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Capítulo 2 O mosteiro

3. Autonomia dos complexos

Os complexos existem no inconsciente até que uma circunstância ou experiência os desperte e os convoque à consciência, levando o indivíduo a agir fora do âmbito da vontade, inclusivamente, em aberta e autónoma oposição a esta. Nesta característica reside o seu poder e a sua capacidade destrutiva: a autonomia dos complexos perante a vontade consciente. Um sujeito dominado por determinado complexo e com consciência dele pode preparar-se mentalmente para o dominar no momento em que este venha à tona. Mas, quando nessa situação, ver-se-á levado a agir diferentemente, a agir como teria previsto. Tal pode acontecer aos homens ou às mulheres, aos insectos ou ao mar, no caso de um temor irracional fincado em algum complexo. Racionalmente, o indivíduo pode compreender que não existe razão para tal temor, mas tais argúcias lógicas actuam com total autonomia da consciência.410

Esta situação pode gerar rupturas na unidade da consciência, inclusive até degenerar numa desintegração psíquica.411 Assim, os complexos parecem ter vida e vontade própria como se fossem seres independentes; o que também se evidencia nos estados anormais

408 Ibid., pp. 127-128.

409 Segundo D. Sharp, “Los arquétipos se manifiestan a nível personal (a través de los complejos) y a nível colectivo (como características de todas las culturas). Jung pensaba que la tarea de cada generación es compreender en forma diferente su contenido y efectos.” Daryl Sharp, op. cit., p. 30. É importante sublinhar que os mitos e lendas são expressões do arquétipo, não o arquétipo em si. Cf. Carl G. Jung, Arquetipos e

inconsciente... op. cit., pp. 11. Para dúvidas sobre os conceitos de arquétipo e complexo veja-se o primeiro

capítulo sobre o inconsciente pessoal. 410 Veja-se Jacobi. Complejo... op. cit., p. 19. 411 Cf. Ibid., p. 20.

da mente, manifestados em fenómenos como as vozes alucinatórias que experienciam os esquizofrénicos, os “espíritos” que “controlam” os médiuns em transe, as personalidades múltiplas nos histéricos, etc.412 Em geral, os complexos podem levar um sujeito a agir de maneira contrária à sua lógica ou desejo, provocando-lhe reacções exageradas ante fenómenos que, fora da subjectividade, não teriam razão de ser.

Intelectualmente, um sujeito pode estar consciente de um complexo, mas sem conhecer o seu fundo emocional “complexante”. Nesta situação, continuará exercendo o seu domínio até conseguir a sua “descarga” emocional; isto é, até se fazer uma elaboração emocional consciente, porque é por meio da emoção que se pode operar a necessária transformação energética: “Un contenido sólo puede ser integrado cuando su aspecto doble se ha “hecho consciente, y no sólo está intelectualmente aceptado, sino además, correspondientemente, se comprende su valor afectivo.”413

Enquanto um complexo permanecer inconsciente e não for compreendido na sua essência, fica eliminada qualquer possibilidade de desactivá-lo, “sólo quedan despojados de su carácter de ininfluenciable forzosidad de automatismo cuando se les hace conscientes.”414 Sem esta consciencialização, o complexo adquire um carácter de destino e autonomia fora do âmbito da vontade, ao qual o eu fica subordinado. Inexplicavelmente, um sujeito poderá ver-se arrastado para um destino que se repete fatidicamente, como, por exemplo, situações familiares. Como o caso de um rapaz que se apaixona por alguém possessivo como a mãe, ou uma mulher que repete padrões destrutivos da infância na idade adulta:

Si los contenidos inconscientes (...) no alcanzan su “realización”, resulta de ello una actividad negativa (…) Se producen anomalías psíquicas, estados de posesión de todo grado, desde usuales “humores” o “ideas” hasta psicosis. Todos estos estados se caracterizan por una misma propiedad: algo desconocido ha tomado posesión de una parte mayor o menor de la psique, y afirma su propia odiosa y nociva existencia, inconmovible frente a todo entedimiento, razón y energía, manifestándose así el poder del inconsciente frente a la conciencia.415

Jung, referindo-se à autonomia dos complexos, escreveu: “Todo el mundo sabe, en la actualidad, que uno “tiene un complejo”; lo que no sabe también (...) es que los complejos lo tienen a uno.”416 Consequentemente, os complexos podem limitar a capacidade de viver de acordo com a forma que se deseja conscientemente, colocando o

412 Cf. Anthony Stevens, Jung o la búsqueda de la identidad, Editorial Debate, España, 1994, pp. 42-43. 413 Jung, Aion..., op. cit., p. 43.

414 Jacobi, Complejo…, op. cit., p. 19. 415 Jung, Las relaciones..., op. cit., p. 127. 416 Jung, Energética psíquica..., op. cit., p. 95.

sujeito, ao mesmo tempo, em situações desagradáveis, e até mesmo nefastas, para o seu bem-estar. Nesta situação, a vida poderia apresentar-se como um campo minado de frustrações, na qual ele próprio acaba por ser, inevitável e inconscientemente, seu reactor: “Los complejos que llevamos en nosotros nos hacen vivir en un mundo de proyecciones417 que, escapando corrientemente a nuestros sentidos, invalidan de modo considerable el valor de objetividad de los testimonios a que éstos nos proporcionan.”418

3.1. A dissolução

Quando um complexo atinge a sua dissolução, a energia psíquica nele contida redistribui-se, possibilitando uma nova situação que facilita um melhor equilíbrio psíquico.419 Mas isto só é possível quando se tornam conscientes, quando são confrontados e se consegue a sua realização. Tal tarefa exige que se dê atenção à vida íntima e subjectiva do indivíduo e, portanto, é necessário que o indivíduo reconheça que, fundamentalmente, o seu bem-estar depende e vem do psíquico. Isso significaria que, assim como se trabalha para o sustento económico, para se formar uma personalidade civil é preciso também trabalhar com a psique. Estes esforços produzem grandes recompensas:

El yo desarrolla una conciencia mayor y una libertad de acción más amplia, y el arquetipo (núcleo do complexo) que se halla en el centro del complejo se libera de sus adherencias patológicas. El paciente puede eludir así las limitaciones impuestas por el complejo.”420 Limitações que, uma vez dissolvidas, possibilitariam o desenvolvimento de uma personalidade truncada por causa da acção de um complexo ou complexos, como poderia ser o caso de um indivíduo com um complexo materno negativo, projectado num mundo terrorífico e hostil. Dissolvido o complexo, este poderia experienciar o mundo sem desconfiança e medo; poderia relacionar-se mais espontaneamente com a vida e com as mulheres, e também com as próprias qualidades femininas. Libertado em certa medida do complexo, a sua relação com o seu ambiente poderia tornar-se mais objectiva e vital.

417 Projecção – explica Jung – “significa un sacar fuera un proceso subjetivo, trasladándolo a un objeto (. .) La proyección es, según eso, un proceso de disimilación, por cuanto un contenido subjetivo es enajenado del sujeto e incorporado de cierto modo al objeto. Los contenidos de que el sujeto se desembaraza mediante la proyección son tanto contenidos penosos, incompatibles como también valores positivos que le resultan inaccesibles al sujeto por alguna razón, como por ejemplo, a consecuencia de una subestimación de sí mismo.” Jung, Tipos…, op. cit., p. 546.

418 Jung, Los complejos..., op. cit., p. 204. 419 Cf. Jacobi, Complejo..., op. cit., p. 20. 420 Stevens, op. cit., p. 46. (Parênteses nossos).

Na actividade dos complexos evidencia-se a imensa importância e influência que a psique inconsciente tem na percepção da realidade que vive o sujeito. Esta percepção do seu ambiente está determinada por construções que, em muitos casos, ficam inconscientes. Com o reconhecimento deste princípio, possibilita-se uma aproximação à realidade interior; insta-se ao pensamento e à atenção do subjectivo, o que, progressivamente, exerce um contraponto saudável. Por exemplo, numa sociedade onde se priorizam os aspectos colectivos sobre os subjectivos, onde o sujeito sabe aquilo que é suposto ser na sua circunstância social, mas não sabe quem é no seu mundo interior, pois a definição de si próprio radica mais no papel colectivo que desempenha do que naquilo em que ele é único. Cria-se, portanto, um contraponto não centrado numa diferença superficial, mas sim na compreensão do próprio ser que, aos poucos, poderia assentar e desenvolver a subjectividade.