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Capítulo 2 O mosteiro

2. O destino está traçado

Como escreve Clément Rosset, a duplicação

supone la existencia de un original e uma copia, e cabe preguntarse cuál de los dos, el acontecimiento real o el “otro acontecimiento”, es el modelo y cuál es el duplo [...] Así, al final resulta que el acontecimiento real es el “otro”: el otro es esto real que ocurre, o sea, el duplo de otra realidad que será lo real mesmo, pero que siempre se escapa y del que nunca podremos decir o saber nada.297

À medida que os acontecimentos se concentram, o alferes vai-se prefigurando como duplo de D. Sebastião. Começa a sentir uma “angústia metafísica”298 que, mais do que uma angústia juvenil, é o medo de se perder a si mesmo, não só “uma parte importante de si próprio”, mas ele e o seu futuro como sujeito subjectivo na escolha de uma vida para si. A consciência deste facto é expressa na carta que escreve à namorada:

Já não sei ao certo quem sou, há aqui um estranho mistério de nomes que preciso de decifrar. Vou receber alguém que tem o nome do autor da crónica do OUTRO, quem sabe se não está destinado a escrever a minha.299

No capítulo quinto, a despersonalização, a comoção de já não se pertencer a si começa a ser mais evidente: “Quem sou, pergunta-se. Já não sabe quem é, o nome saiu dele, é de um outro que ficou ninguém sabe onde, há muito tempo.”300 Este “um outro que ficou ninguém sabe onde, há muito tempo” é o outro, o duplo, D. Sebastião. Uma batalha perdida no tempo, que parece ter de ser repetida em sacrifício da sua vida subjectiva, da de estudante, de sonhador, de indivíduo.

2. O destino está traçado

A subjectividade de Sebastião, que progressivamente é posta de lado, é representada e amplificada no seu relacionamento com o poeta. Para F.J. Leitão, o poeta funciona como alter-ego de Sebastião:

As grandes afinidades ideológicas e culturais entre «o poeta, o narrador, quem sabe quem» e Sebastião, a grande amizade que os une desde Coimbra, a partilha dos mesmos sonhos e das mesmas inquietações, colocam-nos o problema da individualidade de cada um deles, pois a certa altura do romance temos a sensação de que um é o alter-ego do outro. 301

297 Clément Rosset, apud Rebeca Martín López, op. cit., p. 38. 298 Manuel Alegre, op. cit., p. 42.

299 Ibid., p. 75. 300 Ibid., p. 48.

Nós pensamos que o poeta liga Sebastião à sua parte subjectiva. Sim, como um alter-ego que o aproxima de si e da sua condição histórica, mas sem expor nenhum dos problemas típicos dos duplos. O poeta é mais uma extensão e ampliação de si mesmo do que representação de uma oposição ou contradição, que é o que caracteriza os duplos. Tanto é assim que, no meio da despersonalização que o aproxima do duplo, ao ver o poeta sente “uma grande saudade de si mesmo. (...) tem a sensação de estar a ver o seu olhar.”302 Logo, esta personalidade do alferes, a parte da sua vida subjectiva individual inserida no seu tempo, que se projecta na sua amizade com o poeta, que o relaciona com o profundo do seu próprio coração, as suas reflexões constantes, os seus ideais, os seus sonhos, parece uma capa, a consciência, a razão que cobre o outro rosto de si mesmo, representado no seu duplo, D. Sebastião. Esta consciência com que o alferes rejeita a guerra é o que a diferencia da Jornada de D. Sebastião, como escreveu Clara Rocha. A consciência da sua insensatez e do conhecimento de aquela ser uma guerra perdida. Mas esta postura não deixa de basear-se em raciocínios. A razão é uma, a vida é outra. O próprio alferes o manifesta ao escritor: “A razão diz-me que não pode ser, mas o que é a razão? A verdade é que você é Jerónimo de Mendoça e eu sou Sebastião…”303 “As palavras e os seus jogos têm o poder de criar o irremediável.”304 A coincidência dos nomes tem o poder cifrado do destino. O facto de o alferes se chamar Sebastião implica uma ligação de acontecimentos e de acasos que vêm desde o “avô que se perdeu em Alcácer”.305 Mas, mais do que acasos, estes parecem representar uma estrutura arquetípica que se ordena em volta do mito sebastianista, e o mito tem a força das idades e das gerações fundidas numa só estrutura, povoa a estrutura inconsciente tanto das nações como dos indivíduos.306 Portanto, a razão revela-se insuficiente para apagar um mito; por outras palavras, a vida e os seus mistérios ultrapassam o mais perfeito dos juízos e das razões, assim como o inconsciente ultrapassa a consciência. Jung explica-o: “Estes não podem ser atacados pelo intelecto, porque não têm base intelectual ou racional, suas raízes mergulham numa vida de fantasia irracional e inconsciente, inacessível à crítica.”307 Os

302 Manuel Alegre, op. cit., p. 227. 303 Ibid., pp. 76-77.

304 Ibid., p. 77. 305 Ibid., p. 76.

306 “Ao que parece, os conteúdos mais importantes do inconsciente coletivo são as “imagens primordiais”, isto é, as ideias coletivas inconscientes e os impulsos vitais (vida e pensamento mítico).” C. G. Jung, O eu

e o inconsciente, Obras completas de C. G. Jung, VII/2, Brasil, Vozes, 1978, p.155. 307 C. G. Jung, Ibid., p. 90.

argumentos resultam infinitamente pequenos perante a força de um duplo mítico que se esculpe como original à medida que se avança no romance.

Assim, para além das palavras, para além das atitudes, todos os nomes convergem em D. Sebastião e na Jornada de África. Sebastião, ao deixar de ser ele, ao ser engolido gradualmente pela fatalidade que cada vez mais encarna, é levado por forças colectivas e de gerações, pelas façanhas de outros tempos: “E as belas, velhas, loucas cargas de cavalaria. O seu corcel o leva, ou é um jipe, já não sabe o seu nome, é um guerreiro, um simples centurião, um cavaleiro de outras eras desembarcado nesta guerra.”308 Estes sentimentos, esta consciência de ser levado por algum outro, por forças transcendentes, vai-se direccionando em torno de uma única figura, a de D. Sebastião.

A força das coincidências, das sincronias, povoa tudo de fatalidade. Sabe-se desde o início que a batalha está perdida. Mesmo os encontros clandestinos, anti-coloniais, estão imersos na fatalidade do duplo D. Sebastião. O escritor, os dissidentes, têm desde nascença o estigma da fatalidade: cada um deles tem um nome da primeira jornada: Jerónimo de Mendoça, Alvito, Duarte de Meneses, Vasco da Silveira, etc. Com isto, a tentativa de dissidência de Sebastião, se é pensada como resistência à fatalidade, e, portanto, ao duplo, parece condenada ao fracasso, como se não houvesse escapatória. Existe um mistério na identidade nacional, que no mito do sebastianismo encontra expressão. Um mistério já manifesto no verso de Fernando Pessoa, escolhido como sinal identitário do grupo clandestino: “As nações todas são mistérios.”309 E na resposta-chave, tão fatal quanto o futuro do alferes: “Eu vi a luz em um país perdido”.310