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2. COMPOSITORES DO PERÍODO JOANINO

2.3. SIGISMUND NEUKOMM

Apesar de não ser de nacionalidade portuguesa ou brasileira, e não ter passado um longo período junto à corte portuguesa, o compositor Sigismund Ritter von Neukomm teve uma importante participação na música luso-brasileira desse período.

O autor Raí Toffoletto (2010) destaca três fontes primárias acerca da vida de Neukomm, das quais é possível obter informações preciosas de sua biografia. A primeira fonte é o catálogo de suas obras, escrito pelo próprio compositor a partir de 1804, que foi constantemente atualizado no decorrer de sua vida. A segunda é obtida através de suas cartas, que se encontram conservadas em Paris, na Bibliothèque Nationale de France e na Wiener Stadtbibliothek em Viena. A terceira fonte é através de seu Esquisse Biographique, que consiste em uma autobiografia escrita pouco antes de sua morte e, segundo o autor, foi publicada postumamente por um irmão de Neukomm em três partes da revista La Maîtrise19.

Figura 10 – Retrato de Neukomm

Fonte: Toffoletto 2010: 1.

O compositor austríaco nasceu em 10 de julho de 1778, em Salzburgo. Além de ser na cidade natal de Mozart, Neukomm nasceu na casa vizinha em que o mesmo compositor nascera vinte anos antes.

Segundo Toffoletto (2010), Sigismund Neukomm foi o primogénito de quinze filhos do casal David Neukomm e Cordelia Riederen. Aos cinco anos de idade já estava alfabetizado pelo pai, que era um importante professor da Universidade da mesma cidade. Com sete anos iniciou seus estudos de música com Franz Xavier Weissauer, que tinha grau parentesco materno e ocupava o cargo de organista da Catedral de Salzburg.

O autor acima também descreve que entre a idade de oito e dezoito anos, o referido músico aprimorou seus estudos na Universidade de Salzburg, ocupando os cargos de organista da igreja e correpetidor dos coros da universidade. O autor ainda afirma que neste “meio tempo tem aulas com Michael Haydn, cuja esposa é parente de sua mãe, e que recomenda ao jovem ter aulas em Viena, com seu irmão Joseph Haydn” (Toffoletto 2010: 4).

Newkomm foi discípulo de grandes mestres, sabe-se que o mesmo estudou harmonia e contraponto com Miguel Haydn. Segundo Araújo, mais tarde, em março de 1797 o compositor se muda para Viena onde se torna pupilo de Joseph Haydn, com quem estudou durante sete anos e teve uma esplêndida formação musical, além de criar uma relação próxima e paternal. Facto esse, que segundo o mesmo autor, “levou Haydn a declarar certa vez que dos seus alunos o maior era Beethoven, porém o pre-dileto [sic] era Neukomm” (Araújo 1969: 62).

Toffoletto (2010) relata que, em maio de 1804, o compositor se mudou para São Petersburgo. Imediatamente passou a exercer o cargo de mestre de capela do teatro da cidade, onde compôs sua ópera Alexander am Indus, cuja estreia foi no dia da coroação do imperador Alexandre. O autor acima detalha que Neukomm foi acolhido na corte pela imperatriz mãe, mas provavelmente a quantidade excessiva de trabalho e a notícia da morte de seu pai, deixou o gravemente enfermo.

Devido à enfermidade, o compositor se mudou para Moscou em dezembro de 1805, e segundo Toffoletto (2010), na Rússia foi nomeado como integrante da Sociedade Real de Música de Estocolmo e da Sociedade Filarmônica de São Petersburgo.

Bruno Kiefer relata que nesse período o compositor passa a viajar pelo mundo, adquirindo muito prestígio em diversos países visitados, vindo mais tarde, em julho de 1808, a voltar por decisão própria à Áustria visitando diariamente seu grande mestre e “adorado pai Haydn”. Toffoletto (2010) cita o Esquisse de Neukomm, onde o referido compositor descreve os detalhes de sua visita ao seu mestre, que então já estava com setenta e sete anos:

Ele conservara toda sua memória e sua amabilidade; mas o fogo anacreôntico, que dotou de alma suas obras, sobretudo suas últimas produções instrumentais, reflexo vívido de seu criador, este fogo se apagou, e se transformou em uma sensibilidade tal, que a menor emoção o fazia cair em lágrimas (Toffoletto 2010: 4).

Em março de 1809, Sigismund Neukomm partiu para a França, onde veio residir em Montbeillard. Sabe-se que três meses após Neukomm se mudar de Viena, Haydn veio a falecer. Depois de um ano residindo em Montbeillard, se mudou então para Paris. Na capital francesa o compositor foi acolhido pelo príncipe Talleyrand, e segundo Bruno Kiefer, a partir de 1812, veio a suceder Dussek como pianista, no cargo de músico oficial da casa de Talleyrand.

Em homenagem às comemorações da entrada solene de Luís XVIII em Paris, em 1814, o referido músico compõe seu grande Te Deum, estreado na catedral de Notre-Dame, com a presença da família real. Segundo Raí Toffoletto (2010), neste mesmo ano, o compositor acompanhou o príncipe Talleyrand ao Congresso de Viena, onde compôs seu grande Requiem em homenagem ao aniversário da morte de Luís XVI. Segundo o autor:

O Requiem é executado, frente aos Imperadores, Reis e Príncipes de todas as nações presentes ao congresso, por mais de trezentos cantores divididos em dois coros. Nesta ocasião o compositor é agraciado com o título de Chevalier de la Légion d’Honneur por sua majestade Louis XVIII (Toffoletto 2010: 5).

Como já referido acima, sabe-se que Neukomm recebeu um convite para fazer parte da famosa missão artística francesa; segundo Kiefer, o compositor não recusou o grande desejo de conhecer o novo mundo, partindo para o Brasil em 1816, junto a outros artistas da missão. O mencionado autor descreve que, “sendo alguns, na comitiva do Duque de Luxemburgo, mandado por Luís XVIII ao Rio de janeiro de reatar as relações com Portugal; segundo outros, teria viajado com os companheiros da missão” (Kiefer 1977: 61).

Pode-se observar o facto citado através das próprias palavras de Neukomm, descrito em seu Esquisse Biographique:

Em 1816, aproveitei-me da oferta generosa, que me fez o Duque de Luxemburgo, de acompanhá-lo ao Rio de Janeiro, onde na qualidade de embaixador extraordinário estava encarregado de felicitar João VI por sua ascensão ao trono, vago pela morte de sua mãe. Nós embarcamos em Brest, dia 2de abril de 1816, na fragata Hermione; aportamos dia 7 em Lisboa e depois de alguns dias de repouso retomamos nossa rota por Madeira e Tenerife. Fizemos uma parada de alguns dias em Funchal e em Santa-Cruz. Durante a travessia compus vários motetos e outras peças para a Igreja, assim como muitas marchas e peças para a banda militar da fragata.

O príncipe Talleyrand havia me entregue uma carta de recomendação para o Conde da Barca, o qual, anteriormente embaixador português em Paris, esteve em contato próximo com o príncipe. Esta recomendação me foi logo de grande utilidade. O senhor Conde era

um homem de espírito iluminado e grandes conhecimentos. Ele me recebeu com uma inesquecível benevolência, e logo que, algumas semanas depois de nossa chegada, o Duque de Luxemburgo voltou à França, o Conde me propôs de permanecer no Rio de Janeiro e me ofereceu hospedagem em sua casa. Nós temos a esperança, me disse ele, de fundar um novo império neste Novo-Mundo, e será de um grande interesse para você ser testemunha deste período de desenvolvimento (Neukomm 1858: 52).

Assim, o autor ainda relata que ao chegar ao país o compositor foi contratado para lecionar aulas de contraponto e harmonia, mas nunca pode assumir seu cargo, pois “a prepotência de Marcos Portugal atuou também neste caso. Limitou-se a dar lições de música a D. Pedro (I), à princesa D.ª Leopoldina e a Francisco Manuel da Silva” (Kiefer 1977: 61).

Nas palavras do próprio compositor, pode-se observar que de tal forma, o mesmo esteve sempre grato ao que recebeu do rei D. João:

O Rei concedeu-me, a pedido do Conde da Barca, uma pensão mais que suficiente para as minhas despesas e sem me encarregar de qualquer cargo. Mas, de bom grado ofereci-me para dar aulas de música à infanta Dona Maria, assim como ao príncipe herdeiro S. A. R. Dom Pedro e à sua futura esposa Leopoldina, arquiduquesa da Áustria; ofereci-me também para fazer música com eles e ao mesmo tempo proporcionar a eles uma oportunidade para se exercitarem na língua francesa (Neukomm 1858: 54).

Sabe-se que Neukomm teve amizade, assim como admiração pelo talento do Pe. José Maurício Nunes Garcia, pois dizia ser o maior improvisador do mundo. Com isso, foi um importante incentivador e divulgador das obras do padre. Um facto interessante ocorrido um tempo depois, quando o compositor austríaco retornou a Paris, o autor Afonso Taunay pode descrever. Em uma conversa, Neukomm diz a respeito do padre compositor ao brasileiro gaúcho Manuel de Araújo Porto Alegre: “Ah! Os brasileiros nunca souberam o valor do homem que tinham, valor tanto mais precioso, pois era tudo fruto dos próprios recursos” (Taunay 1956: 342).

Além do mais, o encontro dos compositores citados foi de grande importância para a fusão de estilos composicionais, advindos de escolas musicais distintas: Edmundo Hora descreve que:

Ali, ele teve a oportunidade de confraternizar com o Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), reconhecendo nele o seu talento para a composição e sua virtuosidade como instrumentista ao cravo, ao órgão e ao pianoforté, realizando ainda uma troca de experiência marcante que influenciou o legado artístico da cultura musical brasileira. Seu repertório não somente acrescenta um importante material à prática da música de câmara, como também à prática instrumental sinfônico-coral e solo, difundindo conseqüentemente a tradição clássica da escola de composição Vienense - representada por Franz Joseph Haydn (1732-1809) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) - num Brasil fortemente influenciado pelo estilo composicional Português e Napolitano. (Hora 2009: 5)

Além de Neukomm ser um importante compositor para o mundo, com obras de quase todos os géneros, Kiefer (1977) destaca também a sua importância para o Brasil, sendo professor de Francisco Manuel da Silva, compositor do futuro hino nacional do Brasil. Além do mais, a primeira obra com um tema brasileiro foi de autoria de Newkomm, um Capricho20

para piano, com o título de O Amor Brasileiro.

Pode-se se averiguar os relatos acima sob as palavras de Kiefer:

O nosso interesse por ele prende-se ao fato de ter sido professor de D. Pedro e Francisco Manuel da Silva. E mais ainda: é autor da primeira obra com um tema brasileiro: O Capricho para piano intitulado O amor brasileiro, no qual aproveita um tema de lundu (Kiefer 1977: 63).

Sigismund Neukomm, assim como o Pe. José Maurício, recebeu de D. João VI a concessão das insígnias da Ordem de Cristo.

Um vasto repertório de composições do género sacro e profano foi deixado por Neukomm, dentre elas se encontram missas, óperas, sinfonias, oratórios, cantatas, música de câmara e sonatas. Algumas dessas obras estão catalogadas no Departamento de Música da Biblioteca Nacional da França. A abertura Le Héros, foi uma das obras de destaque do compositor, assim como um Te Deum, ambas em homenagem a D. Pedro I, como é o caso da

Missa Solene para Aclamação de S. Majestade Dom João VI, apresentada em três de abril de

1817.

Pode-se citar também, a obra L'Allegresse publique, marcha para grande orquestra para a aclamação de S. M. Dom João VI, composta em 18 de março de 1817. Sabe-se que desta mesma marcha existe também uma instrumentação adaptada para piano a quatro mãos. Sem contar as composições oferecidas ao rei D. João, encontra-se também muitas outras obras que mostram certa relação com a corte portuguesa.

O Brasil foi para Neukomm um importante cenário inspirador para suas obras composicionais. Em sua Esquisse Biographique, o autor deixa claro esse facto:

Eu estive bastante atarefado nesse país feérico, onde tudo é maravilhosamente belo e grandioso na entomologia e na botânica, onde todavia meu catálogo aumentou em quarenta e cinco peças musicais, compostas no Rio de Janeiro. Uma destas peças, a grande missa (São Francisco), compus a pedido especial da esposa de D. Pedro, para seu pai, Franz I, imperador da Áustria. Escutei essa missa mais tarde, em 1842, na capela particular do Imperador, em Viena. (Neukomm 1858: 54).

20 Em italiano Capriccio: Termo que designa uma variedade de composições, habitualmente demonstrando alguma liberdade de modo. No século XVIII, era utilizado para indicar uma cadência improvisada (Fonte: Sadie 2001).

Para se afirmar a importância da estada de Neukomm no Rio de Janeiro, Taunay cita as palavras dos cientistas Spix e Martius:

Os conhecimentos musicais dos habitantes do Rio de Janeiro não estavam ainda a altura das missas de Neukomm, escritas no estilo dos mais celebres compositores alemães. O impulso que o gênio de David Peres dera a música da igreja portuguesa cessou. Hoje a primeira coisa que se exige numa missa e que ela seja uma sucessão de alegres melodias e que longo e pomposo Gloria anteceda a curto Credo. E o estilo de Marcos Portugal, hoje o compositor predileto dos portugueses (Taunay 1956: 348).

É importante consignar que sua presença, mesmo não sendo do país, foi de grande valia nas artes do Brasil império como de Portugal, detentor do poder econômico régio.