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CAPÍTULO II O Direito do Trabalho moçambicano do período colonial e sua relação com a OIT

2. As medidas antiescravagistas A transição para o trabalho livre Os libertos

a) Sá da Bandeira e a política antiescravagista. Do Decreto de 10 de Dezembro de 1836 ao Decreto de 25 de Fevereiro de 1869

Em 1810, Portugal assume a primeira obrigação internacional para a restrição do tráfico de escravos e, a partir de então, muito lentamente e de modo titubeante, mais não cessou, pela colaboração na criação de normas internacionais, ou pela publicação de normas internas que contribuíssem para a extinção do comércio de escravos e da escravidão. A torrente intensa de actos legislativos, que enquadrava a presença portuguesa nas colónias, destinava-se a simular a intenção humanitária e civilizadora do modelo de trabalho nas colónias portuguesas. Portugal não cumpria a sua própria legislação. Tumbeiros com bandeira portuguesa eram avistados frequentemente; apesar de ilegais, não podiam ser apresados e julgados à luz dos tratados em vigor. E as advertências da embaixada britânica não se faziam esperar: “If the government of

Portugal denies to others the power to detain, in particular latitudes, Portuguese vessels in a trade which is now confessedly illegal, surely a heavy obligation rests upon that government to put a stop themselves [...] to prosecution of Portuguese slave trade in those latitudes”.67

A primeira grande medida que, sobre esta matéria, se toma no Direito Internacional Português é o Decreto de 10 de Dezembro de 1836, devido ao entusiasmo de Sá da Bandeira. Mal extintos os rumores da guerra civil, em que tão importante papel desempenhou, logo em 14 de Fevereiro de 1836, Sá da Bandeira apresentava às cortes um relatório fundado em melhoramentos que deveriam fazer-se no Ultramar e em que, a propósito do tráfico de escravos, dizia68 que “sem a

67Como relata Marques, João Pedro (1999). OC, pág. 198. 68Como relata Silva (1955). OC, págs. 130 e ss.

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abolição do comércio de escravatura, inútil seria legislar, porque uma parte daqueles para quem são destinadas as Leis, ou seriam arrebatados para além do mar, ou eles mesmos continuariam a ocupar-se no tráfico e nas guerras intestinas. Inútil seria procurar a cultura das terras, porque os capitais continuariam a empregar-se no tráfico dos escravos, por ser muito mais lucrativo do que qualquer outra indústria”.

O objectivo primordial de Sá da Bandeira era a supressão do tráfico de escravos, não apenas em obediência a preocupações de carácter humanitário, mas também como meio de realizar o desenvolvimento das colónias de África, aproveitando como elemento valorizador a respectiva população que o tráfico, no final de contas, desfalcava anualmente de muitos milhares de indivíduos.

Os objectivos da política de Sá da Bandeira nesta matéria estão patentes no relatório do Decreto, dirigido à Rainha D. Maria II.69

"A Índia primeiro, depois o Brasil, fez-nos deixar a África, nosso mais natural campo de trabalho. Mas a colonização do Brasil, a exploração de suas minas e bem depressa, o interesse de todas as outras potências que houveram o seu quinhão da América, foram os maiores inimigos da civilização de África.

O infame tráfico de negros, é certamente uma nódoa indelével na história das nações modernas, mas não fomos nós os primeiros, nem os únicos, nem os piores réus. Cúmplices que depois nos arguiram tanto, pecaram mais e mais friamente. Emendar pois o mal feito, e impedir que mais se não faça, é dever de honra portuguesa. E é do interesse da Coroa de Vossa Majestade.

Promovamos na África a colonização dos europeus, o desenvolvimento da sua indústria, o emprego dos seus capitais, e numa curta série dos anos tiraremos os grandes resultados que outrora obtivemos das nossas colónias.

Mas para isso é necessário que reformemos inteiramente as nossas Leis coloniais.

Como preliminar indispensável de todas as providências que para este grande fim, de acordo com as Cortes Gerais das Nação, Vossa Majestade não deixará de dar, os seus secretários de Estado, têm a honra de propor a Vossa Majestade, no seguinte projecto de Decreto, a inteira abolição do tráfico da escravatura nos domínios portugueses".

Como se pode notar, a abolição do tráfico de escravos era considerada por Sá da Bandeira a condição primária e necessária imposta pela reforma do sistema colonial português que se pretendia fazer.

Como resultado, o decreto toma medidas radicais.

Proíbe a exportação de escravos, por mar ou por terra, em todos os domínios portugueses situados ao Norte e ao Sul do Equador, desde o dia em que na Capital de cada um dos ditos domínios fosse publicado o decreto (art. 1º).

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Igualmente, proíbe a importação de escravos por mar, sob qualquer pretexto que se pretendesse fazer.70

Como se poderia esperar, o Decreto provocou larga reacção nas colónias, principalmente em Angola e Moçambique, cuja economia e cujo sistema financeiro assentavam, quase exclusivamente, na exportação de escravos.

No seu livro, “O trabalho rural Africano e a Administração Colonial”, Sá da Bandeira, em expressivas palavras dá-nos o teor dessa reacção.

«À execução das disposições deste Decreto, houve a mais tenaz oposição, especialmente em Angola e Moçambique, e, mesmo em Portugal, as injúrias e os ataques não faltavam contra o ministro que o iniciou. E das dificuldades que havia a vencer, dará uma ideia o seguinte extracto de uma carta, que o vice-almirante Noronha, Governador-Geral de Angola, me dirigiu de Luanda, em 5 de Junho de 1839 [… ] Vim acabar com o único rumo de comércio que fazia em giro os capitais destes habitantes, fechou assim a alfândega, e consequentemente causou um

deficit no balanço anual da receita e despesa, que talvez venha a ser de quase dois terços da totalidade deste. O portador e o executor de tantas calamidades, e o reformador de abusos inveterados, que de uma forma ou outra interessam tanta gente, não pode deixar de ser odiado, mormente não dando esperança de se deixar influenciar ou abrandar por meio algum [… ] Nestas circunstâncias, parece-me que é de toda a razão e de sã política que saia daqui quanto antes o objecto do primeiro movimento de ódio causado por esta revolução comercial, pois que vindo outro governador já acha os ânimos mais dispostos a colher e facilitar a execução que trata de pôr em prática. Em Moçambique a resistência à execução do Decreto foi mais forte ainda. De dois íntegros Governadores-gerais, incumbidos de fazer cessar o tráfico, um, o Marquês de Aracaty, sucumbiu falecendo, e o outro, o General Marinho, teve de retirar-se da província por motivos de uma insurreição, suscitada contra ele pelos negociantes negreiros».71

“Em 16 de Agosto de 1842 foi apresentada na Câmara de Pares uma proposta de Lei assinada por Sá da Bandeira e pelo Conde do Lavradio para a abolição gradual da escravidão no Estado da Índia. Em 1845 os mesmos apresentaram na Câmara dos Deputados uma proposta para que em todas as colónias portuguesas, os filhos das mulheres escravas que nascessem depois da Lei fossem considerados livres. Em 1846, desta vez tendo a mais a assinatura do Duque de Palmela, renova-se a mesma proposta. Em 26 de Maio 1849 foi apresentado na Câmara dos Pares outro projecto para abolição gradual do estado da escravidão. Em 1851 renova-se o projecto”.72

Todas estas tentativas porém, não conduziram a qualquer solução legislativa. A primeira grande medida legislativa contra a escravidão só surgiria em 1845 com o Decreto de 14 de Dezembro desse mesmo ano, que resultou de uma consulta do Conselho Ultramarino, de que fazia parte Sá da Bandeira.

70Continuava sendo permitida a importação de escravos por terra, devendo os escravos importados ser manifestados à sua

chegada a território português (art. 2º, parágrafo único do Decreto de 10 Dezembro).

71Da Bandeira, Sá (1873).O Trabalho Rural Africano e a Administração Colonial, Lisboa, pág. 17. 72Como relata Cunha, Silva (1955). OC, pág. 136.

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O Decreto tornava obrigatório o registo dos escravos, que se deveria efectuar no prazo de trinta dias. A obrigação do registo abrangia também os escravos que, depois da publicação do Decreto, fossem importados por terra (arts. 1º e 9º).

A falta do registo implicava a passagem dos escravos à categoria de libertos.

Os escravos pertencentes ao Estado eram desde logo declarados livres (art. 6º), passando à condição de libertos, com a obrigação de servirem o Estado durante sete anos.

Depois da publicação do Decreto, os escravos importados por terra passavam à condição de libertos (desta forma, se modificava o Decreto de 10 de Dezembro de 1836), com a obrigação de servir o seu senhor durante dez anos (art. 7º).

Os libertos ficavam à tutela de organismos, para esse efeito criado, com o título de Juntas Protectoras Dos Escravos e Libertos, que funcionariam na sede das capitais das Províncias Ultramarinas (art. 10º).

Os libertos e seus ex-senhores ficavam sujeitos ao regulamento anexo ao Decreto de 25 de Outubro de 1853 que, por esta forma, se generalizava (art. 7º).

A tutela dos libertos deveria considerar-se extinta sempre que estes se encontrassem em algumas das seguintes situações: Graduados por uma Universidade, Clérigo, oficiais do exército ou da armada, professor, proprietário rural, negociante de grosso trato, guarda-livros ou 1º caixeiro, administrador rural ou de fábricas, ou que tivessem exercido certos cargos públicos, como por exemplo o de Vereador (art. 33º).

No Decreto, ainda se podiam descortinar vários preceitos com o objectivo de diminuir o número de escravos. É exemplo disso a disposição que permitia a aquisição da liberdade pelos escravos que indemnizassem os respectivos donos; a que declarava livres os escravos até aos cinco anos de idade pelos quais, no acto do baptismo, se entregassem cinco mil réis fortes ao ministro baptizante (art. 31º); a que não permitia, nas vendas em hasta pública, que se afrontasse o lanço oferecido a bem da liberdade de escravos, desde que tal lanço cobrisse a avaliação (art. 37º), etc. Seguiu-se, à publicação deste Decreto, uma série de medidas sempre orientadas pelo mesmo objectivo: suprimir completamente a escravidão, como a seguir vamos demonstrar:

Em 5 de Julho de 1856, uma Lei declarou abolida a escravidão no Distrito de Ambriz, desde o Rio Lifune até ao Zaire.73

73A Inglaterra, fundando-se em razões de várias ordens, uma das quais era a necessidade de combater o tráfico de escravos,

pretendeu reivindicar para si os territórios de Ambriz, Molembo e Cabinda.

O Governador português resolveu liquidar a questão, mediante a ocupação efectiva de tais territórios, que se realizou com uma expedição militar desembarcada no Ambriz, em 15 de Maio de 1855. Este procedimento deu lugar a um conflito diplomático que se arrastou até Agosto de 1856. Para tirar à Inglaterra a aparente razão humanitária da necessidade de reprimir o tráfico de escravos, em 7 de Abril de 1856, o governo português apresentou na Câmara dos Deputados uma proposta de Lei abolindo a escravidão nesses territórios de Ambriz, Molembo e Cabinda.

Foi esta proposta aprovada em 15 de Junho do mesmo ano que se transformou na Lei de 5 de Junho de 1856 a que se faz referência no texto. Pode-se ver a análise pormenorizada da questão do Ambriz no livro de Marquês Do Lavradio - A abolição da

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Em 28 de Maio de 1856, outro Decreto, também referendado por Sá da Bandeira, determinou que os filhos de mulheres escravas nascessem livres, ficando os senhores das suas mães com direitos ao serviço dos filhos até aos vinte anos.

Finalmente, em 29 de Abril de 1858, data em que em Berlim se realizou o casamento de D. Pedro V, com Estefânia, foi publicado um Decreto, referendado ainda por Sá da Bandeira, declarando que o estado da escravidão ficaria abolido em toda a monarquia portuguesa decorridos vinte anos, a contar da sua data, isto é, no dia 29 de Abril de 1878.74

Estava, finalmente, atingido o resultado que se começara a preparar com a publicação do Decreto de 1836.

Não era tudo ainda, mas tinha sido dado um grande passo para vencer a resistência dos que se opunham tenazmente ao desaparecimento da escravatura.

Os defensores da causa não estavam satisfeitos. Assim, em 1869, conseguiram que novo Decreto fosse publicado, abolindo a escravidão, embora os escravos não transitassem imediatamente para a situação de plena liberdade. O Decreto declarava abolido o estado da escravidão em todos territórios da monarquia portuguesa, desde o dia da sua publicação, determinando que os escravos a essa data existentes passassem à qualidade de libertos, com direitos e deveres concedidos e impostos pelo Decreto de 14 de Dezembro de 1854 (arts. 1º e 2º).

Os serviços a que os libertos ficavam sujeitos, nos termos deste Decreto, pertenceriam aos seus antigos senhores, cessando o direito à exigi-los no dia 29 de Abril de 1856, para a supressão total da escravidão nos domínios portugueses (arts. 3º e 4º).75

b) A transição para o trabalho livre. Os libertos.

Tinha-se conseguido a supressão da escravidão. No entanto, preparando a transição para o regime de trabalho livre, uma forma de trabalho servil, o trabalho dos antigos escravos que passavam à condição de libertos, e a crítica precipitada encontra nesta circunstância fácil pretexto para se exercer. Necessário se torna apreciar as circunstâncias que se verificavam nas colónias e as dificuldades que a mesma abolição suscitava e que era necessário vencer.

Segundo Silva Cunha, podem seriar-se essas dificuldades da seguinte maneira:76

1. Oposição dos senhores de escravos que viam desaparecer uma fonte de receitas;

74Uma segunda nota sobre a nossa demarcação dos autores coloniais deve ser aqui feita, desta feita a respeito de Sã da Bandeira.

Vamos, para este fim, parafrasear a Professora Cristina Nogueira da Silva: “Sá da Bandeira, cuja insistência no tópico da cidadania dos povos nativos dos territórios coloniais foi, durante estes anos, muito clara, constitui, de facto, uma excepção. Mas a sua referência á cidadania de populações nativas foi sempre funcionalizada a objectivos conjunturais, nunca se constituindo numa doutrina constante e sustentada. Por outro lado, a sua posição radicalmente universalista, em alguns contextos, contrastou com discursos de exclusão explícita em outros, ainda que menos relevantes”. Vide a este respeito Da Silva, Cristina Nogueira (2009), OC, págs. 55-56.

75Pode ver-se uma nota completa de toda a legislação e de todos os projectos de lei relativos ao tráfico de escravos e à escravidão

no escrito anónimo – Apontamentos para a história da abolição da escravidão nas colónias portuguesas, Lisboa, 1880.

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2. Oposição das próprias autoridades coloniais que ficavam privadas de esse meio fácil e cómodo de exploração económica dos territórios sob sua administração;

3. Necessidade de indemnizar os proprietários de escravos da perda do capital que aqueles representavam;

4. Necessidade de criar um meio de substituir o trabalho dos escravos para evitar que paralisassem totalmente as actividades produtivas nas colónias;

As duas primeiras ordens de dificuldade eram facilmente vencíveis pela aplicação enérgica das medidas legislativas promulgadas, acompanhadas das autoridades recalcitrantes.

As duas últimas, porém, é que obrigavam à reflexão por se ligarem, a primeira a considerações de justiça, a segunda ao desenvolvimento e valorização dos territórios coloniais. Em boa verdade, tendo a escravidão vivido como instituição reconhecida pela ordem jurídica, no momento da sua suspensão não se podiam desconhecer os direitos dos então proprietários de escravos. Havia que instituir um modelo adequado de os indemnizar dos prejuízos que a abolição lhes acarretava. Por outro lado, libertando-se repentinamente os escravos da obrigação de trabalhar, não se criando processo de obter outra força de trabalho que os substituísse, necessariamente as colónias haviam de cair num marasmo económico completo.

“O projecto, antecipadamente apresentado nos pares em 1849, deveria discutir-se no início do ano seguinte, mas o ministro da Marinha voltou a requerer que o assunto ficasse adiado e o pedido de adiamento foi de novo aprovado.77 A questão estava num verdadeiro impasse e terá

sido fundamentalmente por isso que Sá da Bandeira optou por uma estratégia de fraccionamento, visando apenas pequenas vitórias, que, cumulativa e lentamente, lhe permitissem chegar à meta final. A partir de 1851 Sá dividiu o seu projecto de 1849, passando a privilegiar medidas parcelares que, justamente por o serem, pudessem contribuir para desmobilizar muita da resistência passiva verificada até então. Tratava-se de uma política a que ele próprio chamaria “actos progressivos” e foi com base nessa perspectiva fraccionada e ultra cautelosa que os abolicionistas começaram a plantar aquilo que viria a transformar-se numa verdadeira floresta legislativa destinada a acabar com a escravidão de uma forma insensível – de uma forma indolor. O primeiro passo neste sentido foi dado no início de 1851, quando Sá da Bandeira, Lavradio e Rodrigo da Fonseca voltaram a apresentar um projecto de Lei, mas desta vez visando apenas a

liberdade do ventre. A pedra angular dessa política, aquela que, supunha-se, mais facilmente desarmaria os opositores da emancipação, e que de certa forma serviria de suporte a tudo o resto, residiria na transformação em larga escala dos antigos escravos em libertos, espécie de subterfúgio que, ao pôr a tónica, já não na dicotomia escravo/livre mas num grau intermediário – o de liberto -, talvez permitisse compatibilizar tudo, isto é, o desejo reformador dos gradualistas sinceros, os sonhos de construção de novos Brasis acalentados por alguns, os interesses dos proprietários coloniais cujos capitais estavam parcialmente investidos em escravos, e a boa

77Vide a este respeito Marques, João Pedro (2008). Sá da Bandeira e o fim da escravidão. Vitória da moral, desforra do

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coincidência de um país que se queria progressista. Na verdade, a economia colonial dependia sobretudo dos empregadores locais, entre os quais se incluíam, em lugar de destaque, os negreiros ou ex-negreiros mais ou menos reconvertidos. Ora, de toda a evidência, parecia mais difícil emancipar os escravos numa fase em que começavam a surgir iniciativas agrícolas que careciam de mão-de-obra. Contudo, na esfera internacional, o protelamento era extremamente embaraçoso, pois Portugal prometera por várias vezes abolir a escravidão, O facto de não o fazer punha em causa o bom nome do País, trazia consigo um sentimento de vergonha nacional. Como Tavares de Macedo dizia: seria uma vergonha para nós o deixar por mais tempo este estado de

coisas. Morais Carvalho concordava: ficaríamos olhados perante as nações civilizadas como uma nação que não conhecia a condição do homem, se recusássemos votar a abolição da escravidão. Então para que o havemos de adiar indefinidamente?”78

“Exigia-se, pois, como reconhece João Pedro Marques, “que o País se movesse ou simulasse fazê-lo, para salvaguardar a honra nacional”. A Carta Constitucional de 1926 mantivera o termo liberto que, entretanto, tinha adquirido peso e seriedade na terminologia abolicionista internacional, o que permitiria harmonizar as contradições. Nesse pressuposto, em 1853 o governo concedeu terrenos baldios na Ilha do Príncipe ao ex-negreiro e neoplantor José Maria de Sousa e Almeida - Concessão que estaria mesmo no arranque da economia de plantação no arquipélago – e, com base num parecer positivo do Conselho Ultramarino, conferiu-lhe a possibilidade de fazer transportar para esses terrenos 100 escravos dos que possuía em Angola, “depois de lhes dar a liberdade”, transformando-os assim em libertos”. Estava-se em face de um sistema análogo à escravidão, sendo diverso desta última por ter o nome de liberto e ter uma limitação temporal. Como conclui João Pedro Marques “para os portugueses, o estatuto de

liberto, que, em teoria, deveria ser um estado transitório para a liberdade, converteu-se, de facto, em patamar de escravidão”. Entretanto, legislação não impedia que os libertos fossem inteiramente emancipados antes dos prazos previstos na Lei. Em 1856, como exemplifica João Pedro Marques, a Junta Protectora dos Escravos e Libertos de Angola criada pelo Decreto de Dezembro de 1853, decidiu conceder a liberdade plena a 32 libertos que reputou “hábeis para se dirigirem a si mesmos”, estabelecendo-os numa colónia agrícola. Uma parte do objectivo abolicionista definido no final da década de 1840 atingia-se, assim, por via governamental, “mas de uma forma distorcida e, mais do que isso, pervertida”. Acresce que o governo, “assumidamente pouco ambicioso, não ousou decretar a liberdade do ventre, deixando essa medida fundamental para as cortes”. 79

78Marques, João Pedro (2008). OC, págs. 69-72. 79Marques, João Pedro (2008). OC, págs. 69-75.

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3. O trabalho indígena na base do trabalho livre. A Lei de 1875 e o