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Em suas obras é possível detectar que o ideário sobre o qual está ancorado o pensamento de Dussel pode ser sumarizado em quatro tópicos: 69

1. A América Latina como referência fundamental de sua reflexão. Este item do seu ideário foi um verdadeiro impulsor para um dos seus maiores empreendimentos, com a sua grande contribuição para a História da Igreja que perdura até hoje na lavra de CEHILA a ponto de Dussel e CEHILA serem “carne e unha” tendo as idéias dos dois um entrelaçamento raramente visto entre um “scholar” e seus “discípulos”, claro que na terceira geração de CEHILA já se percebe uma reavaliação de seu ideário fundante,70 embora também seja perceptível, ainda que mais discretamente, na segunda geração. Por outro lado, também isso não é algo grave, pois o projeto Dussel-CEHILA sempre foi erigido numa arquitetura de configuração aberta, que procurou ser não apenas crítica quanto à Igreja estabelecida, mas desenvolver uma auto-crítica, resultando numa contínua evolução e amplificação dos conceitos matriciais de seu labor, num exemplo só bastaria ver o desenvolvimento do conceito de “pobre”, mais adiante explicitado.

2. Conceber a libertação como a práxis fundamental. Nesse item do seu ideário, é possível navegar em suas discussões sobre o eurocentrismo como metanarrativa (ainda que ele não tenha feito explicitamente a ligação entre estes dois termos) para explicar toda vida, a chave do colonialismo71 e a tensão dos que sofrem a opressão e dos que lutam pela justiça na América Latina e em todo mundo. Houve aqui uma influência direta da Teologia da Libertação, que surgiu nas décadas de 60 e 70, como uma nova forma de fazer teologia, assumindo as

69 LONDOÑO, 1995, p. 47.

70 Veja sobre isso depoimentos na conclusão desta tese.

71 Mignolo (2003, p. 81) demonstra também que o colonialismo estruturou o passado da

América Latina. Seguindo o léxico dusseliano, é provável que poder-se-ia utilizar no lugar de “estruturar”, “des-estruturar”.

práticas sócio-políticas e eclesiais como um “lugar teológico”, passando assim a elaborar uma teologia política como uma necessária resposta aos “sinais dos tempos” e aos desafios históricos concretos daquela realidade.72 Na compreensão dusseliana era preciso enfrentar a dura realidade das condições coloniais e de opressão vividas na América Latina geradas pela sua incorporação à Europa que, mais do que neutralizar, ocultaram o seu rico patrimônio sócio-cultural. Ele descobriu a relevância do conceito de libertação aplicado à América Latina

desde que teve a percepção do continente no barco que o levava à Europa até as polêmicas desenvolvidas trinta anos mais tarde, no marco da celebração dos 500 anos, onde Dussel falou de

encobrimento em oposição à descoberta, a América Latina é

horizonte ao qual confluiu toda a sua reflexão.73

Para Londoño o tema da libertação estava presente em Dussel antes de

enunciá-lo como tal, nos seus textos de juventude sobre a ética e o bem comum.74

3. Descobrir o OUTRO no pobre. Este é o núcleo impulsor do pensamento dusseliano. O Outro era o colonizado protegido, calado, ausente da História oficial, o pobre, por ter sido excluído não apenas da História oficial, mas também do partir do pão, do repartir das bênçãos celestiais que se tornaram privilégio clerical. Para Dussel o Outro não era o clero, muito menos o Estado, opressores em sua natureza, mas o pobre, ausente da vida.75 Beozzo lembra que essa percepção pelas condições do pobre é marcada pela experiência de Dussel, que durou dois anos quando viveu numa comunidade fundada por Paulo Gauthier, em Israel, vindo o seu sustento diário como um simples operário da construção civil entre a gente mais simples e pobre da Palestina. Além disso, como já vimos, ele também trabalhou num kibutz, às margens do

lago de Tiberíades. Esta experiência humana e espiritual de pobreza, do

72 COUTINHO, 1999, p. 3.

73 LONDOÑO, 1995, p. 47. Os negritos na citação são meus. 74 LONDOÑO, 1995, p. 49.

trabalho manual, da leitura orante e meditada da Palavra de Deus, compartilhada em comunidade marcaram profundamente o itinerário interior de Enrique Dussel.76

4. A construção de uma proposta de leitura da realidade a partir desta

práxis. Este último tópico, em termos de Igreja na América Latina, vai

supor uma recuperação de sua história vista a partir do pobre. O “pobre” é primeiramente identificado em Dussel com o índio,77 e se torna depois no ideário dusseliano uma categoria teológica abrangente que se estende para além de sua origem conceitual quando lançada nas discussões cehilianas, especialmente pela lavra de Eduardo Hoornaert e Maxilimiano Salinas. A categoria do pobre assim se torna um eixo epistêmico gestor da História não apenas escrita por Dussel, mas também no percurso de CEHILA.78 Estes três últimos pontos do ideário dusseliano acabaram produzindo uma operação histórica militante.79

Londoño resume esses enfoques do ideário de Dussel, para quem a tarefa de libertação da América Latina supõe o fim de qualquer forma de colonialismo,

a supressão das condições econômicas e relações internacionais que geram continuadamente a miséria e a pobreza, e o surgimento de um tipo de relações onde todos os homens reconhecidos mutuamente como o OUTRO possam realizar um encontro criativo, gerador contínuo de humanidade e de vida e não de submissão, aniquilamento e morte como tem sido nos últimos 500 anos.80

Por sua vez o tema do pobre e da libertação é fertilizado pelos insumos especialmente vindos do Concílio Vaticano II (de 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965), ocasião em que a Igreja Católica, chamada

76 BEOZZO, 1995, p. 11, 13.

77 Veja sua tese doutoral El episcopado hispano-americano en su primer siglo. Cuernavaca:

CIDOC, 1969-1971. 9 vols. Veja também em LONDOÑO (1995, p. 37-39) breve descrição do conteúdo desta tese.

78 Veja na conclusão depoimentos sobre novos rumos da CEHILA na presente 3ª geração. 79 Sobre a designação “História militante” veja HOORNAERT, Eduardo Sobre a metodologia de

nosso projeto de História da Igreja na América Latina no momento que atravessamos. In: Boletim CEHILA, n. 42, p. 27, ago. 1991-set. 1992.

como povo de Deus e, no Concílio em Medellín (Colômbia, 1968), como Igreja dos pobres, que deverá estar comprometida com os oprimidos e sua libertação. Esse “espírito” conciliar impulsiona o movimento da Teologia da Libertação, que teve em Dussel um importante fomentador e ideólogo, mas que foi além dos teólogos da libertação ampliando as conseqüências dessa cosmovisão libertadora para alcançar a construção de uma História militante81 a ser escrita a partir do pobre e para o pobre.

Não se pense que Dussel ficou apenas no campo da História. Ele

navegou com maestria no campo da Filosofia, Ética, sendo estes campos fundamentais para se compreender seu pensamento,82 da Pedagogia e da Erótica. Para Beozzo, Dussel

foi pioneiro em abrir caminhos para o nascimento de uma filosofia latino-americana. Sua contribuição mais original situa-se na esfera da ética, como proposta de libertação no campo político-econômico, a partir do pobre, alteridade crítica de todo sistema e ‘o outro’ por excelência: no campo da erótica, a partir da mulher violentada pelo machismo e a exploração sexual e hoje lutando por sua plena dignidade; no campo da pedagogia, a partir do filho submetido e alienado, em busca de sua maioridade e de relações de reciprocidade. Ajudou a renovar o pensamento social cristão, colocando a libertação do pobre como imperativo ético absoluto e a comunidade como espaço de crítica e superação de uma moral individualista.83

O CONTEXTO LATINO-AMERICANO