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4.4 Dos Açores para o Novo Mundo – o ritual das festas no Brasil

4.4.1 As festas no Maranhão: São Luís e Alcântara

As Festas nos Açores e no Maranhão mantêm muitos pontos em comum, no que diz respeito principalmente à essência da festa, realizada como pagamento de promessas e concretizada por atos de doação. Esta doação não se restringe aos bens materiais, que por si só são de grande vulto, como alimentos, material de decoração, mas também da doação de si mesmo, na forma de dedicação de tempo e esforço para garantir que a beleza e a importância de cada festa suplantem as anteriores. Além disso, particularmente nos Açores e em Alcântara, lugares que se ressentem da forte tendência migratória, a Festa é um momento de afirmação de identidade com a terra natal, momento de reencontro com parentes e ancestrais, de rememorar histórias vividas em outras festas, de reatar laços e se sentir parte de um todo.

A importância da Festa, nos Açores como no Maranhão, é patente pelo atrativo turístico que representa e, consequentemente, pela importância socioeconômica de que se reveste para as comunidades que a organizam, uma vez que implica na oferta de alimentos, mas provoca grande movimentação de público que consome outros bens, além daqueles oferecidos. Tem ainda grande importância para as comunidades que a realizam, sejam estas entendidas como comunidades que ocupam um mesmo espaço geográfico ou como as que mantêm interesses comuns, como é o caso dos terreiros de mina em São Luís. Esta importância revela-se, também, pela frequência com que a Festa tem sido objeto de estudos etnográficos, antropológicos e sociológicos que resultaram em teses, dissertações e monografias, fontes de pesquisa que possibilitam comparar os termos da festa em momentos e locais diferentes. No entanto, insisto em lembrar que são estudos que apresentam perspectivas, fundamentações e objetivos diferentes, sem preocupação com os aspectos linguísticos.

A festa do Divino Espírito Santo é parte de um conjunto de rituais do catolicismo popular, cuja importância, em termos de participação da comunidade, no Maranhão (Fig. 12), só pode ser comparada à da Festa de São João e ao Carnaval. Realizada em todo o estado com maior ou menor importância, em São Luís e, principalmente, em Alcântara, a festa toma proporções que a destacam das outras comemorações de cunho religioso e popular.

Figura 12 – Mapa do Maranhão

Fonte: http://www.guianet.com.br/ma/mapama.htm

Em 2008, Carvalho afirmava que o Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, órgão da Superintendência de Cultura Popular da Secretaria de Estado da Cultura já tinha

[...] cadastradas 150 festas do Divino do Maranhão, sendo 66 da capital e 84 do interior do Estado, num total de 23 municípios: São Luís, Alcântara, Anajatuba, Bacuntuba, Bequimão, Cajari, Caxias, Cedral, Codó, Humberto de Campos, Icatu, Itapecuru-Mirim, Matinha, Marinzal, Paço do Lumiar, Palmeirândia, Penalva, Pinheiro, São Bento, Santa Helena, São José de Ribamar, Rosário e Viana (2008, p. 6).

Embora em outros lugares do Brasil seja festa de brancos ou festa de quem tem posses, no Maranhão é festa de negros, como afirma e explica Vieira Filho:

A festa do Divino Espírito Santo tem ainda, como antigamente, uma alta significação na vida dos pretos de São Luís e Alcântara [...]. Os devotos do Divino contam-se às centenas e, em sua maioria, descendem dos velhos africanos que vieram para o Brasil nas rotas sinistras do tráfico. Velhas de carapinha de algodão e

rosto pregueado, cafusas esbeltas, esplêndidas vênus hotentotes, negras robustas da robustez dos Minas, mulatas sagicas e lestas, crioulos possantes, vária e profusa multidão que conserva carinhosamente a tradição do Divino ( 1954, p. 3).

Também as caixeiras reafirmam essa condição particular do Divino maranhense: “A coroa do Divino/ Não é de ouro nem de prata/ Quem festeja Espírito Santo/ Não é branco, é mulato”.

Em Alcântara, a festa mobiliza toda a comunidade e transforma o aspecto da cidade, que é decorada para o evento e recebe um fluxo intenso de visitantes, tanto turistas quanto devotos. A comunidade recebe apoio financeiro significativo do governo, por meio da Secretaria de Cultura, o que garante o custeio da festa. Há residências em Alcântara, cujos proprietários residem em outras localidades e que só são utilizadas durante esse período – o que antecede de poucos dias a festa e os dias da festa – pelos proprietários ou cedidas a amigos. A festa exige grande dedicação, de tempo e de recursos financeiros, além de habilidades específicas para os elementos decorativos, em geral cortinas e lanternas de papel de seda e lembrancinhas temáticas em papel, tecido, rendas e brilhos, e para os alimentos típicos, principalmente o doce de espécie e os licores e chocolate quente. Há uma disputa velada para que o doce de cada grupo familiar ou ligado a um dos mordomos ou ao imperador/ à imperatriz seja o melhor de todos, o mais saboroso e o mais farto.

Em São Luís e nos municípios vizinhos, a festa está associada aos terreiros de tambor-de-mina, como esclarece Ferretti:

Quase todos os terreiros de mina organizam, uma vez por ano, uma festa do Divino em homenagem à entidade mais significativa para a comunidade religiosa[...] Algumas poucas pessoas também organizam a festa em suas casas, em geral pessoas relacionadas com o tambor-de-mina e que, por algum motivo, fazem a festa fora do local de culto, mas sempre em homenagem a entidades cultuadas nos terreiros ( 2005, p. 9).

O pedido de graças e consequente pagamento de promessas, evidenciado nos cânticos das caixeiras, corresponde ao afirmado por Mauss (1981):

[...] neste sistema não somente jurídico e político, mas também econômico e religioso, os clãs, as famílias e os indivíduos ligam-se por meio de prestações e de contraprestações perpétuas e de todos os tipos, comumente empenhados sob forma de dons e serviços, religiosos ou outros; [...] Essas trocas e esses dons de coisas que ligam as pessoas se efetuam a partir de um fundo comum de ideias: a coisa recebida como dom, a coisa recebida em geral compromete, liga mágica, religiosa, moral e juridicamente o doador e o donatário.

Em São Luís, como se disse, a festa é realizada principalmente pelos terreiros de Mina da cidade, também como forma de pagamento de promessas ou como uma festa de obrigação, em atendimento a determinação ou pedido de um vodum. Como afirma Ferretti:

Constitui-se em momento de lazer religioso, de divertimento, de devoção e ritual de pagamento de promessas. Através dele o povo da mina se orgulha e demonstra sua capacidade de organizar uma festa rica e bonita. [...] Representa uma esperança de prosperidade, de fartura, de abundância de alimentos. Afirma a alegria, o agradecimento e a solidariedade comunitária. Expressa capacidade de organização, de liderança, de criatividade em torno de aspirações populares. (1995, p. 187).

A influência africana no ritual da festa – tanto em São Luís como em Alcântara - é facilmente perceptível, e está de acordo com a predominância da população africana no Estado. É nmarcante a presença do ritmo dos toques das caixas, instrumentos de percussão que, acompanhando os cânticos entoados pelas caixeiras, conduzem o ritual. Segundo Gouveia “na maioria dessas casas ela [a festa do Divino] é considerada a maior e mais importante do calendário e dura de 10 a 15 dias” (1997, p. 40).

A Festa do Divino chegou ao Maranhão, provavelmente, trazida por emigrantes açorianos. A imigração em grupos numerosos teve início no decorrer do século XVII, quando um grupo de duzentos “casais” – que devem ser entendidos como famílias – veio para o Maranhão, em decorrência de fatores como dificuldades de sobrevivência em seus lugares de origem e da necessidade de incremento das atividades agrícolas no estado brasileiro. O historiador e pesquisador Carlos de Lima comenta:

É lícito supor que o culto ao Divino Espírito Santo tenha sido trazido ao Maranhão pelos primeiros açorianos que aqui chegaram, em duas levas: a primeira em 1620, trazida por Manuel Correa de Melo, por conta de Jorge de Lemos Bittencourt, e a segunda por Antônio Ferreira Bittencourt, no ano seguinte, partes da imigração de 200 casais que vieram construir dois engenhos de açúcar, plano do provedor-mor do Brasil Antônio Muniz Barreiros. (LIMA, 2008).

A presença da Festa em outros lugares do Brasil também está relacionada à vinda de grupos de açorianos, como é o caso no estado de Santa Catarina. No Maranhão, outras levas de açorianos continuaram a chegar até o séc. XIX.