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1. A FIGURA DE DOM JOÃO VI COMO UM GRANDE GESTOR MUSICAL E AS

1.1. A FORMAÇÃO MUSICAL DE DOM JOÃO VI

João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança, mais conhecido como Dom João VI, nasceu na cidade de Lisboa em 13 de Maio de 1767, filho da rainha D. Maria e de D. Pedro III; em 1785, casou-se com a espanhola D. Carlota Joaquina de Bourbon.

Após o ataque de loucura da rainha D. Maria I em 1792, enquanto assistia a um espetáculo no Teatro Paço de Salvaterra, Dom João tornou-se o novo regente do reino. Apenar de ser o segundo filho da rainha, obteve a herança devido ao falecimento do príncipe D. José, seu irmão primogénito, em 1788.

Sabe-se que, pelo facto de D. João não ser o primeiro filho, o novo príncipe não estava completamente preparado para assumir a regência do reino, pois desprovia da formação usual dos herdeiros do trono. Seus hábitos eram mais livres de responsabilidades, razão pela qual, desde cedo já trazia uma vivência musical muito rica. Essa característica traria, a seu governo, grandes benefícios para a arte musical, com destaque para a música litúrgica, que era de seu gosto em especial. Essas características são fortemente apontadas pelos biógrafos da monarquia: “Não lhe deram uma educação razoável; deram-lhe uma formação artística. Como não precisava saber o que pensavam os sábios, ensinaram-lhe a conhecer o que compunham os músicos” (Calmon 1968: 136).

O “protetor das musas”, designação usada por Bruno Kiefer (1977) ao referir-se ao príncipe, financiou a arte da música durante seu governo em Portugal e posteriormente também no Brasil. Encontram-se arquivadas, nos Diários de Despesas do Particular guardados na Torre do Tombo, ordens de pagamento destinadas a músicos em geral, ajudas de custo para atividades musicais e para transporte de cantores, despesas com composição e montagem de espetáculos, além de muitas outras despesas relacionadas com música.

Essa forte paixão pela arte musical não era uma predileção só de Dom João VI, mas também uma tradição de muitos outros reis lusitanos, como o descreve Scherpereel:

A música era uma das grandes paixões dos reis da dinastia de Bragança e foram despendidas somas consideráveis em sua honra. Basta recordar a riquíssima biblioteca musical reunida por D. João IV, ele mesmo compositor e crítico de mérito, a contratação de Domenico Scarlatti sob o reinado de D. João V, a de David Perez e dos maiores cantores italianos sob D. José I, sem esquecer a construção do faustoso teatro de ópera “dos Paços da Ribeira” ou “Ópera do Tejo”, considerado por Burney como o teatro mais brilhante de toda a Europa, infelizmente destruído no ano de sua inauguração pelo grande terramoto de 1755 (Scherpereel 1985: 13).

Sabe-se que o estilo musical mais executado em Portugal no período de governo de D. João VI foi a ópera italiana; afinal, já “desde a primeira metade do século XVIII, dava-se uma penetração progressiva dos modelos musicais italianos” (Pacheco 2007: 12). É importante colocar-se em pauta que, no início do século XVIII, o género musical romano predominou na Real Capela; da metade do século em diante, a maior influência musical foi a da escola napolitana.

No governo de D. João, a escola napolitana estava, pois, em alta, e sabe-se que muitos compositores portugueses foram para Nápoles a estudos. Nery relata que, quando os referidos músicos voltaram, representando o estilo napolitano, ingressaram como “corpo docente do Seminário da Patriarcal, para além de se distinguirem entre o círculo de compositores portugueses” (Nery 1999: 104). Compositores como António Leal Moreira e Marcos Portugal foram alunos do seminário, onde tiveram como professor, o grande músico e compositor João de Souza Carvalho (1745 - 1798). David Perez, (1711 – 1778), Niccolò Jommelli (1714 – 1774), Jerónimo Francisco de Lima (1741 - 1822) e Brás Francisco de Lima foram importantes compositores que também representaram a escola napolitana em Portugal.

No início do século XIX, o género operático passou a influenciar fortemente a música portuguesa. Segundo Cymbron Brito, o que colaborou muito nesse período foram os importantes teatros São Carlos, em Lisboa, e São João, no Porto, que viriam a “constituir o eixo central de toda essa vida musical ao longo do século XIX, colocando a música

instrumental, bem como as restantes manifestações musicais, na posição de meros satélites da cultura operática italiana” (Brito 1992: 129).

A maior parte das peças apresentadas no teatro São Carlos eram italianas; uma pequena parte era em português, e raramente eram apresentadas óperas francesas, sendo estas últimas, muitas vezes, montadas e cantadas na própria língua italiana; Balbi confirma esse facto - “Desde a abertura deste novo teatro [S. Carlos], Lisboa tem tido sucessivamente o prazer de ouvir os maiores talentos da Itália na cena lírica” (Balbi 1822: CCIV) – assim como Pacheco:

Mesmo que os teatros públicos mais populares apresentassem por vezes algumas alternativas - como é o caso da produção dramática de António José da Silva (1705–1739), o Judeu, como ficou conhecido, ou a presença de modinhas e canções populares em espetáculos, das quais podemos encontrar alguns exemplos no repertório português da cantora brasileira Lapinha - a ópera italiana se estabeleceu com tal força que influenciou a música religiosa portuguesa, que se tornou muito semelhante à música operática. Neste caso, como na ópera, os grandes modelos foram David Perez e Niccolò Jommelli (Pacheco 2007: 12).

Segundo Malerba, a fuga da corte portuguesa para o Brasil foi uma tentativa de se proteger dos avanços de Napoleão Bonaparte que, nesta altura, já oferecia uma ameaça no território português: “Todas as principais casas dinásticas da Europa e tinha no pequeno Estado português uma ameaça nem um pouco desprezível, por causa de sua posição estratégica de entreposto comercial e aliado histórico que era do império britânico” (Malerba 2000: 19).

A vinda de Dom João para o Brasil foi triunfante e causou um impacto muito grande no país. O pesquisador Bruno Kiefer (1977) relata que a chegada da corte a terras brasileiras provocou uma imensa revolução cultural no Brasil, transformando o Rio de Janeiro em um verdadeiro “centro de irradiação do pensamento da atividade mental do país”. Kiefer continua:

À chegada do Príncipe Regente, os portos foram franqueados à navegação estrangeira. Surgiu o prelo, e, com ele, a Gazeta Real. Foram fundadas a Escola de Medicina e a Academia de Belas Artes. A Biblioteca Real, com 60.000 volumes abriu suas portas ao público.

As nações amigas foram solicitadas a enviar representação diplomática ao Brasil e assim foi que logo se instalaram no Rio as embaixadas da Inglaterra e da França (Kiefer 1980: 42).

As transformações culturais foram tão perceptíveis que José A. Castello pôde registrar com muito fundamento: “ a transição ocorre de 1808 a 1821, quando D. João VI preparou o ambiente propício a nossa independência econômica, política e cultural, favorecendo-nos de

tal forma que foi considerado pelo instituto Histórico e Geográfico o fundador da nacionalidade brasileira” (Castello 1967: 194).

Segundo os relatos do padre brasileiro Luiz Gonçalves dos Santos (1767 – 1844), citado por Pacheco, ao chegar ao Brasil o rei foi muito bem recebido com muita música. Pode-se também dizer que o rei beneficiou intensamente a produção musical no Brasil, partindo da música já produzida na colónia: “O protagonista de todas as transformações sofridas pelo Rio de Janeiro foi o rei D. João VI. No campo da música sua importância é fundamental. Podemos afirmar que ele foi o mais importante mecenas com que contava o Rio de Janeiro” (Pacheco 2007: 29).

Pode-se observar, nas afirmações acima, que D. João realmente teve um papel fundamental para o avanço das artes em geral no Brasil joanino, em especial à música. O Brasil ainda não contava com uma iniciativa de desenvolvimento no meio musical com tanta austeridade, antes da chegada do referido rei.

1.2. AS GRANDES MUDANÇAS NA ARTE MUSICAL DURANTE O GOVERNO DE