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Identidade, língua, marcas culturais: são três fantasmas partilhando a mesma cama. E quando se entra no quarto, acreditando surpreendê-los em flagrante delito eis que descobrimos que não há cama, nem quarto, nem amantes.

Mia Couto

As estreitas relações entre língua e cultura, como fatores determinantes na construção de uma identidade, são constatações a todo o momento repetidas e têm sido objeto de estudos permanentes, que reafirmam a importância inquestionável desta relação. Fernão de Oliveira, em 1536, já afirmava: “cada um fala como quem é” (1933, p. 17).

Sem ser linguista, mas com a percepção que caracteriza uma alma de poeta, Mia Couto, em epígrafe deste capítulo, ressalta a natureza por vezes abstrata dos conceitos, como fantasmas de contornos indefinidos, bem como menciona metaforicamente – ao constatar a inexistência de cama, quarto e amantes – as dificuldades para definir os limites, os espaços, as interseções entre eles.

Cultura é entendida, neste trabalho, como a define Santos (2003, p. 50): “[...] dimensão da sociedade que inclui todo o conhecimento num sentido ampliado e todas as maneiras como o conhecimento é expresso”. O mesmo autor apresenta duas concepções não excludentes, a primeira referindo-se a tudo o que caracteriza a existência social de um povo ou comunidade e a segunda ao conhecimento, ideias e crenças e seu modo de existência na vida social (SANTOS, 2003, p. 24). É principalmente esta segunda concepção a tomada por este trabalho que busca identificar, na terminologia de uma festa comum a várias comunidades, distribuídas em dois grandes grupos – o de Portugal e o do Maranhão – o que as caracteriza e identifica ou diferencia.

A natureza imbricada das relações entre língua, cultura e identidade é o que comenta Câmara Júnior ao afirmar que

1. A língua é parte da cultura. 2. É, porém, parte autônoma, que se opõe ao resto da cultura. 3. Explica-se até certo ponto pela cultura e até certo ponto explica a cultura. 4. Tem não obstante uma individualidade própria, que deve ser estudada em si. 5. Apresenta um progresso que é seu reajustamento incessante com a cultura. 6. É uma estrutura cultural modelo, que nos permite ver a estrutura menos nítida, imanente em outros aspectos da cultura. (2004, p. 293).

Lévi-Strauss comenta as complexas relações entre língua e cultura, ampliando-as e lembrando que é possível, também,

[...] tratar a linguagem como um produto da cultura: uma língua, em uso numa sociedade, reflete a cultura geral de uma população. Mas num outro sentido, a linguagem é parte da cultura: constitui um de seus elementos, dentre outros. Recordemos Tylor, para quem a cultura é um conjunto complexo que compreende as ferramentas, as instituições, as crenças, os costumes e também, bem entendido, a língua. (1975, p. 86).

Na verdade, não há como deixar de considerar que a língua, como fenômeno social que vive e se desenvolve como uma elaboração coletiva (LÉVI-STRAUSS, 1975, p.73), não só faz parte da cultura como é o meio que nos permite a apropriação da própria cultura, seu conhecimento, preservação e divulgação. “Língua, sociedade e cultura são indissociáveis, interagem continuamente, constituem, na verdade, um único processo complexo” (BARBOSA, 1981, p. 158).

Pagliaro afirma o mesmo, quando associa a unidade da língua à consciência de pertencimento a uma nação:

Todas as solidariedades sociais e históricas que se reúnem no indivíduo: a família, a cidade, a espécie de trabalho, a região ou o país, dão lugar a solidariedades expressivas de índole particular, que vão de algumas características idiomáticas à gíria, ao dialeto e à língua [...] a existência de uma língua comum, capaz de se elevar acima de todos os particularismos dialetais, é indício certo de que surgiu aquela consciência unitária, aquele sentimento e desejo de participar num destino comum que, de um povo, faz uma nação (1983, p. 135).

Lévi-Strauss (1975) acrescenta que, além de produto e parte da cultura, a língua é condição da cultura por motivo duplo, diacrônico: por um lado, é pela língua que o indivíduo, desde a infância, adquire a cultura do grupo a que pertence; por outro, a língua e a cultura se assemelham na arquitetura, já que se constroem a partir de relações lógicas de correlação e oposição, além de compartilharem uma evolução paralela de vários milênios.

Dessa forma, afirma-se a legitimidade das variedades da língua e a “estrita interdependência entre variedade cultural e variedade linguística”, e justifica-se assim que “territórios com visíveis diferenças geográficas, étnicas, históricas e sócio-culturais”, como são Portugal e Brasil, apresentem diversidade linguística “sobretudo naqueles aspectos mais

acidentais, que não afetam propriamente o cerne de sua identidade como sistema único” (ANTUNES, 2007, p. 96), materializando-se esta ideia no foco deste trabalho, a terminologia da festa do Senhor Espírito Santo português ou Divino Espírito Santo maranhense.

E retomo assim a circularidade dos conceitos, voltando à questão da identidade, evidenciada pela cultura. E é pela língua que esse sentimento se expressa. Segundo a mesma autora: “[...] nossa língua nos deixa ver de onde somos. De certa forma, ela nos apresenta aos outros. Mostra a que grupo pertencemos. É uma espécie de atestado de nossas identidades” (ANTUNES, 2007, p. 96).

Estabelecido o que se entende como cultura e identidade, justifica-se a intenção deste trabalho, que trata exatamente de como a língua, usada em manifestações culturais basicamente idênticas, é o fator determinante para fazer dessas manifestações culturais aspectos diversificados, originais e reveladores da identidade das comunidades que a realizam. A fé é a mesma, como também o é a entidade cultuada, a festa tem etapas, personagens e outros elementos comuns, mas são evidentes, em cada festa, as marcas identitárias, o que se usa designar atualmente como açorianidade e maranhensidade. Estas marcas são mais evidentes na forma como são designados esses mesmos personagens, etapas, entidades, ou seja, é a língua o fator mais determinante na afirmação dessa diversidade cultural e identitária, apesar da unidade de uma mesma festa.

Como afirma Antunes:

É nesse âmbito que podemos surpreender as raízes do processo de construção e expressão de nossa identidade ou, melhor dizendo, de nossa pluralidade de identidades. É nesse âmbito que podemos ainda experimentar o sentimento de partilhamento, de pertença, de ser gente de algum lugar, de ser pessoa que faz parte de um determinado grupo. Quer dizer, temos território; não somos sem pátria. Recobramos uma identidade (2007, p. 96).

Inicialmente, considerando que para este trabalho foram utilizados, como material para constituição do corpus, documentos escritos – livros, revistas, material de propaganda –, muitos deles, no entanto, transcrição da fala dos participantes ou estudiosos, é importante estabelecer desde logo a diferença entre linguagem, língua e fala, entendidas neste trabalho a linguagem como a capacidade que o homem tem de emitir signos verbais duplamente articulados, a língua como código, sistema, fenômeno social de caráter coletivo e que presume uma relativa estabilidade e a fala como codificação dessa linguagem com um caráter de fenômeno individual e essencialmente dinâmico. Em cada um desses conceitos repete-se um aspecto que não pode ser desconsiderado, o aspecto social.

Língua e sociedade não se concebem sem interrelação, uma vez que dela depende a comunicação. A língua é um sistema abstrato de signos de oposição funcional e social que serve de instrumento de comunicação, suporte de pensamento e meio de expressão. A fala é a concretização da língua, admitindo na sua realização a variação, seja ela individual – os idioletos – ou regional – os dialetos - e múltiplas facetas: diacrônicas, diafásicas, diastráticas, diageracionais (ARAGÃO, 1990 apud COSTA, 2004, p. 21).

Essa dinamicidade da linguagem caracteriza a língua viva, como afirma Bechara: Uma língua viva não está feita, isto é, não só estrutura seus atos por modelos precedentes, mas faz-se e refaz-se constantemente, encerra formas feitas e tem potencialidade para criar formas novas, e está sempre a serviço das necessidades expressivas de qualquer falante (2000, p. 43).

Para Vilela (2002), a língua, criação coletiva, é ao mesmo tempo produto e veículo da cultura de um povo, representando a sua forma original e própria de ver o mundo e possibilitando-lhe transmitir essa visão da realidade. “A língua é a mediadora entre a identidade de uma cultura e a sua alteridade. Pela sua própria natureza a língua é idêntica a todas as línguas e é diferente de todas as outras línguas” (VILELA, 2002, p. 372).

Ou como afirma Bally, utilizando uma imagem particularmente bem sucedida: Assim cada língua, por seu sistema de conceitos e de relações entre os conceitos, recobre o mundo real com uma espécie de manto caprichosamente quadriculado, que vela os contornos dos objetos mais sensíveis, até o ponto que não somente cada língua deforma de uma maneira diferente a realidade percebida se não nos obriga a perceber essa realidade por meio de seu prisma deformador (1935, p. 204-205 apud CARDOSO, 2004, p.10).1

As peculiaridades deste trabalho exigiram que sua fundamentação se ancorasse em duas vertentes dos estudos linguísticos. Para a constituição do corpus, sua identificação e classificação buscamos apoio na Lexicologia e suas vertentes – a Terminologia e, principalmente a Socioterminologia – já que o estudo comparativo se dá no nível do léxico específico da festa, ou melhor dizendo, na sua terminologia. Mais exatamente, por se tratar do estudo da variação terminológica decorrente dos diferentes espaços geográficos e agentes sociais, tendo como foco as variantes regionais de cada termo pertencente ao universo vocabular da festa, mas levando em conta as variantes em desuso ou recentemente incorporadas a esse universo.

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Así cada lengua, por su sistema de conceptos y relaciones entre los conceptos, recubre el mundo real con una especie de manto caprichosamente cuadriculado, que nos vela los contornos de los objetos más sensibles, hasta al punto que no solamente cada lengua deforma de una manera diferente la realidad percibida, sino que nos obliga a percibir esa realidad a través de su prisma deformador. (BALLY, 1935, p. 204-205).