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Capítulo 5 A ponte dos suspiros

6. O duplo ou a oportunidade de voltar a ser

O mito do duplo, na sua relação com o enigma da identidade, supera o âmbito puramente literário, entrando também no campo da psicanálise e da filosofia, como se viu. Este reporta-se, essencialmente, à consciência de ser mais, mais do que aquilo que se é agora, neste instante. Ser mais do que o corpo material que perece, mais do que o eu que diz eu. Isto é, o duplo afirma o sentimento de que existe um eu interior desconhecido, em última instância, até para o próprio sujeito. Herrero Cecilia explica:

En efecto, para todo sujeto humano, la realidad más misteriosa es sin duda el enigma de su identidad y el enigma de la relación con el otro, con el cosmos y con el destino de la vida universal. Esto es así porque, desde el dinamismo de su conciencia, cada individuo se siente un «yo» íntimo, separado y distinto. Él es un sujeto perceptor del mundo y del otro, de los otros que están ahí como un «objeto» con el que tiene que establecer relaciones que pueden resultar eufóricas y constructivas o disfóricas y destructivas. Pero ni el mundo ni los otros pueden percibir directamente la conciencia o la interioridad del «yo». Por eso el sujeto humano es, en cierto modo, un extraño para sí mismo y para los otros. Para encauzar su existencia necesita construir y afirmar en cada momento lo que Jung llama el «proceso de individuación» que se debe orientar hacia la búsqueda de la armonía consigo mismo, con los que le rodean y con el cosmos.539

A consciência de ser mais do que um corpo reflecte-se no momento em que o Homem enfrenta a morte; o duplo permeia e respira a ideia da transcendência. A consciência de se ser também um eu separado do corpo vem de um processo com uma longa tradição histórica. O homem das culturas antigas diferenciava com dificuldade a identidade do morto da do seu corpo e, em muitos lugares, continuava a tratar-se o corpo do morto como um ser vivo.540 O costume de alimentar os mortos vem do hábito de tratar o corpo como representante do morto.541 Posteriormente, nas cerimónias fúnebres, começou a representar-se o morto como um ser vivo que usava as suas vestes, quer dizer, “... se dejó de considerar al cuerpo en sí como la personalidad del muerto”.542 Este exemplo mostra como aos poucos se tem separado a identificação primitiva do morto com o seu corpo. Mais tarde, em muitas culturas desenvolvidas, repara-se já numa existência diferenciada

539 J. Herrero Cecilia, op. cit., p. 18.

540 Cf. Marie-Louise von Franz, Sobre los sueños y la muerte, Barcelona, Editorial Kairós, 1992, pp.19-22. Por exemplo, ela escreve: “En muchos lugares, por ejemplo, entre los pueblos indigermanicos, el cuerpo muerto se conservaba en la casa durante un mes o más. (...) En otros pueblos se conservaba el cuerpo en la casa o en una tumba relativamente superficial y cercana hasta su descomposición…”. Ibid., pp. 19-20. 541 “En muchos lugares se introducía en la tumba un tubo a la altura de la cabeza para que el muerto pudiese escribir “de verdad” los víveres líquidos, o también se dejaba un agujero abierto a la altura de la cabeza para que el cuerpo pudiese “respirar”. Ibid., p. 20.

entre o corpo e o morto. Para os antigos egípcios, havia uma parte da alma do morto Ba, ligada à transcendência, ao Tudo,543 enquanto outra parte da alma Ka, duplo da alma vital,544 ficava ligada ao morto.545

O que nos importa reter aqui é a ideia progressiva, que existe desde o homem primitivo até às sociedades mais desenvolvidas, da transcendência do indivíduo através de uma alma desdobrada do corpo no momento da morte e que, assim sendo, o transcende. Estes duplos imortais, alma para a ortodoxia cristã, sobrevivem ao corpo, ligando a identidade do indivíduo a uma realidade transcendente e misteriosa. Este que sou agora tem um duplo que lhe sobrevive para além da morte e que está ligado a uma fonte espiritual sobrenatural.

Assim como no romance de Jean Paul Ritcher Siebenkäs, no qual o protagonista se faz passar por morto para ter a oportunidade de refazer a sua vida como um outro, levando uma vida errante, n’A ponte dos suspiros, D. Sebastião ressurge como um novo Sebastião espiritualizado, modelo de rei, orientando o tema do duplo para a problemática existencial entre matéria e realidade histórica – o rei morto e desaparecido e o espírito, o novo rei idealizado, espiritualizado e depurado de desejos egoístas e infantis.

A obra de Jean Paul viu-se influenciada pelo pensamento da filosofia transcendental de Fichte, a qual surge no contexto do Romantismo alemão que ressaltava o contraste entre os limites do indivíduo e a realidade concreta.546 A filosofia idealista de Fichte

(...) elabora un sistema basado en la oposición entre el Yo Absoluto y el yo finito o relativo. El Yo Absoluto afirma su libertad generando el mundo exterior por oposición a sí mismo, y ese mundo incluye al yo empírico o relativo. Éste es un yo desdoblado que debe oponerse también a sí mismo para afirmarse como yo real representándose el mundo frente a él. El Yo Absoluto es el yo deseado por el yo relativo que se encuentra escindido y debe afirmarse enfrentándose a la sensación de vacío y a la nada. Para eso tiene que convertirse en «otro», identificarse con un «doble» que sea el reflejo o la imagen en negativo de alguna de sus múltiples aspiraciones.547

Assim, temos um eu ideal e absoluto, criado em oposição ao eu finito, que, cindido, aspira ao absoluto e à auto-afirmação como o eu real. O rei como fénix ressurgida das cinzas

543 Cf. Ibid., p. 22. 544 Cf. Ibidem.

545 “En otras culturas , las diferentes “almas” se entienden más como las diversas tendencias existentes en un mismo ser. En el hinduismo, por ejemplo, el hombre posee un alma divina y eterna, Atman, que está ligada a su Ahamkara = yo-cotidiano y que juntó con Jivan constituye cada persona, que pasa por muchas reencarnaciones, en las cuales el Ahamkara cambia una y otra vez de acuerdo con las acciones y pensamientos precedentes.” Ibid., pp. 22-23.

546 Cf. Juan Herrero Cecilia, op. cit., p. 22. O dualismo filosófico desde Platão tem influenciado o pensamento ocidental, limitando o mundo entre o ideal (ideias primordiais) e o mundo real material, reflexo imperfeito do primeiro. Cf. Ibid., p. 20.

não seria mais que a versão do eu absoluto e superior do rei desaparecido, um retrato oposto ao antigo que luta pela integridade da sua personalidade assentando no real concreto. A saber, ressurge como o autêntico rei, assimilando nele a sua antiga personalidade melhorada pelo sofrimento, a devoção, a culpa e o afastamento dos prazeres do mundo (um eremita no monte Sinai), a par de um Marco Túlio, o sósia que, como veremos mais à frente, representaria a sua fracção de homem comum.

Portanto, A ponte dos suspiros descreveria as dificuldades na busca da integridade do rei e do reconhecimento concreto no mundo como personalidade integrada.

Así, para algunos autores la creación de un doble es una verdadera liberación, un gran acto de libertad. Es la posibilidad de regresar a la infancia, a la adolescencia o a la juventud, como en los textos de Borges, de Cortázar, de Papini. Es la posibilidad de vivir otra vida, como en la novela de Max Frisch Yo no soy Stiller. Es la posibilidad de corregir el pasado como en El regreso a la burbuja o Una flor amarilla. Es la posibilidad de volver a ser joven como El difunto señor Elvesham, de H.G. Wells. Es la posibilidad de castigarse a uno mismo por todo lo malo que piensa que ha hecho como en El extraño caso del doctor Jekyll y el señor Hyde, William Wilson o El horla.548

Relembremos que o duplo é fragmentação, divisão e oposição, mas é também, implicitamente, a busca, às vezes desesperada, da almejada unidade harmónica do ser. A forma como a duplicação se realiza evidenciaria, em parte, o tipo de problemática existente. A seguir, estudaremos algumas aproximações feitas a uma tipologia do duplo que esclarecem e mostram a profundidade e a problemática que este trabalho encerra.