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Montaigne A história não é somente um lugar teológico, mas um ‘objeto’ privilegiado da fé e do pensar teológico. Descobrir o sentido da historia é um momento teológico central.331 Com a CEHILA, Dussel amplia a proposta de uma História não apenas construída pelo ferramental historiográfico clássico, uma História fruto não apenas de interpretação histórica, mas ao mesmo tempo como interpretação de teologia cristã com os olhos voltados para compreender o processo histórico a partir dos pobres, dos oprimidos e da América Latina. A própria concepção de uma matriz fundante na História dusseliana a partir dos pobres exige uma fundamentação fora do campo histórico, demandando o concurso do aparato conceitual teológico para seu estabelecimento que ele já lança quando da escrita das “Hipótesis”, conforme já apresentei no capítulo anterior.

Assim, a escrita da História deve ser precedida pela sua compreensão e a sua compreensão deve ter como ponto de partida a fé. Neste

330 SUESS, 1995, p. 109.

sentido

a História da Igreja se inscreve na Teologia por se valer, como pauta interpretativa, da revelação. Impõem-se deste modo a necessidade de o historiador conhecer teologia: ela o ajudará a não situar sua interpretação num horizonte de sentido anti-cristão, que rejeita valores e prática da revelação – fundamentalmente o amor de Deus e ao Outro, o pobre [...] [do historiador da] Igreja exige-se uma interpretação de fé fundada na revelação e aliada à clareza metodológica, livre do historicismo positivista e livre da apologia da Igreja [...] reside aqui a diferença no ‘sentido’ que cada um dará aos fatos a serem interepretados, pois todo historiador da Igreja parte de uma concepção teológica, recorre a certo método de análise e tira suas conlusões.332

Para Dussel, na revelação a origem da fé é um ato profético de

conversão [...] o ato de crer, de ter fé, se refere à ‘palavra’ do outro, do abrir de sua interioridade secreta.333 Essa abertura ao mundo do outro desloca-nos do conforto e segurança encontrada no sistema estabelecido, sacudindo-nos ao cumprimento de nossa função histórica. Pode haver muitas desculpas antes desta “aventura” ao desconhecido mundo do Outro, mas é um passo em direção ao desconhecido, em direção ao mistério, à imprevisibilidade, à abertura, à exterioridade, à transcendentalidade do que já está estabelecido. Assim, segundo Dussel, a fé é a dialética entre a palavra-ouvido. É um saber

ouvir e ter fé na palavra porque o outro a pronuncia.334

Essa valorização da palavra do Outro com a revelação de Deus – o absoluto – é entendida por Dussel pelo fato dele crer que há um outro absoluto – Deus – e que as coisas são simples fenômenos do mundo, mas que

o homem, os irmãos, os outros livres, são a epifania do absoluto [...] através dos quais a ‘divindade’ se manifesta. Assim, Deus se revela na totalidade do sistema, da carne (basar), através do pobre [...] o sistema, a totalidade, a carne tende-se a fetichizar-se [...] tende-se a auto-interpretar-se como ‘Deus da terra’.335 A partir dessa hipótese, Dussel entende que aqueles que se identificam com o sistema e não com o Outro (o absoluto e o não-absoluto) se

332 SAMPAIO, 1989, p. 143, 149, 157. 333 HG, p. 56. Aspas de Dussel. 334 HG, p. 57.

tornam hegemônicos e dominantes de modo a impedir que Deus, o absoluto- outro de todo sistema, possa por eles se manifestar, já que se tornam a manifestação na terra do ídolo, a própria negação de Deus, pelos seus atos opressores. Para Deus se revelar, segundo Dussel, será por meio daqueles que são “Outros” além do sistema opressor, assim como o próprio Deus que é o Outro de todo sistema. O Outro para Dussel, como temos visto, é o pobre, o oprimido pelo sistema e, por isso mesmo, que aspira a um outro sistema. A partir da leitura marxista, para Dussel, o pobre não pode se identificar com o sistema fetichizado.336

Assim, para Dussel é preciso compreender que

o ato de na ‘palavra’ de Deus, porque Deus a enuncia, é dar-lhe conteúdo histórico no ‘tenho fome!’ do pobre ‘hic et nunc’ histórico, é fazer da fé um ato teologal histórico, concreto, real [...] crer na palavra de Deus através da epifania do pobre, é tomar a dita palavra revelada como luz para interpretar a realidade cotidiana. A fé é um aceitar a palavra e um interpretar a realidade.337

Para ele apenas quem aceita a palavra de Deus por meio da

palavra provocante e crítica do pobre tem as ‘categorias’ interpretativas para desvelar o ‘sentido’ revelado da história codidiana.338 Essa afirmação é fundamental e seletiva, pois é critério indicativo de quem pode operar a escrita da História. Não é qualquer um, mas aquele que é tocado pela palavra que leva ao pobre como matriz hermenêutica, fonte de interpretação, somente ele poderá ter a percepção necessária para escrever sobre a História da Igreja, por estar engajado à causa do pobre. Para Dussel, portanto, a história tem de ser militante, isto é, será fruto da experiência do historiador com seu meio por intermédio de sua vivência com o “Outro” – o pobre, o excluído do sistema – não sendo assim possível ser um “historiador de gabinete”, um mero empilhador ou colecionador de documentos que serão simplesmente analisados e interrogados. Não é possível escrever História, sem vivenciá-la a partir do pobre, sem o que não será possível descobrir o sentido da realidade

336 Segundo a matriz conceptual marxista, a fetichização é a tendência de tomar as relações

sociais como coisas, caracterizando a mercadoria e o processo de troca na concepção capitalista.

337 HG, p. 58. Aspas de Dussel. 338 HG, p. 58. Aspas de Dussel.

que se quer retratar na operação histórica. E isso é possível fazer pela fé, que é para Dussel, o descobrir um ‘novo’ sentido do mundo onde vivemos a partir

da palavra de Deus revelada por meio do pobre.339 Se para os “annalistes” a

História estava ligada às Ciências Sociais, para Dussel a História está ligada à Teologia.

Assim, para Dussel, a História também deve ser operativa, pois quando se vê ou se interpreta a realidade é para promover a sua transformação, a sua modificação, uma vez que, para ele, servir ao pobre é render culto a Deus, é fazer a própria história,340 é fazê-la avançar em direção à parousia.341 Na produção histórica de Dussel, então, o historiador não apenas escreve, mas faz, participa da construção da própria história que lhe é seu objeto de trabalho, e sua participação na construção histórica deve ser coerente com seus princípios fundantes, especialmente com a inclusão do pobre como matriz não apenas da escrita, mas do ato de fazer História. É, portanto, um ato duplo – fazer história e escrever História – que deve ser revestido de coerência entre as matrizes fundantes tanto da escrita, quanto da prática historicizada no quotidiano.342

Em tudo isso é possível entender porque para Dussel a história

não é somente um lugar teológico, mas um ‘objeto’ privilegiado da fé e do pensar teológico. Descobrir o sentido da historia é um momento teológico central.343 Para ele, sem esse participar teológico e da fé não é possível captar diretamente a realidade e o trabalho que certos historiadores conservadores e positivistas fazem sem ter esse fundamento e isso pode ser entendido como ingênuo. Ele fala que a realidade precisa ser entendida como mediada pela

constatação, mediação e recoleção e a formulação definida dos fatos

339 HG, p. 58. Aspas de Dussel.

340 História aqui com “h” minúsculo representando o próprio fato histórico, o processo histórico. 341 Parousia, na teologia cristã se refere ao final dos tempos, à volta de Cristo.

342 Essa percepção é mais tarde aprofundada por Eduardo Hoornaert, em sua vivência

concreta no meio das classes menos privilegiadas em diversos locais do nordeste brasileiro. Ele fala do pobre concreto em vez do pobre conceituado acadêmicamente. Vide HOORNAERT, 1994, p. 21.

históricos, depois será preciso buscar o sentido da realidade por meio de sua

interpretação ou explicação. Ele ilustra esse processo com a seguinte

figura:344

Figura 11 – Da realidade à explicação histórica

Por isso que, para Dussel, não basta considerar documentos, é preciso ir mais longe, mais fundo, para que a história possa ser objeto de escrita, é preciso ir em busca do sentido que está além da realidade e dos fatos. Para que isso possa ser entendido, ele explica que

um fato não é a própria realidade em sua infinita multiplicidade concreta, mas que é a expressão abstrata de um momento da realidade: ‘há uma diocese no Brasil no Século XVI’; isto é um fato, não toda realidade. Que sentido tem apenas uma diocese no Brasil e na América hispânica ter 30 dioceses no mesmo Século? Responder à esta pergunta é descobrir o sentido, explicar a diferença; é interpretar o fato e por meio dele um aspecto da infinita observabilidade da realidade concreta.345

Há nesse processo de análise um método científico, que, para Dussel, foi enunciado desta forma desde o segundo Século do Cristianismo, que faz a mediação na busca do sentido entre a passagem da realidade da práxis à própria práxis explicada teologicamente. Assim, há uma realidade concreta da práxis cristã e a Teologia faz a passagem desta realidade e da fé do próprio teólogo, à práxis como objeto do pensar e a fé, enquanto critério ou matriz epistêmica do próprio pensar, em direção à descoberta do sentido ou à 344 HG. p. 59. 345 HG, p. 59. Itálicos de Dussel. 5. Sentido 2. Constatação, mediação e recoleção 4. Interpretação ou explicação 3. Fatos 1. Realidade

busca da explicação da referida práxis.

Com isso, Dussel, destaca que, na América Latina, há o privilegiamento como instrumento de mediação às ciências sociais, ocorrendo uma mediação sócio-analítica, havendo desta forma uma dupla seqüência da passagem da fé à explicação teológica da seguinte forma:346

Figura 12 – Passagem da fé à explicação teológica

Para Dussel, a Teologia passa a ser um pensar científico da realidade concreta pelas suas mediações sócio-analíticas a partir da luz da fé que conduz à palavra crida do pobre histórico-concreto, tornando-se, assim, uma racionalidade constitutiva de sentido. Nisso tudo não se pode confundir a História da Igreja com a Teologia da História, a não ser que a própria Teologia da História venha a se ocupar em descrever à luz da fé e pelas mediações

sócio-analíticas o sentido da historicidade humana e o sentido de sua finitude concreta neste nível.347

No relacionamento entre a Teologia e a História, Dussel não tem dúvida em afirmar que a História tem não apenas estreita relação com a Teologia, mas é dela parte constitutiva, pois o ato interpretativo da História da

Igreja é um ato teológico e não simplesmente da História profana ou da História

346 HG, p. 59, 60.

347 HG, p. 60. Parêntesis de Dussel.

Princípios de fé

(A)

Matéria pensada pela teologia, conclusões das ciências sociais

(B)

Conclusões do pensar teológico

(C)

Fé cotidiana do crente, do profeta, os princípios ou

marcos teóricos que permitem uma interpretação racional. As conclusões do pensar se constituem numa teologia. No caso de Dussel é a Teologia da Libertação. A matéria pensa são as

conclusões da ciência social, onde ocorre a

mundial (Weltgeschichte), ainda que possa sê-lo.348 Isto é, é possível que até

possa existir uma História da Igreja como parte de uma História elaborada por um não-crente e sem a devida formação teológica, mas será diferente sua interpretação do sentido dos fatos devido ao seu diverso marco teórico adotado.

Apesar de tudo isso, Dussel não deixa de expor o que Max Weber demonstrou sobre a impossibilidade de haver uma “História não-partidária” (“unparteische Historie”), mas confessa que a ele e à sua escola interessa, dentro da Igreja, mostrar a constituição concreta da objetividade histórico-

eclesial a partir de uma teologia comprometida com o pobre, em favor do povo, do oprimido, como aquela bem-aventurança “partidária”: “bem-aventurados os pobres”.349 Assim, entende ele que a ciência histórica

parte de certos princípios a partir dos quais e com os quais estuda certa matéria de sua ciência. Porém a respectiva matéria é transformada, conformada, utilizada de certa maneira: se a constitui a partir de seu sentido. A matéria em termos brutos, o fato, não é propriamente objeto da ciência, mas seu ponto de partida factual: pura matéria sem forma. É necessário dar-lhe forma. Essa formalização do objeto da História é um ato produtivo, constitutivo, até criador. Daí que surgem grandes Histórias e péssimas Histórias. Há relatos que não dizem nada (a matéria bruta da crônica) e outras que fazem brotar o sentido em cada linha.350

Mas também a História poderá ser partidária a depender também do núcleo teológico do historiador, pois não é possível pensar numa produção esterilizada da Teologia, pois que toda produção teológica está condicionada

histórica e socialmente e, de outro lado, uma corrente teológica representa, por si mesma, um fato histórico, com importantes implicações para a Igreja de seu tempo [...] a teologia dominante expressa as vicissitudes do grupo dominante da época e transformar esta concepção implica transformar a ação.351 Não há, portanto, garantia de se conseguir um critério de aferição de que a fundação teológica do historiador seja límpida, mesmo porque sempre será fruto dele

348 HG, p. 60.

349 HG, p. 61. Áspas de Dussel.

350 HG, p. 61, 62. Itálicos e parêntesis de Dussel.

351 MARROQUÍN Z., Enrique. Algunas cuestiones metodológicas para uma Historia de la

mesmo, de sua visão de mundo, de sua formação, de sua “cor” biográfica religiosa. No último capítulo falarei mais sobre isso, quando tivermos de tratar sobre o grau zero do conhecimento.

Se por um lado pode ser admitido que um objeto seja construído metodicamente, mas que não é esta a única forma de sua construção, também é preciso admitir, segundo Dussel, que há uma “subjetividade metódica”, que também tem seu componente psicológico. No caso da História dusseliana, o critério que constitui a objetividade histórico-teológica da História da Igreja é o pobre.

Uma vez mais é possível constatar que a história dusseliana é uma História militante, pois para Dussel a História da Igreja parte da Teologia

e por ela é História escrita por crentes e militantes, porque a militância é o lugar hermenêutico por excelência, [assim esta História] cumprirá uma função essencial no desenvolvimento de nossa teologia latino-americana,352 mesmo porque o fazer História da Igreja está intimamente relacionado com a História da Salvação que se manifesta na teofania, isto é, na revelação histórica do

Deus transcendente, manifestação que comporta, essencialmente, uma chamada, um diálogo, uma missão.353

Concluir que essa íntima ligação da História com a Teologia feita

por Dussel foi aceita sem desacordo é se enganar, pois no trabalho brasileiro houve um ponto de divergência entre Beozzo e Dussel no que dizia respeito a um distanciamento da História em relação à Teologia. Comentando esse assunto, Coutinho354 demonstra que Beozzo, ao se utilizar de modelos de análise – atualmente inaceitáveis para diversos intelectuais – oriundos do marxismo e, de modo especial, da Teoria da Dependência355, se colocava diante do estudo da História da Igreja de maneira bem diversa de Enrique Dussel. Embora concordasse em gênero e grau com seu colega de se escrever uma História “vista de baixo”, pois era gritante o caráter fundamentalmente

352 HG, p. 63. 353 Hip, 1967, p. 20.

354 COUTINHO SANTOS, 1999, s.p. 355 Cf. BEOZZO, 1987.

apologético e triunfalista da História da Igreja praticada nos meios eclesiásticos, defendia um distanciamento da História em relação à Teologia. Para ele,

O trabalho do investigador está sujeito às regras do método histórico, aos avanços ou insuficiências metodológicas e não se nutre simplesmente da fé do historiador. Para o investigador, enquanto investigador, não há como estabelecer para a Igreja um estatuto que ultrapasse o de uma realidade dentro da história, regida por leis, relações e vicissitudes próprias de todas as instituições humanas e de construções sociais, religiosas, econômicas, políticas e ideológicas. Pretender algo diferente é produzir uma confusão de planos que não aporta nada de bom a fé, nem a investigação histórica.

Deve-se manter como rigor a autonomia das ciências sociais e legitimidade de seus métodos de investigação, deixando a crítica interna a tarefa de comprovar ou informar hipóteses e explicações. Pedir à História que proceda com a Igreja de maneira diferente daquela que aplica a outros objetos de investigação, é submeter a ciência-histórica ao arbítrio de outra instância ideológica [...] que precisa provar a legitimidade de sua intervenção e sua competência neste campo especifico que é a História.356

Na realidade na construção histórica dusseliana nem a Teologia, nem a revelação divina são elementos fundantes originais em si, pois precisam da mediação do ferramental sócio-analítico, que funciona como matriz epistêmica controladora como chave de sua hermenêutica. Situação divergente, por exemplo, da hermenêutica histórico-gramatical adotada classicamente pelo Protestantismo histórico, em que se busca a interpretação da palavra de Deus a partir dela mesma, em primeira instância, considerando- se em seguida o contexto, não apenas interno do texto, mas dele externo.

Nem a Teologia, nem a revelação são elementos fundantes originais, pois dependem da cor que lhe são fornecidas pelo enfoque sócio- analítico que já se aproxima destes elementos com um discurso elaborado, seja pelo seu ponto de partida na epiderme social, seja pela sua matriz marxista que avalia a realidade a partir da chave hermenêutica da luta de classes, fazendo com que o teólogo ou o historiador interprete também a realidade por essa “lente” utilizando a Teologia/revelação ou não, tornado-as, portanto, dispensáveis e ressaltando os elementos matriciais de uma mediação sócio-analítica.

356 Cf. BEOZZO, 1985. Grifos meus.

Por outro lado, não se pode aceitar que até a construção teológica ou mesmo a interpretação da revelação sejam realizadas “higienicamente” num ambiente “asséptico” e “esterilizado” de ideologias e influências terceiras, que sempre estarão presentes. A virtude de Dussel é que ele não somente explicitou as tinturas matrizes de sua historiografia, mas desceu a detalhes. Isso, por si, já é um grande passo em busca da cientificidade e do diálogo.