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Nós não podemos compreender as pessoas pelas suas idéias e ideologias [...] [Em vez disso] nós podemos compreender as idéias e ideologias somente pela compreensão das pessoas que as criaram e nelas acreditaram.106

Dussel dá a impressão que tem uma mente em constante ebulição em busca dos mais profundos sentidos da vida e, para o tormento dos seus comentadores, vai produzindo à medida que consegue intuir suas conclusões, que nunca são conclusivas, mas, ao mesmo tempo, mostram um dinâmico desenvolvimento progressivo, isto é, Dussel não é um pensador que constrói edifícios inacabados que, diante de um novo edifício, vai destruindo o que conquistou. À medida que avança em suas descobertas,107 Dussel vai aperfeiçoando ou polindo os conceitos já conquistados, erigindo, assim, um sólido edifício e bem entrelaçado a partir das descobertas e respostas às suas indagações em busca da verdade suprema que dá sentido à vida. Assim, ele vai desde o “grau zero do conhecimento e da experiência fundante”108 até chegar ao andar da cobertura do edifício de sua concepção de vida, que podemos chamar de estrutura conceitual dusseliana sobre a vida e o mundo. Este edifício é construído de forma que os andares mais inferiores, assentados no “grau zero”, vão dando estrutura aos andares superiores.

Em resumo, Dussel começa a se interessar pelas questões da vida ainda em sua juventude no vilarejo em que vive, passa pela descoberta da América Latina vista de fora, da Europa, descobre o Outro no índio, depois no colonizado, des-coberto e oprimido, rompe com o eurocentrismo, se desvia do

106 FROMM, Erich. The Dogma of Christ and Other Essays on Religion, Psychology and

Culture. New York: Holt, Rinehart and Wilson, 1963. p. ix.

107 Prefiro falar em descobertas no lugar de simplesmente estudos, pois os estudos eram

motivados pelo seu senso de busca, de descoberta em direção às respostas de que necessitava para compreender suas questões matriciais, como temos descrito ao longo desta tese.

108 Veja mais adiante a explicação sobre o “grau zero do conhecimento” e o “grau zero da

classisismo da teologia oficial católica, sem romper com a Igreja Católica, re- cartografa a história da Igreja à luz do pobre/oprimido, coloca a América Latina como centro do mundo, labora no campo da Filosofia, da Ética (primeira ética) e, vai redescobrindo o mundo pregando a trans-modernidade, que deverá superar a modernidade. Surge a sua segunda ética. Para onde mais vai nosso historiador? Ainda é cedo, pois após a década de 90 o mundo entrou num fervilhar religioso novamente, temos agora o terrorismo contemporâneo em sua segunda fase, já não tão “conservador”, marcado pela data trágica de 11 de setembro de 2001, que tem entrado numa espiral crescente de crueldade. Como Dussel trataria agora o Outro, o pobre, o oprimido diante do terrorismo paranóico e desenfreado impingido ao mundo todo pelo “fundamentalismo” árabe? Seria o mundo todo o Outro (“Outro global”), o oprimido, pois todos estamos agora lançados num mesmo patamar, visto que as bombas terroristas não possuem a capacidade seletiva de matar uns e deixar vivos outros que se localizam no mesmo recinto onde são detonadas. Mas isso deverá aguardar o seu tempo apropriado.

A cronologia dusseliana pode ser encontrada fragmentariamente em diversos textos de seus comentadores, mas preferimos destacar o esforço empreendido por Gildardo Diaz Novoa, em tese doutoral apresentada em 2001 na Universidade de Valladolid, criada na Espanha, ao final do Século XIII. Novoa tem a preocupação de colocar Enrique Dussel na Filosofia latino- americana diante da Filosofia eurocêntrica e destaca a sua produção no campo da ética. A partir deste seu esforço desenvolvemos uma linha do tempo descritiva dos principais momentos da construção arquitetural do pensamento dusseliano. Em geral esta linha do tempo começa quando Dussel sai da Argentina e toma o rumo para a Europa em seus primeiros estudos realizados no exterior. Mas também há quem divida a produção dusseliana em dois períodos, como o faz Mignolo: o primeiro período se localiza na Argentina de 1969 a 1975 e o segundo período vem de 1976 até hoje, que é o seu período do exílio no México.109

Como nosso trabalho é no campo da história, será preciso ampliar

109 MIGNOLO, 2000, p. 27.

essa abordagem, pois com este olhar de historiador é preciso se ocupar em lançar a visão de forma mais ampla, destacando outros momentos que normalmente não são privilegiados num período de fertilidade mental e acadêmica de um ator em destaque, como é o caso de Dussel em nosso texto.

Assim, o primeiro Dussel, para Novoa, será o segundo Dussel na

linha do tempo que apresento a seguir. E isso especialmente também porque ao final desta tese demonstrarei a necessidade de se considerar a operação histórica dentro de uma perspectiva holística ou “ampla-inclusiva”. Esboço quatro fases de Dussel, diferentemente do que as duas fases que normalmente os comentadores tratam. A sua infância e juventude precisam ser consideradas, pois nessa fase Dussel já demonstra uma inquietude perscrutadora sobre o sentido da vida a ponto de mobilizar pessoas de sua idade a se envolverem com o movimento jovem da Ação Católica. Esse período, também importante em sua vida, tem sido esquecido pela maioria dos textos que trazem sua biografia, focalizando sua vida apenas a partir de sua ida à Europa.

Cabe aqui um destaque ao Quarto Dussel quando indico a ampliação de sua visão para além da América Latina e, no quadro comparativo das diversas fases de sua vida, o chamo de “Dussel Global ou Mundial”. Coloco essa fase como iniciando em fins da década de 80, mas é possível considerar que há traços marcantes dessa fase global ou mundial de Dussel logo após o início de seu exílio no México. Casali menciona, por exemplo, que a obra resumo que inicia essa etapa do exílio mexicano de Dussel é concluída no final de 1976110 e publicada em 1977 com o título Filosofia de la Liberación, já não aparecendo mais o termo “latino-americana”. É preciso lembrar que, até chegar esse período, as suas obras recebiam no título a expressão “latino- americana” ou “da América Latina”. É interessante citar a apresentação que ele faz na primeira edição, para percebermos como ele, provavelmente traumatizado pela perseguição que sofrera na Argentina, começa a voltar seus olhos para além da América Latina, veja como ele já fala em mundialização,

110 Embora o prefácio tenha sido escrito em 1976, Dussel menciona na 5ª edição da obra que

fora escrita em 1975, vamos lembrar que o seu exílio para o México ocorre em 15 de agosto de 1975.

diálogo mundial da Filosofia, demonstrando que será necessário voltar os olhos para o mundo dando início à hipótese de que seria um período de superação da exclusividade da América Latina como o locus privilegiado do “Outro”. Vejamos:

Palabras Preliminares

Lo que sigue va dirigido al que se inicia en filosofía. Por ello este corto trabajo, sin bibliografía alguna, porque los libros de mi biblioteca están lejos, en la patria argentina, escrito en el dolor del exilio, quiere ser sentencioso, casi oracular. No pretende ser una exposición completa, sino más bien un discurso que va trabando tesis tras tesis, propuesta tras propuesta. Es sólo un marco teórico filosófico provisorio.

Escrito desde la periferia para hombres de la periferia, sin embargo, se dirige también al hombre del centro, como el hijo alienado que protesta contra el padre que se va haciendo viejo; es decir, el hijo se va haciendo adulto. La filosofía, patrimonio exclusivo del Mediterráneo, desde los griegos, y en la edad moderna sólo europea, comienza por primera vez su proceso de mundialización real. Por ello, este marco teórico filosófico o conjunto de simples tesis para permitir pensar de un cierto modo, quisiera iniciar un diálogo mundial de la filosofía. Parte, es evidente, de la periferia, pero usa todavía el lenguaje del centro. No puede ser de otra manera, como el esclavo que habla la lengua del señor cuando se rebela, o la mujer que se expresa sin saberlo dentro de la ideología machista cuando se libera.

Filosofía de la liberación, filosofía postmoderna, popular, feminista, de la juventud, de los oprimidos, de los condenados de la tierra, condenados del mundo y de la historia.

E.D., México, 1976111

Em meados da década de 80, Dussel também dá mostras da necessidade de se ampliar a visão missionária da América Latina para fora do seus limites geográficos. Ele afirma que em setembro de 1984 descobre-se que

agora talvez tenha chegado a hora de uma responsabilidade missionária mundial. Essa responsabilidade, para ele, não está mais no envio de

missionários, como no passado, para a África, a Ásia, mas para que fosse compartilhado o “modelo” de Igreja como serviço cristão ao Terceiro Mundo,112 indicando isso a sua ampliação de visão para além fronteiras. Esta perspectiva do “Quarto Dussel” se torna mais enfática a partir do final da década de 80 e

111 FL, p. 10. O texto sublinhado por mim serve para demonstrar as expressões indicativas da

ampliação da visão dusseliana. Coloco aqui o texto integral e em espanhol para manter o significado e as ênfases na própria língua original e, assim, será em outras citações utilizando o texto em espanhol. Pista foi fornecida por CASALI em comunicação eletrônica em 21 fev. 2007.

possivelmente após 1993, quando de sua saída da presidência da CEHILA, tendo ele agora tempo para se dedicar mais ao diálogo e interlocuções nesse alargamento geográfico da localização do “Outro”. Essa percepção não indica de forma alguma que Dussel estava se esquecendo da América Latina, mas que ele estava alargando a sua percepção para além fronteiras, transformando a Igreja da América Latina num agente missionário e profético da libertação do “Outro” – pobre, oprimido, esquecido – para o mundo todo. Essa abordagem demonstra mais uma vez que a construção do edifício conceitual de Dussel é dinâmica e contínua e, enquanto avança em suas descobertas e peregrinação, em vez de destruir o que já construiu, vai edificando andar sobre andar continuamente de modo a ter uma estrutura consistente que mantém todo esse edifício solidamente alicerçado a ponto de conseguirmos observar em sua ultima obra publicada, com prefácio datado de março de 2006, desafiar ao exercício de uma política sadia não apenas ao partido, ao povo, à pátria, à

América Latina, mas também à humanidade.113

PRIMEIRO DUSSEL Etapa de formação

Dussel jovem Militância por meio dos Jovens da Ação Católica

SEGUNDO DUSSEL 1ª Experiência na Europa // Experiência na Palestina

Dussel ontológico O que é a América Latina? Dussel da ontologia Primeira conversão ao pobre

TERCEIRO DUSSEL Volta p/ a América Latina // Exílio no México

Dussel analético // Dussel da História // Dussel da AL O “Outro” como categoria epistêmica (acorda do sono ontológico – segunda conversão ao pobre)

QUARTO DUSSEL Experiência Global // Diálogo com filósofos

Do Dussel do exílio ao Dussel trans-moderno, mundial Trans-

modernidade como projeto mundial de libertação // Superação da exclusividade da América Latina como locus privilegiado do Outro???114

Quadro 1 – As quatro fases da vida de Enrique Dussel

Em seguida vou apresentar um quadro comparativo dos quatro

113 20TP, p.8.

grandes períodos da vida de Dussel. Será preciso considerar que, como o quadro a seguir é resumido, não se pode esperar uma abordagem em detalhes, mas apenas os pontos de destaque. Além disso, é preciso levar em consideração que as datas são aproximadas:115

115 Além dos textos já indicados neste capítulo, o quadro a seguir também levou em conta os

dados apresentados nos seguintes textos: STERMIERI, 2003; VILLA, 1993; NOVOA, 2001; VILLA, Cronologia de Enrique Dussel. Disponível no repositório digital de obras de Dussel na Internet: <http://168.96.200.17/ar/libros/dussel/anthro/cronos.pdf>. Acesso em 20/05/2005.