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Capítulo 2 O mosteiro

7. A rendição

fantasmagórica e sinistra: “uma presença em que o humano fosse um acidente esquecido.” Um ser que viveu há muito tempo e que sintomaticamente faz lembrar a Belche as palavras de Gracian, numa íntima profissão de fé: “Chegou à monarquia consumada o português Sebastião; não encontrou já emprego apropriado o seu generoso espírito; procuro-o impetuoso, de tal modo que, se viesse alguns séculos antes, ele seria outro César, e Lisboa outra Roma. Oh príncipe digno de melhor tempo.”251 Belche é assombrado pela imagem mítica de D. Sebastião, à qual, no final, se entrega como um acólito.

7. A rendição

Belchior, alimentando o mito sebástico obsessiva e repetitivamente – se tivesse sido de outra maneira, para além de iluminismos, de seculares saberes e diáfana inteligência –, repete como eco as palavras através dos tempos: Oh príncipe de melhor tempo! Belchior, que com nítida brutalidade descreve e desmedula em tipologias psicológicas o pai, a mãe, a alma feminina à sua volta, torna-se presa do poder do inconsciente na figura mitológica de D. Sebastião. O “anterior exercício especulativo” que tinha mantido durante a elaboração da obra, a interpretação feita da personalidade de D. Sebastião – fóbica, doentia, imatura –, assim como a pretensão de objectividade ou de veracidade histórica, já não é relevante.252 Eis o poder abrasador do inconsciente. Como numa enantiodromia,253 Belchior transfigura-se de intelectual em adepto. Para Álvaro Manuel Machado, o imaginário de O mosteiro “tende para um acesso ao todo cósmico que, partindo do elemento histórico, isto é, da acumulação de factos que a nível do próprio

251 Ibid., p. 318.

252 Se estas palavras de Gracian são ou não o “que mais se aproximaria do verdadeiro rei deixou de ser importante. Ele irá permanecer encoberto, tal como epíteto sugere, e reinterpretação do passado continuará a fazer-se de acordo com a temporalidade histórica e individual de quem o reinterpretação, o que significa por um lado, o renovar continuo de qualquer visão histórica...” Laura Fernanda Bulger, As máscaras, op.

cit., p. 83. Para nós não só reflecte a impossibilidade de uma única verdade histórica, reflecte a condição

de símbolo de Sebastião e da sua função e produto da psique colectiva e a sua renovação através do indivíduo.

253 Refere-se à aparição do oposto inconsciente através do tempo. Cf. Daryl Sharp, op. cit., p. 64. “Este fenómeno característico suele observarse allí donde en la vida consciente impera una dirección parcial extremada, de modo que con el tiempo llega a constituirse una posición contraria inconsciente que se manifiesta como impedimento del rendimiento consciente y mas tarde como interrupción de la dirección consciente. Claro ejemplo de enantiodromía es la psicología de San Pablo y su conversión al cristianismo, así como la historia de la conversión de Raimundo Lulio, la identificación con Cristo de Nietzsche enfermo, su glorificación de Wagner y su posterior hostilidad contra Wagner, la metamorfosis de Swedenborg de sabio en vidente, etc.” Carl G. Jung, Tipos psicológicos… op. cit., p. 224.

quotidiano constroem aquilo a que se chama história, consagra a História mítica...”254 Consagra, torna sagrada, por outras palavras, mitifica a História ao sobrepor uma à outra: passa da História factual à História mítica, sobrepondo uma à outra.

Pareceria óbvio que a melhor forma de enfrentar o inconsciente, o irracional, fosse através da razão como o seu oposto; mas não acontece assim com o inconsciente. “Só a alma para curar a alma”.255 O processo intelectual é per se teórico e não seria suficiente para enfrentar as experiências numénicas do inconsciente. É precisa a compreensão vivencial e experiencial de enfrentar – e assim dominar – o próprio medo à vida. Não se trata de teorizar sobre a essência do medo em D. Sebastião, visto este como um ente alheio, mas sim de experimentar o próprio medo simbolizado no mito sebástico. Qualquer que seja a perícia racional para desentranhar problemas, o essencial são as qualidades humanas, a própria conquista da alma e da totalidade interior.

Impõe-se, pois, que Belche não só não consegue exorcizar o mito, mas, pelo contrário, assimila-se a ele num processo de identificação:

A certa altura do diário, que corresponde não só a conclusão do romance, como também a conclusão da obra sebástica, dá-se como que a fusão das alteridades, Belchior/Sebastião, diluindo-se o eu-narrador e narrado –visto que a narração analéptica se reporta à sua infância –no ele, ambos objectos de análise durante uma narração altamente emotiva que irá conduzir o protagonista à auto-identificação e ao auto-reconhecimento.256

Para Laura Bulger, este Sebastião dentro de Belchior – a História dentro da história 257 define a personagem como produto, em parte, da crise sócio-histórica e política da sociedade. Para nós, além disso, a interiorização de Sebastião em Belchior, noutras palavras, a presença da figura de D. Sebastião como duplo fantasmal, refere-se à interiorização, ou melhor, ao reconhecimento da realidade interior do mito sebástico como uma problemática do indivíduo, assim como à responsabilidade deste em reconhecê-lo e enfrentá-lo. Alude, portanto, a problemas identitários no processo de desenvolvimento individual, e à incapacidade de os confrontar. Mostra também qual é a saída que o indivíduo escolhe: resolução do dilema da existência individual na identificação com a nacionalidade. Como se verá em capítulos seguintes, a problemática do duplo reporta-se, em primeira instância, a um problema do indivíduo, a uma cisão da

254 Álvaro Manuel Machado, op. cit., p. 133.

255 Marie-Louise von Franz, A individuação nos contos… op. cit., p. 10. 256 Laura Fernanda Bulger, As máscaras… op. cit., p. 80.

personalidade na incapacidade de abranger e assimilar os conteúdos inconscientes expressos no duplo.

O ponto de junção entre Belchior e a figura de D. Sebastião é o medo. Belche, por um lado, mostra uma passividade paralisante, resultado do medo e a cobardia de viver.258 O rei, por seu lado, viveu impulsionado pelo medo; as suas empresas e lutas eram um meio para fugir desse medo. Ambos vivem alienados da vida numa esfera fechada onde coexistem com as suas fobias. D. Sebastião não age em função do mundo que o circunda, mas em função do mundo fechado das suas fobias, no feroz medo de ser e enfrentar o seu papel na história. Por isso, D. Sebastião incorpora em Belchior o medo que o assombra, personificando o próprio problema existencial, o medo de ser e aceitar os desafios da vida.259 Ambos, na clausura da sua própria fóbica realidade, não ouvem a realidade e o argumento do outro, o que finalmente os leva à desgraça e ao fracasso.260 Belche consegue, por meio de julgamentos conclusivos e intelectuais, retirar importância aos outros e ao mundo que o circunda, como faz sobretudo com Josefina, fechando-se nas suas próprias concepções, e desaparecendo assim no anonimato do colectivo.

Para que haja uma confrontação com o seu duplo, o Eu desdobrado deve ter consciência de que a há um alter ego que o usurpa. No caso de Belchior, o verdadeiro conflito encontra-se em Josefina, e o seu duplo representaria a saída para escapar dele. Mas se tivesse existido um momento de confrontação entre D. Sebastião e Belche, e este tivesse tido consciência de que o conflito do mito sebástico era, em princípio, um conflito interior, saberia que a continuação nele do mito era o resultado do seu medo à vida e à experiência fora da fronteira segura da sua realidade, circunscrita aos redutos do passado e a especulação. Ao identificar-se e perpetrar o mito – aceitando como verdadeiras as palavras glorificadoras de Gracian –, Belche fica congelado na involução atemporal, aderindo a um modelo de comportamento colectivo e cultural representado no rei, e abandonando assim a possibilidade de um desenvolvimento que precisamente o diferenciaria como um indivíduo psicológico; quer dizer, um indivíduo que progressivamente desenvolve os diferentes aspectos da sua psique.

258 Cf. Ibid., p. 79.

259 E por isso se procura e encontra “no ser fragmentado que vai reconstruindo, ao mesmo tempo que reflecte sobre afinidades e oposições de toda espécie, desde as físicas às psíquicas e as intelectuais, justificando as semelhanças e as antinomias que se lhe apresentam numa causalidade que tem origem numa memória colectiva inconsciente, que tudo determina.” Ibid., pp. 79-80.

Entendo por individualidade a unicidade e particularidade do indivíduo, em qualquer aspecto psicológico. Individual é tudo o que não é coletivo, quer dizer, o que só corresponde a um e não a um grupo considerável de indivíduos. (...) Exige-se um esforço consciente de diferenciação, de individuação, a fim de tornar consciente a individualidade, ou seja, para desligá-la da identidade com o objeto. A identidade da individualidade com o objeto equivale a sua inconsciência. Ora, se o indivíduo for inconsciente não haverá um indivíduo psicológico, mas, simplesmente, uma psicologia colectiva da consciência. Neste caso, a individualidade inconsciente aparece identificada com o objeto, projetada no objeto. Por conseguinte, o objeto reveste-se de um valor exagerado...261

Belchior escolhe uma identificação quase religiosa, que vai longe de mais como uma figura arquetípica, entra nos esquemas colectivos e não existe mais como indivíduo psicológico.262 Para evoluir na direcção de uma totalidade psicológica e verdadeiramente se manifestar com integridade – assimilar, por exemplo, o seu aspecto de Eros representado na anima – é preciso estar consciente dos perigos da identificação com modelos colectivos de ser. No caso de Belchior, pareceria que o grande problema existencial fosse o facto de ser português. Mas nós acreditamos que a grande tarefa é ser um indivíduo. A identificação, como perda do ser, com uma figura mítica, não é uma opção criativa, mas um meio de fugir do trabalho e da responsabilidade de recuperar o controlo sobre nós próprios como indivíduos, assim como de canalizar os “esquemas procedentes” do inconsciente mediante valores e opções individuais. De facto, a problemática do duplo pode derivar de uma perda do ser pelo domínio de uma personificação desdobrada do inconsciente.

La figura del doble y el desdoblamiento de la personalidad pueden manifestarse también por la excesiva influencia que llegan a ejercer ante nuestra conciencia determinados esquemas procedentes de los arquetipos ancestrales y socioculturales propios del inconsciente colectivo que pueden operar, por ejemplo, bajo el simbolismo del Padre o de la Madre, de la figura idealizada del Maestro o del Guía, o de la imagen seductora de la Mujer fatal. Estas fuerzas arquetípicas de la psique colectiva adoptarán formas y contenidos específicos dentro de nuestra experiencia y de nuestra historia personal, pero el sujeto tendrá que situarse ante ellas con lucidez y distancia para no dejarse anular. Si el sujeto humano no es consciente de las obsesiones o fijaciones excesivas que esas fuerzas generan, actuará sin autonomía personal dejándose arrastrar como si fuera una especie de doble alienado o desquiciado de sí mismo, un «loco». Si, por el contrario, el sujeto llega a percibir con lucidez la fuerza arquetípica a la que ha entregado o puede entregar ciegamente sus energías, y entonces reacciona para no dejarse alienar por ella, ese doble podrá ser asumido en armonía con las aspiraciones personales contribuyendo a madurar y a enriquecer la identidad de la conciencia por la vía de la sublimación.263

261 Carl G. Jung, Tipos psicológicos … op. cit., p. 527.

262 Cf. Marie-Louise von Franz, O feminino nos contos... op. cit., p. 34.

263 Juan Herrero Cecilia, Juan Herrero Cecilia, “Figuras y significaciones del mito del doble en la literatura: teorías explicativas”, in Cédille, revista de estudios franceses, Monografías, 2011, p. 38. cedille.webs.ull.es/M2/02herrero2.pdf (fonte consultada em Dezembro de 2016).

O mito de D. Sebastião pareceria, pois, contrapor-se ao desenvolvimento individual e actuar em seu detrimento. Em Belchior podemos ver que, à medida que o mito se perpetua, o indivíduo se dilui; existe uma rendição do individual como condição da prevalência do outro. A condição é clara quando D. Sebastião é representado como duplo. A coexistência de ambas as identidades seria impossível, pois a tendência seria a prevalência de uma só; essa é a disjunção e o conflito que o duplo expõe. O mito, em princípio, teria de ser fonte referencial para o indivíduo no seu caminho no paradoxal convívio entre o sagrado e o profano, o colectivo e o individual, onde este último, ao realizar a sua realidade psicológica, adquiriria o controlo do equilíbrio. Mas, neste caso, o mito de D. Sebastião parece funcionar como defesa contra o estímulo da vida. A realidade de Belchior é exemplo de uma realidade asfixiante e de repressão vital. Recluso no contexto da casa familiar, encontra uma saída para o seu dilema no esquecimento de si a favor do mito. O presente é de tal modo asfixiante que é preciso encontrar saídas e, assim como tradicionalmente o medo fora exorcizado pelos mitos e por bodes expiatórios, torna-se provável que, numa época em que a realidade se converte no fantasma da realidade, “o que se passa afinal com aquela comunidade a que o mosteiro pertence, o medo passe a ser exorcizado pelo refúgio na História, repositório de fantasmas colocados ao nível dos fantasmas da realidade.”264