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Capítulo 5 A ponte dos suspiros

2. O rei nunca morreu

O invencível desejo de ressurreição e de imortalidade do rei evidenciado ao longo da obra mostram no romance como a condição de portugalidade está intrinsecamente ligada à ideia de transcendência; como também reflecte que o trauma da morte do rei continua tão vivo quanto a necessidade de se alcançar uma reparação. E reparação é a ideia subjacente que para nós conforma a personagem do rei nas suas três faces: como o

488 Cristina Vieira, Construções singulares..., op. cit., p.313. 489 Cristina Vieira, Ibid., p. 314.

rei histórico desaparecido em batalha, como Savachão, a nova identidade do rei reaparecido após vinte anos, e como Marco Túlio, seu sósia italiano.

O romance começa com a descrição da chegada de um romeiro de entre a espessura da bruma.491 Como que se desprendendo dela, a sua figura emerge para o cenário da vida: Veneza, coberta pela neblina, é a porta de entrada de quem, desde o início, apresenta traços de um mistério infinito. No anonimato da pobreza, o próprio gondoleiro que o transporta identifica nele um ser distinto. Figura coberta com uma capa com capuz, pálida, envolta pela névoa:

Vê afastar-se, a esvoaçar engolida na névoa, a sombra da capa do romeiro, ouve-lhe o eco dos passos sem imagem esbater-se na fundura cinzenta em direcção a São Marcos. Sente um arrepio: “Uma alma de outro mundo!” Persigna-se e abala dali”.492

Um dia, o rei Sebastião regressa em farrapos com o intuito de tomar posse do seu reino. Vinha de Sinai, onde, como eremita, tinha estado refugiado durante vinte anos, até que, em confissão, conta sua história a um padre, que o exorta à redenção, a única saída, que só pode resultar da confrontação com o seu passado, cumprindo a vontade de Deus:

Pecaste. Contra Deus e contra o teu povo. Sabes que a realeza vem de Deus? Acenou que sim.

Vou dar-te a única penitência possível. Regressa, rei. Cumpre o teu dever e o teu destino. Retoma o governo do teu reino.”493

Tinha ido a Itália para apresentar provas da sua identidade, pois tinha sido dado como morto passados tantos anos. A sua intenção era falar com o arcebispo Espálato, que por sua vez o apresentaria ao papa Clemente VIII. Sebastião apresenta-se perante o arcebispo como alguém que sofreu as mesmas penas, vergonhas e a desgraça do desgraçado rei desaparecido vinte anos antes em Alcácer-Quibir. Assim começa a sua incrível narração, desde o tempo em que, ainda muito novo, já sonhava com batalhas e vitórias. Incapaz de dar ouvidos às advertências dos conselheiros, parte para uma batalha impossível em Alcácer e, no meio da mortandade, da derrota e da vergonha, decide fugir e dar a sua morte como um facto consumado. Voltará para Portugal disfarçado de mendigo na companhia de Jorge de Lancastre, duque de Aveiro, Luís Coutinho, conde do Redondo,

491 A bruma, o nevoeiro é o indeterminado, a transição, a passagem entre um estado a outro onde o fantástico ainda não se solidifica em formas conhecidas, onde a metamorfose acontece. Na pintura japonesa “significam uma perturbação no desenrolar da narração, uma transição no tempo...” O nevoeiro também pode indicar a aproximação do divino, da revelação e da manifestação: “Vou aproximar-Me de ti numa nuvem espessa”, diz Javé a Moisés”. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, op. cit., p. 470.

492 Fernando Campos, op. cit., pp. 9-10. 493 Ibid., p. 74.

João da Silveira, filho do conde da Sortelha, Cristóvão da Távora e o pagem Telo de Meneses.494 Em Portugal, estas personagens testemunham as misérias e as desgraças que afligem o povo e assistem, como espectadores, nos Jerónimos, à missa pela morte do rei, morte que o próprio assume como verídica, pois o rei morto ficou em Alcácer e, a partir daí, começa a expiação deste novo ser sem nome.

«Senhores, poderei por uma derradeira vez ordenar-vos... Não. A minha autoridade real morreu naquele areal africano. Poderei pedir-vos, rogar-vos...» Beijavam-me ao mãos, ajoelhavam-se aos pés, misturando-se as lágrimas por aquelas barbas com o sangue das feridas trazidas da batalha, protestando, as palavras embargadas nas goelas. Disse-lhes que não queria mais aparecer, fosse cada um a seu destino, eu seguiria incógnito por aí, pelo mundo...mas nunca revelassem que eu era vivo. Cristóvão de Távora falou por todos: para onde eu fosse, eles iriam também, disfarçados em trajos comuns, reuniriam dinheiro e correriam mundo à procura de uma morte honrosa a combater o Turco ou a penitenciarem-se dos pecados na Terra Santa... mas primeiro era necessário curarem aquelas feridas demasiado acusadoras de donde vinham...

«A vossa perna, Alteza...»

Pchiu! Nada de Altezas nem de vós. Daí em diante tratar-se-iam por tu e nunca pronunciariam os nomes verdadeiros... 495

D. Sebastião e os companheiros seguem “Europa dentro, na Áustria lutaram contra os Otomanos e foram subindo pelos Balcãs (...) Os companheiros foram ficando pelo caminho, mortos, desaparecidos, para maior pungência do seu remordimento”496; até ficar sozinho, sem testemunhas da própria dor.

Terminado o relato autobiográfico perante o arcebispo Espálato, o romance desenvolve-se e descreve as peripécias e dificuldades que se apresentam ao rei no caminho para o trono. Ajudado por corajosos patriotas e por Marco Túlio Catizone, um calabrês idêntico a ele, tenta conseguir o que se vai evidenciando como impossível e utópico. Finalmente, impelido pelo peso dos interesses políticos próprios das circunstâncias históricas posteriores ao seu desaparecimento, D. Sebastião volta a diluir- se na brumosa intemporalidade dos confins da realidade e do tempo.497