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AS GRANDES MUDANÇAS NA ARTE MUSICAL DURANTE O GOVERNO DE

1. A FIGURA DE DOM JOÃO VI COMO UM GRANDE GESTOR MUSICAL E AS

1.2. AS GRANDES MUDANÇAS NA ARTE MUSICAL DURANTE O GOVERNO DE

Ao se instalar no Rio de Janeiro, as primeiras criações de Dom João foram a Capela Real e a Câmara Real, sendo que a primeira funcionava de forma agregada à catedral; por decreto régio, essa mesma catedral posteriormente foi transferida para a Igreja dos Carmelitas. O rei também contribuiu para a construção do teatro São João, assim como para a contratação de vários músicos europeus.

Sabe-se que junto com a corte portuguesa vieram apenas dois músicos, o organista José do Rosário Nunes e o Pe. Francisco de Paula Pereira. Segundo Vasco Mariz (2002), este número veio a aumentar a partir de 1809, quando Dom João ordenou a primeira vinda de músicos portugueses e italianos. Vieram ao Brasil então: Joaquim Manuel da Câmara, José Caprânica, António Pedro Gonçalves, Carlos Mazziotti, Fortunato Mazziotti, Giuseppe Mazziotti, Giovanni Mazziotti e Salvador Salvatori.

Segundo o autor Bruno Kiefer (1977), durante os ofícios solenes, o número de músicos chegava a cerca de 150, entre cantores e instrumentistas. Dom João investiu muito nos ofícios religiosos, pelos quais tinha uma predição especial. Luiz Heitor, ao se referir ao rei, descreve: “Em matéria de divertimentos, D. João VI só conhece música e religião” (Heitor 1950: 104). Em outra afirmação posterior, o mesmo autor ainda reforça: “O senhor D. João era acompanhado pelos seus padres e pelos seus músicos (o primeiro mestre de capela escolhido

pelo regente D. João foi o Pe. José Mauricio Nunes Garcia, que já conquistara o respeito do regente)” (Heitor 1950: 104).

O gosto do príncipe regente pela música era tanto que, através do testemunho dos factos, observa-se que:

Além disto, Sua Alteza aumentou o numero dos capelães, cantores, ministros, sacristãs e serventes da mesma capela Real, como também o coro de música com vários músicos italianos e Portugueses que já o eram da sua Real Câmara e Capela em Lisboa, e com outros dessa cidade (Santos apud Andrade 1967: 23).

Se tratando da Capela Real, D. João também não poupava dinheiro para a contratação de cantores da Europa, inclusive, mandou vir até sopranistas (castrati) para o Rio de Janeiro. É importante ressaltar, que nesse período, era muito raro encontrar um castrati, pois o seu género vocal estava em desaparecimento. Os poucos que existiam, eram imediatamente destinados a Londres, Moscou ou Viena, por conta dos valorizados salários. Os castrati eram muito prestigiados em Portugal mesmo antes da vinda da corte para o Brasil e os primeiros a chegar ao Brasil foram trazidos por D. João.

Além do mais, a Capela Real foi a primeira instituição brasileira a oferecer cargos públicos para músicos. A partir disso, era garantido uma certa estabilidade aos profissionais da área. Nas palavras de Cardoso, pode-se confirmar os factos:

A Capela Real do Rio de Janeiro, com seu coro e sua orquestra, foi a primeira instituição profissional de música no Brasil mantida com recursos públicos, de forma permanente. Seus músicos e cantores eram funcionários públicos, vinculados primeiramente à

Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça e, a partir de 1861, à Secretaria de Estado de Negócios do Império (Cardoso 2005: 10).

A Capela Real proporcionou uma enorme quantidade de festas religiosas, comemorações políticas e familiares, ambas com funções religiosas. O repertório consistia, segundo Kiefer, “principalmente de obras do Pe. José Maurício o qual, a partir deste período, teve uma atividade febril” (Kiefer 1977: 48).

Sabe-se que, no período joanino, existia uma considerável produção musical profana. As óperas, os bailados e os elogios e cantatas ganharam força com a existência da Real Câmara e do teatro São João, mas, assim mesmo, a maior parte da produção musical acontecia dentro das igrejas.

Segundo Alberto Pacheco, D. João teve uma fundamental influência na produção musical sacra do Rio de Janeiro, fazendo com que uma grande parte da prática musical carioca acontecesse nas igrejas. O mesmo autor descreve que isso ocorreu não só pela

predileção do rei pela música religiosa, mas também pelo facto do Brasil ter o catolicismo como religião oficial em todo período joanino: “As relações entre a Igreja Católica e o Estado do Brasil se davam através da instituição do padroado” (Cardoso 2005: 20).

Confirmando as palavras acima, Andrade descreve que

Ao chegar, D. João VI decidiu “render graças a Deus na igreja que fosse a catedral da cidade” logo que pusesse os pés no Rio. Foi, portanto, recebido na Igreja do Rosário (naquele tempo Sé carioca) num ato religioso permeado de música. Logo após sua chegada, o monarca “resolveu criar a Capela Real agregada à Sé Catedral, a exemplo da de Lisboa. Foi com efeito uma das primeiras providências, aqui chegando (Andrade 1967: 13).

Além do mais, a religião tinha uma forte função social, sendo comum frequentar o teatro e a igreja. Pode-se observar com muita clareza as palavras de Ayres de Andrade: “Sua Alteza ia ao teatro e ia à Igreja. Era o quanto bastava para que todo mundo fosse ao teatro e à igreja” (Andrade 1967: 128).

Não havia muitos concertos musicais nessa época, e tinham uma forma diferente dos dias de hoje. Sabe-se que as chamadas academias de música, que também eram conhecidas como as noitadas musicais7, eram o passatempo predileto dos ricos, e ocorriam normalmente

à noite após o jantar.

Bruno Kiefer afirma que, nas respectivas noitadas, se apresentavam diversos artistas, instrumentistas e cantores, cujo repertório, geralmente eclético, também variava, sendo mais comuns trechos de óperas. Tais noitadas, no entanto, eram relativamente raras: “Em 1815 surge a primeira sociedade recreativa em cujos estatutos figurava os propósitos de promover concertos para sócios. O nome da sociedade era Assembléia Portuguesa. Cultivava também a dança e o jogo” (Kiefer 1977: 49).

É importante se ter em mente que as sociedades que promoviam concertos em série, tais como nos dias de hoje, surgiriam a partir de 1823. Nesses novos concertos, os artistas eram divulgados com antecedência e os ingressos também vendidos antecipadamente.

Segundo o autor acima, D. João foi responsável pela realização de inúmeros concertos. Músicos brasileiros, portugueses e de outros países fizeram um grande movimento musical na cidade do Rio. Nas palavras de Kiefer pode-se observar que

7 Para se ter uma ideia das tais noitadas musicais, pode ser observado a imagem do quadro de Debret na página 26, cujo pintor descreve como: Passatempo dos ricos depois de jantar.

O regente fazia realizar concertos em Paço. Músicos não faltavam. O gosto que dominava na corte não era dos melhores; so se admitia opera italiana – e o mesmo estilo na música sacra – com seu melodismo fácil e ensinuante.

Resta mensionar ainda uma banda, composta de músicos portugueses e alemães, que atuou no Rio durante a estada da Família Real. Vieira capitaneada por Eduardo Neuparth, nomeado expressamente pela Casa Real para acompanhar a princesa Leopodina da Áustria na sua viagem de Livorno ate o Rio. Para esta banda o Pe. Jose Mauricio escreveu 12 divertimentos, infelizmente perdidos (Kiefer 1977: 49).

Como já se sabe, o rei tinha uma adoração pelas missas cantadas e solenes, atraindo ao seu redor muitos músicos e cantores. Este seu interesse pela música fortaleceu a vida musical de grandes compositores que viveram nesse período, como Marcos Portugal, Sigismund Newkomme e o já referido Pe. José Maurício, que serão abordados no decorrer do trabalho; existem relatos atestando que este último teve certa proteção do rei, principalmente na Capela Real, onde não foi poupado dinheiro para o investimento, conforme pedido do mesmo músico.

Além dos benefícios oferecidos aos mestres da música, Dom João também influenciou toda a sociedade, pois a população joanina costumava aderir os hábitos do rei. Isso pode explicar o facto de o estilo musical sacro e dramático predominar durante todo o período de gestão do rei. Segundo Ayres de Andrade, os concertos normalmente ocorriam em ambientes privados, pois o rei não tinha hábitos de ir aos concertos públicos e, com isso, as pessoas também aderiam este costume. O ato do rei frequentar o teatro e a igreja, já era o bastante para se tornar um ponto obrigatório de reunião social. O mesmo autor esclarece a situação com mais detalhes:

E por que haveria Sua Alteza de ir a concertos se os tinha a domicílio, executados pelos músicos de sua Real Câmara, à hora que lhe conviesse?

Em grande parte, foi por essa razão que custou a formar-se clima para concertos no Rio de Janeiro. Concertos propriamente ditos no Rio de Janeiro daqueles dias, a não ser em ambientes privados, o que não era comum, só mesmo os da Real Câmara, que tanto se realizavam no Paço de S. Cristóvão, como em Santa Cruz (Andrade 1967: 128).

A música também estava presente na sociedade carioca joanina. Vale destacar que a arte da música, como profissão, não era muito bem vista no período abordado. Pacheco descreve que uma carreira musical seria algo pouco recomendável para as moças de boa família: “Uma mulher com carreira artística não era vista com bons olhos e certamente teria uma reputação bastante baixa” (Pacheco 2008: 109). Por outro lado, saber tocar um instrumento musical fazia parte do passatempo da elite brasileira. Conforme as palavras de Anelise Oliveira, o piano era o instrumento predileto da nobreza; além do mais, o facto de uma mulher tocar esse

instrumento era algo elegante e demonstrava poder monetário elevado. A respeito do assunto, a mesma autora pode representar mais detalhes:

Para dar o tom à musicalidade, o instrumento mais requisitado entre a boa sociedade era o piano forte. Toda dama que se prezasse deveria saber ler as partituras e tocá-las elegantemente, sendo esta uma das principais prendas da mulher nobre. O piano não constituía apenas um instrumento musical. Constituía também num símbolo de distinção o social do mobiliário oitocentista, já que seu alto custo - quase sempre importado da Inglaterra - era privilégio da camada abastada (Oliveira 2008: 16).

Muitos benefícios foram trazidos pelo governo joanino. Sob a gestão do príncipe regente, estiveram grandes artistas, com muitas composições e interpretações de alto nível, feitas dentro desse próprio período. Uma gama de obras compostas durante esta época constitui um repertório de muito valor artístico, com uma grande variedade de géneros. Vale lembrar que parte destas obras está respectivamente relacionada com o rei.

Por outro lado, Bruno Kiefer relata que as realizações de Dom João VI no Brasil, no que se diz a respeito de sua política económica, social e cultural, contribuíram fortemente para o incremento, estruturação e difusão do sentimento antilusitano. “Surge aí, verdadeiramente, o sentimento nacional, conforme atestam os acontecimentos que se seguiram à saída do monarca do Brasil” (Kiefer 1977: 50).

O autor acima acredita que as iniciativas da própria gestão do rei favoreceram fortemente a criação da auto-afirmação nacional. Até então não existia a imprensa periódica, o acesso aos livros e instruções, não existia também a possibilidade de se estruturar e criar o sentimento patriótico. Castello afirma com suas palavras que:

Concomitantemente com as reformas de D. João VI, e mesmo como uma das conseqüências inesperadas de sua política, verificou-se a eclosão do sentimento antilusitano, expressão inicial do próprio sentimento patriótico que havia de estimular o movimento romântico e nacionalista que se manifestaria logo mais (Castello 1967: 197).

O retorno da família real a Portugal, juntamente com a turbulência social e política causada pelo movimento da independência do Brasil, deixou um abalo nas atividades musicais e automaticamente também nas questões financeiras, impacto esse que, segundo o autor Porto Alegre, ao descrever as palavras ditas pelo padre José Maurício, pode demostrar a desilusão dos músicos nesse período de lembrança dos bons tempos com Dom João:

Ah! naqueles tempos, quando me assentava à mesa tinha nos meus olhos el-rei [D. João VI], e nos ouvidos uma orquestra imensa e prodigiosa. Muitas noites não pude dormir, porque essa orquestra me acompanhava, e era tal o seu efeito que passava as noites em claro; e infelizmente nunca pude escrever aquilo que claramente ouvia. Hoje, só ouço o

cantar dos grilos, e meus gemidos, ou o ganir dos cães que me incomodam e me entristecem (Pe. José Maurício, citado por Porto-Alegre 1978: 53).

Luís de Oliveira Ramos acredita que Dom João provavelmente já sabia que os seus atos levariam a independência brasileira; segundo o autor, “Em 1822, como decerto o monarca previa, sob a batuta do próprio herdeiro da coroa, D. Pedro, o Brasil torna-se um império independente” (Ramos 2000: 109). Em relação à possível reação do rei, devida à situação de retornar a Portugal, o mesmo autor ainda descreve com todo acerto: “Exerceu um mando sem excessos. Além de reconhecer a independência do Brasil aceitou seu filho, D. Pedro, como imperador e príncipe real do Velho Reino” (Ramos 2000: 109).

Através da Biblioteca Nacional de Lisboa, pode-se ter acesso a um documento de extrema importância. Trata-se de uma carta que fora enviada ao rei, no dia 19 de junho de 1822, escrita pelo novo herdeiro da coroa, seu filho D. Pedro I. Vale lembrar que nesse período toda a corte já estava em Portugal. Observe-se então essas palavras:

Meu pai, e Meu Senhor, Tive a honra, e o prazer de receber de V. M. duas cartas, huma pelo Costa Coito, e outra pelo Chamberlain, em as quaes V. M. me comonicava o seu estado de saúde fizica, a qual eu estimo mais, que ninguem, e em que me dizia -- Guia- te pelas circunstancias com prudencia, e cautella -- esta recomendação he digna de todo o homem, e muito mais de um pai a hum filho, e de hum Rei a hum subdito, que o ama, e respeita sobre maneira.

Circunstancias Politicas do Brazil fizerão que eu tomasse as medidas, que já participei a V. M. ; outras mais urgentes forçarão me por amor á Nação, a V. M, e ao Brazil, tomar as que V. M. verá dos papeis officiaes, que sómente a V. M. remetto. Por elles verá V. M. o amor, que os Brazileiros honrados lhes consagrão à sua sagrada, e inviolavel Pessoa, e ao Brazil, que a Providencia Divina lhes deo em sorte livre, e que não quer ser escravo de Lusos-Hespanhoesquaes os infames Despotas (Constitucionaes in nomíne) dessas facciosas, orrorosas, e pestiferas Cortes.

O Brazil, senhor, ama a V. M. reconhece-o, e sempre o reconhece como seu Rey (....) Eu ainda me lembro, e me lembrarei sempre do que V. M. me disse, antes de partir dois dias, no seu quarto (Pedro se o Brazil se separar antes seja para ti, Me has de respeitar do que para algum desses aventureiros) Foi chegado o momento da quasi separação, e estribado en nas eloquentes, e singelas palavras expressadas por V. M., tenho marchado a diante do Brazil, que tanto me tem honrado (Alcantara 1822: 4 - 5).

Diante deste material, é possível se ter uma ideia da repercussão causada pelo mecenas na sociedade brasileira, bem como o respeito e carinho para com ele, por parte de D. Pedro e dos brasileiros.

Além de todos os benefícios citados acima, um facto artístico de extrema importância, que ocorreu no governo de Dom João, foi sem dúvida a Missão Artística, criada em 1816, por um decreto régio junto à Escola de Ciências, Artes e Ofícios.