profissão docente é socialmente partilhada, o que explica a sua dimensão conflituosa numa sociedade complexa na qual os significados divergem entre grupos sociais, econômicos e culturais. A escola surge muitas vezes como uma instituição obsoleta aos olhos de agentes e forças culturais que necessitam de uma outra educação e que, portanto, tendem a questionar a legitimidade dos docentes, concorrendo para a sua desprofissionalização. Logo, toda mudança educativa deve assumir-se, em primeiro lugar, como uma mudança cultural.

A profissão docente é considerada por Sacristãn (1995) como uma semiprofissão. Em parte, porque depende de coordenadas político-administrativas que regulam o sistema educativo, em geral, e as condições do posto de trabalho, em particular. A própria profissão foi ganhando forma à proporção que ia nascendo a organização burocrática dos sistemas escolares e, por isso, é lógico que a sua própria essência reflita as condições do meio em que se molda. O papel dos professores nos diferentes níveis do sistema educativo e as suas margens de autonomia depende de

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configurações históricas que têm muito a ver com as relações específicas que se foram instaurando entre a burocracia que governa a educação e os professores. Esse ponto de vista de Sacristãn (1995) foi muito bem reforçado:

o professor é responsável pela modelação da prática, mas esta é a intersecção de diferentes contextos. O docente não define a prática, mas sim o papel que aí ocupa; é através da sua actuação que se difundem e concretizam as múltiplas

determinações provenientes dos contextos em que participa. [<] A sua conduta

profissional pode ser uma simples adaptação às condições e requisitos impostos pelos contextos preestabelecidos, mas pode também assumir uma perspectiva crítica, estimulando o seu pensamento e a sua capacidade para adoptar decisões estratégicas inteligentes para intervir nos contextos. A competência docente não é tanto uma técnica composta por uma série de destrezas

baseadas em conhecimentos concretos ou na experiência, nem uma simples descoberta

pessoal. O professor não é um técnico nem um improvisador, mas sim um profissional

que pode utilizar o seu conhecimento e a sua experiência para se desenvolver em

contextos pedagógicos práticos preexistentes (p. 74).

O professor, portanto, tem de intervir em todos os domínios que influenciam a prática docente, no sentido da sua emancipação e desenvolvimento profissional. A definição dos campos de ação do professor consagra uma decisão ético política sobre o status da profissão docente. A imagem libertadora do professor investigador tem de

ser estendida ao conjunto do trabalho docente, não se aplicando somente à atividade pedagógica na sala de aula. É necessário colocar as questões do poder na educação, não aceitando uma limitação do papel dos professores aos aspectos didáticos, uma vez que a mudança em educação não depende diretamente do conhecimento. A prática educativa é uma prática histórica e social que não se constrói a partir de um conhecimento científico, como se tratasse de uma aplicação tecnológica. A dialética entre conhecimento e ação tem lugar em todos os contextos onde a prática complexa se efetiva: ‚A pr{tica educativa não começa do zero: quem quiser modificá-la tem de apanhar o processo ‘em andamento’‛. A inovação não é mais do que uma correcção de trajectória‛ (Sacristãn, 1995, p. 77).