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Capítulo 5 A ponte dos suspiros

4. De D Sebastião a Savachão

A personalidade de Savachão é forjada na adversidade, sem privilégios nem falsos brilhos:

““Ficaram lá todos”, disse Savachão. “Até eles.” “Eles quem?”

“Os cavalos. Repara, Telo, como está vazia a estrebaria. Temos agora ali boa palha para dormirmos.”

Telo comoveu-se: “Meu Senhor!”

Savachão enlaçou-o com o braço direito pelos ombros:

“Amigo...” e, continuando a caminhar, acrescentou: “Vou estando habituado, mas quero ainda sepultar-me de vez, quando, daqui a dias, forem minhas solenes exéquias nos Jerónimos””. 512

A intenção é mesmo sepultar-se, para se habituar à vida sem privilégios. Pode então perceber-se que o sacrifício de Savachão é viver uma vida miserável, sem privilégios, mortificando o corpo e, em certo sentido, apagando-se e desaparecendo. A contraposição entre estas duas identidades do rei seria a contraposição entre o rei Sebastião, mimado e privilegiado, e Savachão, habituado a uma vida dura e sem privilégios. Mas ambos continuam na persistência daquilo que é tão necessário a um rei da terra: saber das leis do mundo e dos homens, estar no aqui e no agora. O reino de D. Sebastião era verdadeiramente deste mundo, mas se um vivia com uma “imaginação sem rédea”,513 o outro vivia fora da realidade, retirado do mundo num eremitério, como ele próprio descreve:

Levara uma vida recolhida, de penitência, junto de um velho eremita, numa tebaida do Sinai. Paisagem sem marcas, sem indicadores de procedências, mando riqueza, gruta sem trono fendida na rocha da montanha, mudar árvores e a magra horta na sobrevivência de fonte avara, cascalho estéril só de víboras e lagartos rastejado, céu agreste sem adejo de asas, a solidão perene. Alheado de tudo, pensara poder apagar o passado e abafar o peso da alma, esvaziar a

511 Carl G. Jung, Psicología y religión, Buenos Aires, Editorial Paidos, 1949, p. 50. 512 Fernando Campos, op. cit., p. 52.

memória. O pulsar do nascer e pôr do Sol, da noite e do dia, das horas sem acontecimentos, adormentavam-no, deixou de sentir a meada dos anos que se enfiavam no esquecimento. Não fosse aquele moer escondido que lhe latejava e pungia não sabia onde de si, dir-se-ia que estava morto.514

Como já se disse no início, Savachão responde e preenche o vazio histórico que o seu desaparecimento causou. Pareceria que a construção desta personagem no romance responde à necessidade emocional de uma reparação. Tratar-se-ia de reconstruir um rei muito desejado mesmo antes de nascer – e que desde o início se mostrou imperfeito para o papel histórico que lhe coube – 515 e de criar um duplo renascido, Savachão.

D. Sebastião veio ao mundo já como o grande Desejado “produto de uma aspiração nacional, que nele concretizou a acrisolada esperança, não só de salvaguardar a integridade dos territórios ultramarinos, como de reconduzir os negócios públicos ao período mais alto de seus prestigiosos antecessores...516

Quando o rei D. Sebastião veio ao mundo, já a situação de Portugal era frágil e nele se centravam as angústias de um povo em causa. Nessa altura, o absolutismo real era o modelo de governo dos povos e “dadas as inenarráveis dificuldades por que passava o Reino, todos os olhos da Nação foram postos no ardentemente solicitado sucessor de D. João III, - D. Sebastião, o “Desejado””. 517

Assim, ao jovem rei tudo se perdoa, porque em raras vezes na História, todo o presente e o futuro de um povo se encontram tão indissoluvelmente ligados à existência e destino de um soberano!518

A personalidade de D. Sebastião, inicialmente “com preciosas qualidades”,519 declinara-se num temperamento descontrolado e inconsciente, graças a uma educação cheia de lisonjas e adulações cortesãs. Com uma educação adequada, que não teve,520 D. Sebastião teria conseguido uma personalidade equilibrada digna da sua posição. Miguel D’Antas traça um quadro do que teria sido o rei de Portugal, se este tivesse sido bem encaminhado:

Foi assim que as aptidões guerreiras do príncipe se tornaram fatais para o pais, a sua sede de triunfo transforma-se em loucura, o seu governo cai no arbitrário mais caprichoso, a religião degenera em fanatismo, a firmeza e tenacidade não passaram da mais absurda e deplorável

514 Ibid., p. 73.

515“Quem desaparecera no areal não era um adolescente imaturo, vitima de sonhos mal sonhados. Era um rei frágil de um reino frágil que a sua morte punha à beira da inexistência.” Eduardo Lourenço, Portugal

como destino... op. cit., p.134. 516 Miguel d’Antas, op. cit, p. 10. 517 Ibid., p. 9.

518 Ibid., p. 10.

519 “Possuía elevados sentimentos, firmeza de carácter e ardor de bem fazer.” Ibid., p. 40. 520 Cf. Ibidem.

teimosia e a grande austeridade dos seus costumes torna-se também funesta para Portugal. Adulando-o, com menoscabo pelas mulheres, o que não deixa de ser una cruel aspereza, apenas o incitando à guerra e a ideias quiméricas de glória militar e de conquistas irrealizáveis. O amor poderia ter suavizado o seu carácter e dado outra inclinação ao seu espírito. Em lugar de um monge conquistador, correndo atrás de aventuras insensatas em solo africano teríamos um príncipe amável, um rei casado, que doces laços o teriam retido no seu pais para governar com sabedoria.521

Eis a imagem da personalidade que podia ter sido a do rei com a educação adequada: um rei casado, sereno, equilibrado, qualidades de que D. Sebastiao carecia e que encontramos, por um lado, na personalidade de Savachão e, pelo outro, na de Marco Túlio. Temos, portanto, três identidades diferentes para recriar o rei. Duas delas parecem integradas, a de D. Sebastiao metamorfoseada em Savachão, mas a representada em Marco Tulio, ligada ao mundo material, permanece cindida, num pescador italiano que acaba por morrer.

Os dados referenciais disponíveis e aproximados apontam para D. Sebastião como um rei fisicamente doente, de temperamento impaciente, que rejeita visceralmente as mulheres, de homem de sexualidade dúbia, irreflexivo e teimoso.522 523 Savachão, por outro lado, é descrito como um ser purificado pelos anos de sofrimento, numa elaboração feita a partir do que precisamente não se sabia ser o rei histórico. Na idealizada personalidade deste está implícita a sentença pela qual era conhecido o antigo rei. Porque Savachão não só renasce espiritualizado e exaltado em virtudes, vem também apagar e justificar alguns traços historicamente referenciais como simples más interpretações. Assim, a suposta indiferença pelo sexo oposto cai por terra,524 dando até razões para este mal-entendido: “Sempre tive medo de apanhar alguma doença... o morbo serpentino...”525

521 Ibid., pp. 40-41.

522 Fortunato de Almeida, apud Mário Saraiva, Dom Sebastião na História e na lenda, Lisboa, Universitária Editora, s/a, p. 32.

523 No livro de Mário Saraiva Dom Sebastião na História e na lenda, o autor liberta D. Sebastião de todas as supostas infâmias sobre a sua personalidade e saúde. Uma a uma, tenta derrubar como boatos mal- intencionados a sua suposta misoginia, epilepsia, diabetes e uretrite. Também justifica cada um dos seus actos suspeitos de crítica, explicando a maioria destes como má-fé ou conjecturas sem fundamento. Mas ele próprio se apoia em outros tantos boatos para erradicar as aparentes infâmias contra o rei. Por exemplo, para desculpá-lo de misógino, recorre a lendas e comentários sobre supostas enfatuações com mulheres. “Verídicas ou não, chegam-nos notícias de enlevos, ora por D. Joana de Castro (...), ora por D Juliana de Lencastre (...) e, para que tudo seja lendário em D. Sebastião, por uma linda princesa moura que conhecera em Tânger.” Ibid., p. 32.

524 “Nunca olhara nenhuma mulher. Os padres habituaram-no a desviar os olhos. E tinha poluições nocturnas... Como estava sentindo agrado em ver aquela moça dançar!... Nenhuma das princesas que lhe inculcavam para mulher teria certamente graça daquela rapariga... E pôs-se a pensar que, se rações de estado ou seu desinteresse haviam sido até ali impedimentos a que se casasse, nem que quisesse poderia casar-se com uma moça como aquela em razão de clã e de raça da parte, não de si, mas da família cigana...” Fernando Campos, op. cit., pp. 33-34.

No romance, recria-se inclusivamente o seu primeiro encontro com uma mulher.526 Se, como D. Sebastão, era desmedido nas suas acções,527 na detalhada lembrança que Savachão faz dos seus actos como rei perante o arcebispo Espálato, a lembrança das datas precisas dos acontecimentos relevantes durante o seu reinado, ou outros detalhes da sua vida na corte, perfilam-no, essencialmente, como um monarca cuidadoso, consciente e comedido.528 Este novo rei vem dizer a verdade, pois ao falar em primeira pessoa cria uma verdade feita a partir de dentro, onde a pesquisa histórica só vê vazios ou suposições. Portanto, a personagem de Savachão tenta limar arestas e preencher vazios não só no que se refere à ausência do rei, tanto no laço entre o sacro e profano para a sua gente, como também no que já existia quando era vivo: o de um verdadeiro rei de Portugal. Savachão é o verdadeiro Desejado porque encarna todas as perfeições desejadas num rei redentor. É inclusivamente capaz de produzir amor e devoção incondicional no italiano Marco Túlio, sendo a única justificação para isso o facto, nada trivial, como se tratará mais à frente, de Marco Túlio ser idêntico a ele. Este deixa mulher, filha, pátria e aceita uma terrível e tortuosa morte por amor a esse rei injustiçado. Tal é a dignidade real de Savachão.

Savachão também não se reconhece a si próprio como o antigo rei – “Quem sou eu?”529 A dúvida do próprio ser, assim como a existência de duplos, sugere uma fragilidade na personalidade desdobrada, pois esta tem de ser compensada e cindida perante a impossibilidade de integrar a personalidade dupla. Savachão é um dos duplos que surgem para compensar uma primeira identidade e para a suplantar, de forma a corrigir os danos, sem, por outro lado, conseguir finalmente unificar as identidades do rei.