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Capítulo 5 A ponte dos suspiros

8. Marco Túlio

Quando Savachão chega a Veneza, conhece um homem, um pescador italiano com um físico surpreendentemente parecido ao seu. Marco Tulio Catizone rapidamente se torna seu defensor, usando a sua parecença para os interesses da causa. Pela espantosa semelhança física com Savachão, Marco Túlio poderia considerar-se um sósia por confusão ou um doppelgänge.

Marco Túlio era um homem da minha idade, da minha estatura, da minha compleição. Os cabelos negros e a tez morena contrastavam com minha pele branca e cabeleira loura. Todavia as feições, não fora a cara rapada, incrivelmente semelhantes às minhas... a expressão dos olhos, a testa alta, a arcada do queixo... se ele deixasse crescer a barba, talhada como a minha, pensei, bem poderia ter eu ali um sósia...568

A sua semelhança desconcerta Savachão, que, confuso, se espanta com a ideia de ter um sósia, como se não soubesse se até ele próprio era ele mesmo, o que parece mostrar o estado de fluidez, construção e fragmentação em que se encontra como individualidade: Não sei porque me veio isso à ideia, mas dei-me conta, não sem algum rebate, de que, a um certo ponto a esta parte, desde que abandonei a Terra Santa, me andava a imaginação perigosamente insofreada. Resolvi haver sobre mim o necessário açaimo, tanta dolorosa

desconfiança tinha, depois dos últimos vinte anos de magras e mortificadas experiências, do meu pendor.569

Marco Túlio, em contraste com Savachão, é um pescador comum, térreo e sadio, pai de família. Parecera representar precisamente essa faceta vital que nem Savachão nem D. Sebastião tiveram a oportunidade de experimentar. Numa digressão interior, Savachão pensa, joga com nostalgia e dor, na ideia de ser comum:

Quem sou eu? A cada hora que passa, a cada cutilada do destino ou cachaporra da sorte, a cada esquina da dor, sinto-me tão outro do que fui! Que diferença faria agora, se eu me diluísse na multidão anónima? Rei, reino... ideias que se apagariam para sempre. Neste momento, se me fosse dado, faria Marco Túlio ocupar o meu lugar, para eu poder sentar-me na areia, ao sol, no quebrar das ondas, a ouvir sem cuidados de alma as canções dos pescadores... Horror e maldição ser ungido de Deus! Não tenho salvação nem na vida, nem na morte, nem no Inferno...570

A identidade entre ambos também se revela na apreciação que faz da esposa do pescador, o que sublinha o seu saudável apetite másculo:

Não tardou que assomasse à entrada uma mulher muito formosa e não me puderam os olhos desafeiçoados e o sentimento desafeito deixar de atentar-lhe na cintura delgada a relevar-lhe o redondo das ancas e na tumescência do peito moldada no corpete encarnado sob a camisa branca.571

Em termos junguianos, Marco Túlio personificaria o aspecto da sombra em Savachão, quer dizer, as tendências não desenvolvidas da sua personalidade: o marido, o pai de família, o homem comum. De certa forma, estaria em contraposição com a sua personalidade mais espiritualizada e condenada aos deveres da coroa, como figura colectiva de rei. Por outro lado, Marco Túlio também mostra essa identidade entre ambos, na medida em que quase automaticamente se identifica com a causa de Savachão, sem nenhuma razão para além dessa identidade. A não ser em função desta, o seu sacrifício seria inverosímil, pois não chega a ser muito claro como se desenvolveu a adesão incondicional de um pescador italiano, com custo da própria vida, abandonando pátria, mulher e filha, a um rei com quem nada tinha a ver, salvo a coincidência de ser seu sósia. Nas digressões que Marco Túlio faz sobre a identidade partilhada com o rei, pensa também na falsidade de Nuno da Costa. Este, que se apresenta como amigo da causa do rei, na verdade, é um traidor que esconde um coração ávido de ganância. Comparando-se a ele, Marco reconhece que a de Nuno é uma máscara, e o que acontece com ele ao fazer-

569 Ibid., p. 78.

570 Ibid., p. 162. 571 Ibid., p. 77.

se passar pelo rei, é um supremo sacrifício, o despojo da própria identidade, até já não saber ao certo quem é:

Despojar-se homem de si, supremo sacrifício, a menos que seja despojamento fictício como o desse traidor...(...). Isso é disfarce, travestimento, mimo que eu faço por jogo e diversão. Importa é a identidade de intrínseca, o eu íntimo. Meu senhor rei, não sei quem sou...572 Aceita e assume até à morte ser o outro, ao ponto de chegar a sê-lo mesmo. Marco parece tocar a realeza com o seu comportamento heróico e confundir-se verdadeiramente com a identidade do rei.

Apesar da identidade partilhada, a impossibilidade de se reunir numa única verifica- se não só no limite da História – D. Sebastião nunca voltou com vida –, mas também na morte de Marco Túlio e no desligamento posterior de Savachão em relação à terra, como se este voltasse ao seu estado imaterial não encarnado. Como se a possibilidade de se ligar à vida de alguma forma dependesse do veículo físico que representava Marco Túlio, ao ser este um homem da Terra, ligado ao mundo material. Truncada esta possibilidade, a reunião das partes dissolve-se, e Savachão regressa aos confins do tempo, na indeterminação, na bruma.

Catizone, como duplo de Savachão, além de ligá-lo ao homem comum, também o ligaria ao feminino, à Terra, ao corpo. Dado que é a identidade que tem relação com o aspecto feminino, ao ter esposa, este seria a possibilidade de conexão com a anima. A experiência de Savachão com uma projeção da anima é quase inexistente, a não ser nos breves encontros com Estrella573 e Violeta,574que, mais do que ligá-lo profundamente com o mundo da anima, parecem acidentes fugazes que salientam a sua virilidade. A relação com a anima no herói, como no homem, indica a sua implicação com a vida, com o mundo da realidade física: “El encuentro con la diosa (encarnada en cada mujer) es la prueba final del talento del héroe para ganar el don del amor (caridad: amor fati), que es la vida en sí misma, que se disfruta como estuche de la eternidad.”575

La mujer, en el lenguaje gráfico de la mitología, representa la totalidad de lo que puede conocerse. El héroe es el que llega a conocerlo. Mientras progresa en la lenta iniciación que es la vida, la forma de la diosa adopta para él una serie de transformaciones; nunca puede ser mayor que él mismo, pero siempre puede prometer más de lo que él es capaz de comprender. Ella lo atrae, lo guía, lo invita a romper las travas. Y si él puede emparejar su significado, los dos, el conocedor y el conocido, serán libertados de toda limitación. La mujer es la guía a la cima sublime de la aventura sensorial. Los ojos deficientes la reducen a estados inferiores; el ojo malvado de la ignorancia la empuja a la banalidad y a la fealdad. Pero es redimida por los

572 Ibid., pp. 129-130. 573 Ibid., pp. 33-35. 574 Ibid., pp. 57-60.

ojos del entendimiento. El héroe que puede tomarla como es, sin reacciones indebidas, con la bondad y seguridad que ella requiere, es potencialmente el rey, el dios encarnado en la creación del mundo de ella. 576

A decisão de Savachão foi alienar-se do mundo; renuncia a este quando vive na ermida, e assim rejeita também o mundo da anima, da mulher e da criação material, propiciando a impossibilidade da sua posterior reintegração, pois perdeu o direito da própria identidade como corpo material ao dar-se por morto. Marco Túlio, tendo esposa, ligaria Savachão ao mundo fisiológico, físico e material, e à complementariedade com o princípio da realidade que outorga a anima no homem: “El ánima es el arquetipo de la vida misma”577. Ao estar excluído desta realidade, confirma-se a incompatibilidade do ser de Savachão com o mundo material e a realidade física.