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Uma hipótese, em ciência é um princípio que se propõe como instrumento da investigação futura, mas que tem sido fruto de muitas investigações científicas passdas. Por isso mesmo, é um ponto de chegada e um ponto de partida.125

Como apresentei na introdução, Enrique Dussel não desenvolve a sua obra histórica como apenas um colecionador de fatos ou documentos do passado, mas expressa o desejo de entender estes fatos e documentos do passado para compreender o que se passa com o presente na América Latina. Mas para isso ele se debruça desde o começo de seu empreendimento na busca de hipóteses que venham fundamentar a sua produção no campo da História. Tanto isso é verdade que seu texto de “input” nessa tarefa, lançado em 1967, foi denominado “Hipótesis para una Historia de la Iglesia en América Latina”. Em outras palavras, antes de escrever propriamente a História da Igreja, Dussel fez um trabalho preliminar, pois para se concretizar uma operação histórica não basta ter documentos, relatos sobre os fatos do passado, é preciso saber quais fatos, documentos serão priorizados, quais perguntas lhes serão feitas, quais atores serão focalizados. Para isso as hipóteses serão fundamentais, por fornecerem as sinalizações indicativas dos rumos a serem tomados na operação histórica propriamente dita.

125 Hip, p. 10.

Por isso mesmo a análise que será apresentada neste capítulo acaba tendo mais um foco teológico do que histórico, uma vez que as hipóteses dusselianas para a História são provenientes da Teologia conforme explicarei mais adiante no sub-item “o ponto de partida para as hipóteses dusselianas …”, afinal o ator principal da História para Dussel será o pobre – em primeiro lugar o índio como pobre – paradigma126 que ele procura retirar a partir da perspectiva teológica indicativa das relações de opressão vividas na história latino-americana. Portanto, não se pode esperar ainda desta fase de produção dusseliana uma enfática análise puramente histórica em virtude do conteúdo teo-filosófico127 ser um elevado impulsor de sua produção histórica.

Depois de seu período de formação inicial, Dussel se aventura à realização de seu empreendimento em mostrar a concretude da América Latina, que, embora distante da Europa e sua hegemonia ideológica, é habitada também por seres humanos valiosos, que tiveram subtraída a sua liberdade cultural e de vida, lançadas sob o jugo da colonização hispânica e portuguesa e que embora pensadores ocidentais de diferentes origens viessem a partilhar de uma herança comum, o lugar onde o pensador latino-americano

analisa a realidade é diferente do lugar de onde o europeu ou o norte- americano trabalham. Essa condição distinta permite ao pensador latino- americano a possibilidade de contribuir originalmente para a prática da libertação.128 Assim, o eurocentrismo precisava ser denunciado, à América Latina seria necessária restituir o seu direito de existência e validação de sua cultura sufocada pela colonização. Assim, em 1967 Dussel lança “Hipótesis”, produzido em 1965.129

O lançamento das “Hipótesis” acabou não sendo um trabalho

126 Sem entrar nas clássicas discussões, preferimos aqui a palavra “paradigma” para pobre, no

lugar de categoria, pois ainda que Dussel considere o “pobre” como categoria, acaba dando- lhe status mais amplo do que mera categoria acadêmica abstrata, um conceito despersonalizado e impessoal. Me parece que paradigma tem força maior, indicando fonte, ponto de partida.

127 Embora na visão dusseliana pareceria mais correto falar aqui penas em visão teológica. 128 SAMPAIO, 1989, p. 138.

conclusivo, mas uma problematização metodológica e de uma periodização para que a História da Igreja na América Latina pudesse ser escrita um dia por um time de historiadores e profissionais de outras áreas do saber indicadas nessas hipóteses. O texto, depois chamado pelo próprio Dussel de obrita,130

que inicialmente era para ser apenas um conjunto de hipóteses como um ponto de partida para um trabalho futuro de cunho científico, acabou sendo, segundo Dussel, uma certa LEITURA DE NOSSA HISTÓRIA, que é, ou pode ser, útil ao

cidadão, ao sindicalista, ao político.131 Isto já indica que a produção histórica dusseliana, desde seu nascedouro, tinha o atributo de ser uma História

militante, isto é, uma História engajada na luta pela superação da pobreza, pela libertação dos pobres.132 Uma História com uma causa bem definida.

Mas, além disso, Dussel acreditava numa História que se constituísse na consciência cultural de um povo que deve ser exposta “com sentido” e não meramente uma narrativa a partir de uma coleção ou empilhamento de documentos indicativos das atividades cronológicas de atores diversos, especialmente os governantes e líderes. Ele diz

a História constituí a consciência cultural de um povo quando se a expõe ‘com sentido’, e muito mais a consciência cristã quando se lhe mostra a teleologia escatológica – o sentido da História que tende a Cristo que virá porque tem vindo de seu povo, seu continente; é aqui que a História se faz ‘Mestra da vida’.133

Para Dussel, portanto, o cristão latino-americano tem um papel preponderante num continente em ebulição – tem um papel revolucionário – e precisa ser despertado para isso, uma vez que na época tinha apenas à sua disposição obras da História da Igreja Latino-Americana enclausuradas no nível acadêmico, distantes, assim, do público comum de modo a deixar a consciência latino-americana sem uma das dimensões constitutivas de sua

130 Veja HG, p. 81. “Obrita”, em espanhol, que pode ser traduzida por “livreto” ou “pequena

obra”.

131 Hip, p. 11. Palavras capitalizadas pelo próprio Dussel. 132 WIRTH, 2001, p. 28.

evolução própria como civilização.134 A História seria uma ferramenta para o indivíduo poder julgar a vida do continente em revolução e reconhecer o seu papel. Mas esta História precisaria ser reescrita, ou melhor, escrita a partir da própria condição latino-americana, para que o cristão também tivesse à sua disposição uma História não mais posta à luz da Europa, mesmo a História primeva do Cristianismo ou mesmo a Patrística, medieval e de outros períodos. Assim, temos na construção histórica dusseliana uma História não só o caráter militante, mas também de cunho escatológico e teleológico.

Dussel, propondo um diálogo por meio do conjunto de hipóteses,

de uma nova periodização e seus conteúdos essenciais, desejava abrir uma discussão sobre o método que deveria ser utilizado para uma nova e “outra” História, isto é, uma nova maneira de se construir a História, sem a influência da hegemonia patológica européia. Assim, com “Hipótesis” ele se dirigia ao

militante que exige uma exposição do fenômeno cristão inteligível e justificativo de seu presente, no qual está lançado, evidentemente, o futuro de nossos povos.135 Isto indica que Dussel não tem apenas hipóteses metodológicas para a História, mas parte também do princípio de que o povo comum tem um papel militante não só em compreender o presente, por isso mesmo precisa deixar de ser consumidor da realidade, para também interagir com o presente em busca de esperançoso futuro. Sendo a História dusseliana uma História militante, escatológica e teleológica, é possível dizer que é uma História instrumental, muito mais do que mera coleção cronológica de fatos passados. Instrumental porque instrumentaliza, fornece uma caixa conceitual de ferramentas (“toolbox”), dando instrumentos para o cidadão comum, que nunca foi tocado pela História oficial europeizada, para compreender à sua própria luz latino- americana o seu continente e julgar seu momento de modo a poder agir revolucionariamente.

Ao procurar compreender o presente, que lançará o futuro de esperança para um povo sem esperança, a partir da compreensão de seu passado, a História dusseliana acaba também se tornando como que uma

134 Hip, p. 11. 135 Hip, p. 12.

História-Problema, que originalmente nasce na Alemanha com Dilthey e que

depois se torna um eixo operador da História na primeira fase “analliste”, com Bloch e Febvre. Com isso pretendo dizer que temos aqui um indicador de que a preocupação dusseliana será menos com uma História acontecimental cronográfica – como normalmente o é a História oficial da Igreja – e mais com uma História interpretativa a partir do problema crucial que Dussel coloca como alvo de suas buscas – o Outro, pobre e oprimido. Ele procura voltar ao passado para rastrear as causas que levaram o Outro ao seu estado de anonimato, de opressão. Assim, vai trabalhar em primeiro lugar no lançamento de hipóteses que se tornam fundamentais para que os devidos eixos hermenêuticos possam ser estabelecidos, clareados, de modo a nortear a descoberta de “novos objetos, novos problemas e novas abordagens” (LeGoff / Nora), além de novas fontes, novos atores, de novas perguntas a todos esses elementos. Corrobora essa descrição que apresento sobre a História dusseliana Sampaio ao dizer que o esforço da interpretação crítica da História da Igreja na América Latina caminha para descobrir o significado, para o presente, do “sentido” do passado

em exame, ou ainda como a ação da Igreja e dos cristãos no passado poder iluminar sua presença no presente e no futuro.136 Mas não se engane, pois a História na perspectiva dusseliana é muito mais do que História-Problema, como veremos mais adiante.

“Hipótesis” é composto por três capítulos. No primeiro, Dussel oferece uma introdução metodológica descrevendo os elementos teológicos da estrutura da igreja que permitem uma reflexão histórica; os elementos estruturais sócio-filosóficos, que permitem compreender as relações da igreja com o mundo; relações entre a igreja e as comunidades, povos, nações ou civilizações. Neste primeiro capítulo, além de apresentar elementos metodológicos, como se pode ver pela distribuição dos assuntos, Dussel demonstra que a igreja está inserida no mundo e com múltiplas relações, além disso, há que se levantar para a sua História hipóteses teológicas, mas também sócio-filosóficas.

136 SAMPAIO, 1989, p. 145.

No segundo capítulo temos o tratamento da época colonial da América Latina envolvendo os Séculos XVI a XVIII. Neste capítulo temos o “choque” entre duas civilizações (índia e hispânica); as primeiras cinco etapas da História da Igreja na América Latina durante o grande período chamado colonial, que vai de 1493 a 1808, com a decadência borbônica; finalizando o capítulo temos o enjuizamento da obra evangelizadora realizada pela Igreja na América Latina.

O capítulo terceiro oferece a abordagem da época da independência, em que Dussel vai descrever o percurso histórico de um regime de cristandade, um regime de civilização profana, envolvendo os Séculos XIX e XX. Aqui temos também três sub-partes: a primeira vai tratar das crises dos maiores Estados independentes descrevendo a crise organizacional das novas nações latino-americanas que se despontam nesta época de independência, além da crise que provém da secularização que representava o afastamento do encantamento religioso herdado da colonização e opressão; na segunda sub- parte temos as grandes etapas da História da Igreja na América Latina politicamente independente, com a descrição das suas demais etapas (da sexta à nona), datando-se, então, de 1808 a 1955, quando temos a nona etapa – a da unidade e renascimento o catolicismo latino-americano ante a civilização profana e pluralista.

Depois das conclusões gerais, o texto recebe seis apêndices geralmente compostos por listagens e tabelas, com cronologia, lista de sínodos, número de fiéis católicos e protestantes na América Latina. O primeiro apêndice se destaca por um breve léxico de palavras latino-americanas ou de palavras técnicas utilizadas, providência necessária para um empreendimento que objetivava lançar novas bases para a produção histórica, uma vez que novos termos sendo lançados, termos antigos precisam ser reconceituados. O livro também tem inúmeros quadros, fotos e mapas.

Se o texto trata de hipóteses, é preciso saber logo de partida o que para Dussel significa uma hipótese um princípio que se propõe como

investigações científicas passadas.137 Por isso mesmo é, para ele, um ponto de partida e um ponto de chegada. Uma hipótese como ponto de partida indica uma probabilidade de não ter sido verificada e como ponto de chegada já haveria tido a possibilidade de sua verificação.

Fica claro desde o início que neste projeto dusseliano a focalização é destinada à Igreja Católica. Ainda que Dussel faça ligações com os protestantes em seus textos, a sua preocupação é apresentar a História da Igreja Católica. Com o tempo os protestantes vão sendo inseridos com mais intensidade no empreendimento dusseliano especialmente pela sua presença na CEHILA.

O PONTO DE PARTIDA PARA AS HIPÓTESES