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Capítulo 2 O mosteiro

5. As funções da consciência

A consciência, com o eu como seu eixo, rege-se como meio para apreender o mundo através de quatro funções primárias: intuição, sensação, sentimento e pensamento. “Las cuatro funciones proporcionan al yo una especie de orientación fundamental dentro del caos de los fenómenos.”236 Todos os indivíduos desenvolvem mais do que uma destas funções, desenvolvendo alguns uma segunda e uma terceira função. O desenvolvimento superior de alguma das funções (chamada função superior) caracteriza o tipo funcional de cada sujeito em particular.237 Por exemplo, se um indivíduo desenvolver a um nível superior a função do sentimento, conduzir-se-á com conhecimento, domínio e segurança no mundo dos seus sentimentos; no caso de um indivíduo que não tiver desenvolvida a mesma função, teria dificuldade em conhecê-los e dilucidá-los. O sentimento, nesse caso em grande medida inconsciente, poderia dominar a vontade ao ser incontrolado e inconsciente, em vez de este ser uma função da personalidade; por outras palavras, a função do sentimento não se relaciona cabalmente com o eu e a vontade, e as suas características não formam parte do que o sujeito associa a si mesmo. A esta função pouco desenvolvida e, em grande medida, inconsciente Jung chamou função infra-valorada.238 Desta forma, existe uma função desenvolvida e uma outra infra-valorada que funcionam como opostos. A teoria junguiana está condicionada permanentemente pelo princípio dos opostos. O princípio de enantiodromia (enantios=oposto, dromos=percurso), enunciado

236 Marie-Louise von Franz, C. G. Jung... op. cit., p. 44. 237 Cf. Calvin Hall, Teoria analítica… op. cit., pp. 29-30. 238 Ibid., p. 45.

por Heráclito, expõe que todo o pólo encerra o seu contrário, o direito o esquerdo, a luz a escuridão, etc. Heráclito diz: “El fuego vive de la muerte del aire, y el aire de la muerte del fuego, el agua vive de la muerte de la tierra, y la tierra de la muerte del agua”.239

Jung explica que a psique se desenvolve neste jogo de oposições; por exemplo, a consciência e o inconsciente complementam-se mutuamente, autorregulando-se. A enantiodromia no plano psíquico refere-se à aparição do oposto inconsciente no percurso do tempo.240

Este fenómeno característico ocurre virtualmente siempre que una tendencia extrema, unilateral, domina la vida consciente; andando el tiempo, se construye una contraposición igualmente poderosa que al principio inhibe la actuación consciente y que luego conquista el control consciente.241

Neste estudo resumiremos a particularidade de cada uma destas funções. O pensamento consiste em conectar as ideias entre si e conhecer o sentido ou finalidade das coisas, ou seja, com o pensamento “formamos conceitos.”242 O sentimento avalia, aceita ou rejeita “sobre la base de si la idea despierta sentimientos agradables o desagradables”.243 A sensação compreende as “experiencias conscientes producidas por los órganos de los sentidos.”244 Finalmente, a intuição “se refiere a las posibilidades escondidas de una situación. Es una ‘percepción interna’, muchas veces inconsciente, que da cuenta de las posibilidades que se encuentran en las cosas.”245

Como já se disse, o âmbito do desconhecido é infinitamente superior ao da consciência, pelo que, em grande medida, o ego e a consciência estão condicionados aos embates da parte inconsciente da psique. A vontade, perante estes, torna-se um frágil contendente, e, na medida em que os desejos conscientes são contrários aos conteúdos inconscientes – situação usual em virtude do desconhecimento e da pouca importância que se dá à subjectividade e ao inconsciente –, estes impõem-se à vontade como actos irracionais, em estados de ânimo ou pela acção dos complexos. Sob a pressão destes últimos, o sujeito pode inclusivamente agir em total discordância com a sua pretensão, ocasionando, consequentemente, uma forte dissociação psíquica, como a verificada nos

239 Heráclito, apud Rodolfo Mondolfo, Heráclito. Textos y problemas de su interpretación, México, D.F., Siglo XXI Editores, 2004, p. 77.

240 Cf. Fabián Flaiszman, La flauta mágica… op. cit., p. 27. 241 Daryl Sharp, op. cit., p. 65.

242 E. A. Bennet, op. cit., p. 47. 243 Calvin Hall, op. cit., p. 106. 244 Loc cit.

245 J. P. de Castro Reyes, Introducción a la psicología de Carl Jung, Santiago de Chile, Ediciones Universidad Católica de Chile, 1993, p. 33.

casos de desdobramento da personalidade, nos quais o indivíduo dividido não é mais dono de si próprio e é, pelo contrário, dominado por uma instância irracional que o confronta e o cinde.

6. D. Sebastião, o duplo e o medo

O Medo, último capítulo do romance, é também a escrita sobre D. Sebastião em que Belchior se encontrava a trabalhar antes da sua chegada a São Salvador. Esta escrita funciona como uma espécie de diário, no qual, a par da reconstrução da figura de D. Sebastião nas circunstâncias familiares e vitais que forjaram a sua personalidade, reúne digressões autobiográficas. Em determinada altura dissolvem-se as fronteiras entre a digressão e o estudo, e entramos num processo de assimilação por parte de Belchior do mito sebástico, no qual este acaba por funcionar como transmissor do carácter mitológico e divino do rei. Assim, deixa de parte sisudas análises psicológicas sobre a personagem histórica para concluir com as sentidas e laudatórias palavras de Gracian sobre o rei. Isto revela que a anterior inclinação hiper-racional de Belchior é abandonada. De que outra forma se pode explicar a dramática assumpção do carácter semidivino de D. Sebastião ao recordar estas palavras? Ao assumir esta posição semi-religiosa, em franco contraste com a racionalidade assumida ao longo da sua vida, perde-se o próprio carácter de Belchior. E isso é ainda mais evidente quando nos é revelada a presença do seu duplo fantasmagórico.

O movimento final que assimila Belchior ao mito contrasta com a tendência analítica original de aproximação à figura do rei. Num primeiro momento, a análise parecia uma busca de D. Sebastião para o exorcizar e diluir a sua consistência mitológica, como se de uma mera ilusão insubstancial se tratasse. Assim, o rei era visto ora como uma farsa, um corpo com movimento, mas sem soberania nem cabeça, uma ficção envolvente, ora um autómato que nunca morre porque nunca esteve vivo.246 “Habituaram- se àquele rei de palco que desempenha para eles papéis que provocam o envolvimento e que produzem o efeito de uma arte acabada. Ele não é na realidade um rei: adopta a natureza de um rei, não deixando que isso se pareça completamente à realidade.”247 A gesta sebástica em Alcácer Quibir é entendida como paródia de uma verdadeira busca, e

246 Cf. Agustina Bessa Luís, O mosteiro… op. cit., pp. 251-254. 247 Ibid., p. 251.