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CAPÍTULO II O Direito do Trabalho moçambicano do período colonial e sua relação com a OIT

4. Modificação do sistema de 1878 Admissão do trabalho obrigatório O Regulamento de 1899 e os

4.1. O regulamento de 1899

O regulamento de 1899 consagrava em matéria de trabalho indígena uma orientação bastante diversa da fixada pelos regulamentos de 1878. Logo no art. 1º está disposto que todos os indígenas das províncias ultramarinas portuguesas são sujeitos à obrigação, moral e legal, de procurar adquirir pelo trabalho os meios que lhes faltam, de subsistir e de melhorar a própria

83Ennes, António (1946). Moçambique. Edição da Agência Geral das Colónias, Lisboa, págs. 70–71.

84A infra alusão feita em relação ao discurso dos autores oitocentistas, do qual nos demarcamos, vale também para o regime de

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condição social. Têm plena liberdade para escolher o modo de cumprir essa obrigação, mas se a não cumprem de modo algum, a autoridade pública pode impor-lhes o seu cumprimento.

Consagrava-se assim o princípio da coercibilidade ao trabalho, pelas autoridades, dos indígenas que, voluntariamente, não procuravam auferir pelo esforço próprio os meios de subsistência, defendido por António Ennes na passagem do Relatório de Moçambique que transcrevemos, o que não admira, pois o Regulamento de 1899 foi elaborado por uma comissão nomeada em 1898, por ele presidida.85

O Regulamento constava de 65 artigos e previa a publicação de regulamentos locais, nas colónias, que orientavam a sua execução.86

Ao longo do séc. XIX, a escravidão passou a ser encarada como um sistema moral e legalmente abominável, por atentar contra progresso humano, ao espírito liberal da época e às crenças cristãs. O processo de abolição da escravidão deu-se de forma vigorosa e relativamente pioneira, como sucedeu na Grã-Bretanha. Noutros casos, no entanto, como em Portugal, deu-se de modo lento e titubeante. Noutros, ainda, no meio de uma convulsão geral, como foi o caso dos Estados Unidos. Seja como for, as nações ocidentais aboliram a escravidão dos seus ordenamentos jurídicos. Ao cair do século XIX, alguns destes países abolicionistas participaram no Scramble

for África – a conquista e ocupação do interior africano. Estes países enveredaram pela

exploração dos novos territórios com recurso ao trabalho forçado dos negros, em formas de exploração da mão-de-obra muito próximas da escravidão que se supunha abolida. Como explica João Pedro Marques, “em Portugal tem-se procurado explicar esse paradoxo aduzindo razões de natureza económica. Essa tese é sintetizada de seguinte forma. Desde o eixo dos meados de Oitocentos que os Governos de Lisboa pretendiam a abolição total e completa da escravidão e implementação do desenvolvimento económico e social das colónias. Foi, no fundo, esta a visão que acabaria moldando toda a legislação emancipacionista produzida desde a década de 1850 até ao Regulamento de 1878”. Todavia, como reconhece aquele autor, a oposição interna das burguesias coloniais e a indiferença das débeis burguesias metropolitanas, que em quase nada se envolviam em investimentos em África, foram protelando e obstaculizando a aplicação das Leis. “Este fenómeno viria a ter como consequência uma lenta transição do modo de produção escravagista para o capitalista. Teria sido nesse contexto de lenta transição que o Scramble for

África de finais de oitocentos veio precipitar os acontecimentos e inverter o caminho. Esta inversão, a que usualmente se associa o nome de António Ennes, viria a tornar-se evidente no Decreto de 1894, que impunha o chamado “trabalho correccional” por multas não pagas, embriaguez e outros pequenos delitos, e terá ficado ainda mais nítida no Regulamento laboral de 1899, que introduzia o “ trabalho compelido”, assumindo que não havia que ter escrúpulos em forçar os negros à actividade produtiva.”87

85A comissão foi nomeada por Portaria de 26 de Outubro de 1898, sendo Ministro da Marinha e Ultramar o Conselheiro António

Eduardo Vilaça.

86A publicação deste regulamento está expressamente prevista no art. 2º. 87Vide sobre esta matéria Marques, João Pedro (2008). OC, págs. 125-126.

97 4.2. O Regulamento de 1911

O Regulamento de 1899 manteve-se em vigor até 27 de Maio de 1911, data em que um Decreto com força de Lei veio substituí-lo, embora mantendo intacto o sistema por aquele Decreto estabelecido.

O Decreto integrava 66 artigos, quase todos com a mesma redacção dos correspondentes ao regulamento de 1899.

4.3. O Regulamento de 1914

O regulamento aprovado pelo Decreto de 27 de Maio de 1911 vigorou por curto espaço de tempo, na medida em que, três anos depois, o Decreto nº 951, de 4 de Outubro de 1914, aprovando o “Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas nas colónias portuguesas”, veio a declarar revogada toda a legislação anterior sobre trabalho indígena (art. 2º).

O Regulamento consta de um extenso Diploma, constituído por 264 artigos que, agrupados em X Capítulos, tratam das seguintes matérias:

I – Disposições gerais;

II – Da tutela dos trabalhadores indígenas;

III – Dos contratos de prestação de serviços (Secção I – Disposições gerais; Secção II – Dos contratos para a prestação de serviços dentro da colónia; Secção III – Dos contratos para fora de colónia estrangeira);

IV – Do trabalho compelido e do trabalho correccional; (Secção I – Do trabalho compelido; Secção II – Do trabalho correccional);

V – Dos agentes e sociedades de recrutamento (Secção I - Dos agentes de recrutamento; Secção II – Das sociedades de recrutamento):

VI – Do transporte de serviçais por mar;

VII – Vencimentos, salários, alimentação, vestuário e habitações dos serviçais e seu tratamento médico;

VIII – Da Junta central e das juntas coloniais de trabalho e emigração;

IX – Das penalidades e sua aplicação (Secção I – Penalidades; Secção II – Forma de processo); X – Disposições transitórias.

Mantém-se o sistema-base do Regulamento de 1899. Assim, segundo o art. 1º todo o indígena válido das colónias portuguesas fica sujeito, por esta Lei, à obrigação moral e legal de, por meio de trabalho, prover ao seu sustento e de melhorar sucessivamente a sua condição social.

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Nos termos do art. 94º, o indígena que não cumprisse voluntariamente a obrigação de trabalho, deveria ser levado a fazê-lo pelas autoridades, que empregariam os meios necessários, educando- o e civilizando-o.

Quando o indígena, depois de ser ter verificado não beneficiar de qualquer isenção, se recusasse, esgotados os meios de persuasão, a trabalhar, seria então intimado e compelido a fazê-lo (§ único do art. 94º).

Os meios de compulsão só podiam ser os indicados no art. 95º e o trabalho compelido poderia ser utilizado, nos termos do art. 97º, tanto por entidades públicas com por empresas privadas. Os indígenas que resistissem aos meios de compulsão seriam julgados como vadios e punidos com o trabalho correccional, nos termos do art. 96º.

O trabalho compelido seria prestado nas condições estabelecidas para o trabalho sob contrato porque, nos termos do art. 106º, antes de serem apresentados os trabalhadores compelidos à entidade utilizadora dos seus serviços, deveria esta ou o seu representante legal, assinar, perante o curador ou agentes, um contrato de prestação de serviços dos indígenas que lhes era entregue, ficando o curador e seus agentes obrigados a exercer sobre os trabalhadores compelidos a mesma acção de tutela que sobre os trabalhadores livres.

O trabalho correccional, em princípio, só poderia ser prestado em obras públicas do Estado ou municipais (art. 107º, e parágrafo 1º) e os indígenas a ele sujeitos tinham direito à alimentação e alojamento por conta do Estado ou município que os empregasse.

Quando o Estado ou Municípios não pudessem empregar os indígenas, poderiam estes ser obrigados a servir particulares que os requisitassem (art. 109º).

As condições das relações dos patrões de serviçais compelidos ou condenados a trabalho correccional para com os seus serviçais, e vice-versa, seriam as existentes entre os patrões e serviçais livres, devendo sobre eles exercer-se a tutela do curador e seus agentes.

5. Alteração do sistema de 1899. O Código do Trabalho Indígena de 1928 e a