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Pensando na amplitude do termo aprendizagem e na concepção de que o sujeito aprende a todo momento, é possível concebê-la tanto nos espaços formais escolares quanto em ambientes familiares, com colegas etc. Nesse sentido, cada aprendizagem apresenta processos de construção e de relações com o saber diferentes.

Charlot (2000) entende que as relações com o saber podem ser definidas sob três dimensões: epistêmica, de identidade e social. Segundo o autor (2000), aprender está numa dimensão mais abrangente que o saber, uma vez aprender não significa adquirir saber, mas apreender as figuras do saber, as quais se referem a todos os tipos e natureza de atividades, cada uma com processos de aprendizagens próprios.

Dado esse cenário, o autor apresenta pressupostos teóricos denominados de figuras do aprender, explicitadas no diagrama:

Figura 5 - Figuras do aprender

Fonte: elaborada pela autora.

Com base nesse entendimento, é possível questionar: afinal, o que é o aprender?

Consoante às explicações de Charlot, aprender é uma forma de o sujeito apropriar-se do mundo, de se relacionar com o aprender, o que, segundo o autor, configura-se como uma relação epistêmica. Assim, o teórico (2000, p. 67, grifo do autor) afirma que aprender “(...) é exercer uma atividade em situação: em um local, em um momento da sua história e em condições de tempo diversas, com a ajuda de pessoas que ajudam a aprender.”. Por certo, as figuras do aprender expressam as diferentes formas de relação do sujeito com os saberes, considerando suas histórias de vida, suas necessidades, intenções, as quais sempre se realizam circunscritas em determinados tempos e espaço.

As figuras do aprender revelam diferentes relações epistêmicas com o saber. Ou seja, aprender, sob a perspectiva epistêmica, significa apropriar-se de um saber materializado em livros, em escolas, professores. É apropriar-se de saberes-objetos, de conteúdos intelectuais dos quais o sujeito não possui. O sujeito aprende também ao apropriar-se de um objeto virtual presente em objetos reais, numa relação com um saber-objeto, que se enuncia por meio da linguagem, especialmente, na modalidade escrita. Penso que essa relação corresponde ao

Objetos-saberes

Objetos nos quais o saber está incorporado (livro, monumentos de arte, programas culturais etc.).

Objetos que dependem do

uso para serem

aprendidos, desde os mais

simples aos mais

complexas (pentear o cabelo, mexer no celular, andar de bicicleta etc.).

Ações no mundo

Atividades a serem desenvolvidas, de diferente natureza: jogar, correr etc.

Dispositivos relacionais

Formas de apropriação: agradecer, iniciar uma relação de amor ou de amizade.

campo conceitual, no qual posso falar sobre algo, sem precisar passar pela vivência do processo.

Aprender pode ser entendido como dominar, de forma pertinente e eficaz, uma determinada atividade. Nessa relação epistêmica há “(...) um Eu que é corpo, percepções, sistema de atos”, engajado no mundo e na situação. (CHARLOT, 2000, p. 69). Dito de outro modo, a aprendizagem está inscrita no próprio corpo, e não só na apropriação de enunciado, por exemplo, aprender a escrita não é o mesmo que aprender a escrever. Para escrever, de modo pertinente, não basta aprender os enunciados que tratam sobre a escrita, mas sim exercitar atividades de produção nas mais diferentes situações e complexidades.

Ademais, aprender é ainda dominar uma relação, no campo da intersubjetividade, seja em relação consigo, seja em relação com o outro e vice- versa, de modo a exercer “um certo controle de seu desenvolvimento pessoal, construir de maneira reflexiva uma imagem de si mesmo”. (CHARLOT, 2000, p.70). Essa aprendizagem efetiva-se em situação e em uso, ou seja, nas atitudes demonstradas por sujeito. Nesse sentido, a relação com o saber pressupõe uma relação de identidade, que considera a história do sujeito, suas vivências, suas relações consigo e com o outro, que pode estar “fisicamente presente em meu mundo, mas também esse outro virtual que cada um leva dentro de si como interlocutor”. (CHARLOT, 2000, p.72).

Ao entender que o sujeito só existe em um mundo e em relação com o outro, a relação com o saber constitui-se, de modo interdependente, aos processos epistêmico, identitário e social, por considerar as histórias singulares e sociais dos indivíduos e não apenas suas posições. Eis as relações propostas por Charlot (2000):

Figura 6 - Relação com o saber

Fonte: elaborada pela autora

Sob esse ponto de vista, Charlot conduz ao entendimento de que a aprendizagem é um processo complexo e não se restringe à aprendizagem de conteúdos intelectuais. É estabelecer relações com o saber, que se desmembram na relação do sujeito consigo, com os outros e com o mundo. De acordo com o autor (2000), aprender pressupõe ter atitudes solidárias, ser responsável, respeitar pessoas, ou seja, aprender representa tornar-se um ser humano melhor. Após uma análise dos aspectos fundantes da relação com o saber, em que explicitei aportes que constituem a teoria, finalizo esta seção de escrita, apresentando, na sequência, uma articulação de saberes, que, interligados, expressam a síntese das relações com o saber, conforme o entendimento desta pesquisadora.

Figura 7 - Movimento das relações com o saber

Fonte: elaborada pela autora

Filiado ao entendimento da relação com o saber ao desta pesquisa, em que busco compreender a relação dos docentes de Língua Portuguesa com o referencial curricular organizado pela RME, deslocando percepções para o processo de ensinar e suas subjetividades, prossigo, apresentando considerações acerca dessa teoria, na intenção de aproximá-la ao objeto de estudo investigado.

Com o espaço

3 REFERENCIAIS DA EDUCAÇÃO: UMA LEITURA SOBRE A RELAÇÃO DO DOCENTE COM O SABER

A questão é compreender, portanto, como se passa do desejo de saber (como busca de gozo) à vontade de saber, ao desejo de aprender, e, além disso, ao desejo de aprender e saber isso ou aquilo.

(CHARLOT, 2005, p. 37).

Ao mergulhar, com mais complexidade, nos pressupostos que fundamentam a relação com o saber, percebo o diálogo teórico-metodológico entre esta pesquisa e a base conceitual que a sustenta, especialmente no que tange às noções de desejo, mobilização, sentido e relação com o saber.

Esclareço que esses conceitos representam a tônica desta investigação, cujo propósito maior é compreender a relação do docente com o saber, mais especificamente com o documento curricular da RME de Caxias do Sul e com o processo de ensinar, sem desconsiderar as relações que o docente estabelece consigo, com os outros e com o mundo. Nesse sentido, prossigo tecendo considerações sobre a teoria desenvolvida por Bernard Charlot e sua equipe de pesquisa, articulando-a ao objeto deste estudo.

O documento curricular referido é fruto de uma construção coletiva dos professores da RME, realizada nos anos de 2009 e 2010. Desde sua implementação, no ano de 2010, esse material encontra-se em vigência nas 81 escolas municipais, configurando-se como um registro oficial que orienta o planejamento do professor.

Em análise ao material ora proposto, constato que a estrutura curricular do documento explicita as aprendizagens previstas, a avaliação, os conteúdos, com base no desenvolvimento de competências e habilidades, na formação de conceitos, na constituição de valores e na adoção de atitudes. O documento tem o objetivo dialogar com concepções epistemológicas e pedagógicas, de modo a organizar o currículo escolar, bem como orientar os planejamentos de ensino do professor e as práticas de sala de aula.

Sendo assim, o caderno pedagógico em questão não apresenta apenas conteúdos elencados, mas um conjunto de princípios que se referem ao ensino e

à aprendizagem de saberes historicamente construídos, que podem ser entendidos como patrimônio da humanidade.

Ao trazer para o debate a relação com o saber, meu olhar desloca-se para o docente, concebido como um sujeito singular e social, circunscrito em um contexto histórico, cultural, em um determinado espaço-tempo. Na concepção de Charlot,

[...] o docente é, ao mesmo tempo, um sujeito (com suas características pessoais), um representante da instituição escolar (com direitos e deveres) e um adulto encarregado de transmitir o patrimônio humano às jovens gerações (o que é uma função antropológica). (CHARLOT, 2005, p. 77).

Destarte, o docente ocupa uma posição social e escolar de um sujeito aprendiz, em permanente formação, mas também de alguém que ensina saberes do patrimônio humano. Na condição de aprendiz, o professor ensina e aprende, como afirma Freire (1996, p. 23), “Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender.”

Ainda, consoante o autor (1996), ensinar ultrapassa o tratamento de conteúdos transferidos, fato esse que pressupõe a presença de professores questionadores, curiosos e humildes. No que concerne à ação de ensinar, esclarece Charlot,

É, por meio dos saberes, humanizar, socializar, ajudar um sujeito singular a acontecer. É ser portador de uma certa parte do patrimônio humano. É ser, você mesmo, um exemplar do que se busca fazer acontecer: um homem (ou uma mulher) que ocupa uma posição social, que existe na forma de um sujeito singular. Ensinar é preencher uma função antropológica. (CHARLOT, 2005, p. 85).

Dado esse entendimento, para Charlot (2005, p. 76), não é o professor quem produz o saber no aluno; a esse cabe planejar e oportunizar situações de aprendizagem para que este se envolva em atividades intelectuais.

Ao mesmo tempo que os professores buscam relações com o ensino, por meio de conteúdos ou de informações, também evocam saberes que se relacionam consigo, com os outros e com o mundo. Para Charlot (2005, p. 31), uma informação passa a ser saber “quando estabelece um sentido de relação com o mundo, de relação com os outros, de relação consigo mesmo...”.

O saber do docente constrói-se nas relações com o ensino de objeto- saberes, com a realização de práticas, com as experiências e vivências pessoais e profissionais, com as interpretações, sentimentos e trajetórias de vida.

Concebendo o desejo como o eixo que propulsiona o sujeito a mobilizar-se para alguma atividade, interessa-me compreender se há, por parte dos professores, desejo de saber e mobilização para o uso efetivo das orientações curriculares previstas nos Referenciais da Educação da RME, ou se essas apenas são reproduzidas e entregues ao coordenador pedagógico13, para fins de cumprimento legal e burocrático. Charlot (2005, p.76) sinaliza que a “aprendizagem só é possível se for imbuída do desejo (consciente ou inconsciente) e se houver um envolvimento daquele que aprende.”

Isso posto, entendo que foi na posição social de coordenadora pedagógica que pude perceber singelas contradições na relação dos docentes com o saber curricular. Contradições essas que aguçaram minha curiosidade em indagar se a participação e o envolvimento dos professores na construção do documento curricular interferem ou não na relação do docente com o saber, levando-me a refletir sobre a mobilização dos professores referente à existência de um documento norteador dos saberes curriculares, reconhecendo suas percepções no que tange aos sentidos atribuídos a esse material pedagógico.

Dada a dimensão que abarca a relação com o saber, inquieta-me ainda ir além do saber teórico concretizado nos Referenciais da Educação, para compreender a relações do docente com o ensinar, com a educação, com a formação continuada, com as práticas de sala de aula providas de sentido, com as atitudes relacionais, enfim, relações com o mundo, com os outros e com o próprio docente.

De fato, muitos professores não participaram do debate curricular e da construção dos Referenciais da Educação da RME, especialmente os que ingressaram nas escolas municipais após os anos de 2009 e 2010. Esse diagnóstico levou-me a conceber que esses profissionais não vivenciaram o processo histórico, social e pedagógico, por conseguinte, a relação com o documento é diferente daqueles que participaram, muito embora eu reconheça

13 Considero oportuno esclarecer que as escolas municipais de Caxias do Sul contam com a

presença de um coordenador pedagógico que, entre muitas atribuições, tem o papel de acompanhar e auxiliar o professor na elaboração dos Planos de Trabalho, bem como na transposição didática das atividades curriculares previstas nos documentos.

que toda relação com o saber é diferente em cada sujeito. De igual maneira, mesmo os professores que participaram das discussões e construções curriculares, hoje são outros sujeitos, delineados por experiências e trajetórias inscritas em tempos e espaços diferentes; logo, as relações com os saberes construídos também são outras.

São esses sentidos, são essas relações que me interessam compreender; não com o propósito de categorizar ausências ou de apontar falhas, carências, mas, sob o ponto de vista de uma “leitura em positivo”, que visa a entender o processo de como se constituem as relações dos docentes com os saberes, sejam os sistematizados nos referenciais curriculares, sejam os relacionados às experiências docentes. Dito isso, esclareço que esta pesquisa não tem a intenção de desqualificar ou de julgar o mérito do documento, seja no âmbito de sua composição textual, seja na forma como foi conduzido e construído.

Com base nos postulados de Charlot (2000, 2005), todo sujeito tem um tipo de relação com o saber, em diferentes dimensões. O entendimento dessa concepção levou-me a reformular a construção frasal que, inicialmente, pontuava compreender a relação que os professores têm com o saber, cujo enunciado passou a ser redigido com o propósito de compreender a relação dos professores com o saber. Consoante o autor,

o sujeito não tem uma relação com o saber, ele é relação com o saber. Estudar a relação com o saber é estudar o próprio sujeito enquanto se constrói por apropriação do mundo - portanto, também como sujeito aprendiz. (CHARLOT, 2005, p. 42, grifos do autor)

Por certo, o eixo desta pesquisa volta-se para o movimento do sujeito, para as narrativas que evocam os sentidos e suas relações com o saber. Diante dessa concepção, seduz-me o fato de interpretar como os professores se relacionam com os documentos curriculares que orientam o ensino e a aprendizagem no cotidiano escolar. Perceber os diferentes sentidos orienta-me a novos entendimentos acerca dessa temática, inclusive ampliando-a para o cenário nacional, no que tange, por exemplo, às discussões sobre a Base Nacional Curricular Comum (BNCC).

A BNCC, homologada em 20 de dezembro de 2017, tem o propósito de servir como referência nacional para a construção ou adequação do currículo e

das propostas pedagógicas de todas as escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental. Nos termos do texto, trata-se de

um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preconiza o Plano Nacional de Educação (MEC, 2017, p. 07).

De modo particular, cogito a possibilidade de conceber os movimentos que resultaram no Referencial da Educação da RME como sendo um embrião local dos estudos sobre a BNCC.

Vinculada à relação com o saber e de modo complementar a esta pesquisa, penso que poderia ser investigada a relação dos docentes com a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), na perspectiva de compreender se existem categorias universais que dialogam com o pensamento do docente em relação aos referenciais curriculares, previstos e implementados nos sistemas escolares, quer no âmbito municipal, quer no nacional. No entanto, isso é objeto de investigação de outro estudo que não este a que me propus para esta pesquisa.

Após explicitar possíveis aproximações entre a teoria da relação com o saber e os Referenciais da Educação da RME, a seguir, sintetizo noções-chave dessa relação por meio do diagrama.

Figura 8 - Relações do docente com o saber

Fonte: elaborada pela autora

RELAÇÃO DO DOCENTE COM O SABER

Ao trazer para a discussão a relação do docente com o saber frente aos documentos que norteiam o currículo dos sistemas escolares, convocam-se professores de Língua Portuguesa que atuam na Educação Básica de escolas públicas a refletirem sobre a mobilização e o sentido acerca de debates curriculares e propostas de construção e implementação de referenciais curriculares.

Assim, dando continuidade ao detalhamento da pesquisa aqui proposta, contextualizo, sob a dimensão do concebido, o processo de construção e implementação dos referenciais curriculares, compreendidos como objeto de estudo desta investigação.

3.1 PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DOS