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CAPÍTULO II O Direito do Trabalho moçambicano do período colonial e sua relação com a OIT

3. O trabalho indígena na base do trabalho livre A Lei de 1875 e o Regulamento de 1878

3.1. Extinção da condição de liberto. A Lei de 29 de Abril de 1875

O sistema dos libertos devia durar até 1878, mas logo em 1874, pelo Decreto de 31 de Outubro, sofre o primeiro golpe com a supressão do estado de liberto, em Cabo Verde, e em 1875, a Lei de 29 de Abril declara-o extinto, um ano depois da sua publicação, em todas as colónias. Os ex- libertos continuavam sujeitos à tutela pública exercida por intermédio de um curador geral, e o princípio da liberdade de trabalho que se proclamava, dizia respeito apenas ao ajustamento das suas condições, principalmente no respeitante a salário, uma vez que os ex-libertos ficavam sujeitos à obrigação de servirem os mesmos patrões por espaço de dois anos.

Para regulamentar a Lei de 29 de Abril de 1875, em 20 de Dezembro do mesmo ano foi publicado um Decreto que constava de 108 artigos divididos em onze capítulos, versados sobre a condição de liberdade conferida aos libertos e da tutela a que ficam sujeitos, os diversos tipos contratuais celebrados com os libertos, suas condições, os tipos legais de infracções e suas molduras penais, etc.

3.2. O regulamento de 1878

A Lei de 29 de Abril de 1875, na opinião de Silva Cunha, ainda transigia com o trabalho obrigatório, na medida em que estabelecia o contrato necessário dos ex-libertos, com os seus antigos patrões, pelo prazo de dois anos. Só a 21 de Novembro e 1878 foi dado o golpe definitivo no sentido do estabelecimento do princípio da liberdade do trabalho.80/81

80Vide sobre esta matéria Cunha, Silva (1955). OC, pág. 146.

81Convirá deixarmos uma nota sobre a opinião do regime liberal de Cunha Silva e de outros autores, de que nos demarcamos.

Aliás, como a Professora Cristina Nogueira da Silva adianta, o conhecimento das políticas coloniais do primeiro liberalismo “tem sido dificultado pelas reflexões tardo-oitocentistas sobre a política colonial do primeiro liberalismo português. Essas reflexões perduraram no tempo, sem serem problematizadas, em parte por se terem revelado funcionais às sucessivas conjunturas ideológicas do colonialismo português. Por isso um conhecimento mais rigoroso daquele passado exige a identificação dos equívocos em que assentaram aquelas reflexões e dos elementos que verdadeiramente distinguiram a política colonial portuguesa de oitocentos”. E esta autora avança mesma com a enumeração dos equívocos: Primeiro: “A suposição de que a ausência de alusões ao indígena nos grandes diplomas legislativos do século XIX, significou a sua inclusão na cidadania, a sua igualdade face aos cidadãos da metrópole. Pelo contrário, significou, muitas vezes, uma exclusão ainda mais profunda do que a exclusão doutrinalmente formulada”; Segundo: A opção por uma assimilação legislativa e administrativa foi clara e consensual, durante o século XIX, ao contrário do que sugerem os autores dos finais desse século”. Terceiro: “A extensão dos Códigos da metrópole ao ultramar não ocorreu de forma simples e linear, como os autores sugerem. Em primeiro lugar por que essa extensão não foi automática. Em segundo lugar porque, na altura em que se mandava aplicar os Códigos, ou se indicavam imediatamente as ressalvas a fazer, ou se autorizavam futuras modificações. Em terceiro lugar, porque mandar aplicar não significava executar”. Finalmente, “a exportação da legislação dos Códigos metropolitanos para o ultramar, quando ocorreu, teve quase sempre por referência uma sociedade essencialmente europeia ou, pelo menos, fortemente europeizada, e não as sociedades nativas dos territórios que se queria colonizar”. Estas reflexões podem ser encontradas in Da Silva, Cristina Nogueira (2009), OC, págs. 45- 66.

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Uma Lei publicada nessa data aprova o regulamento para os contratos de serviçais e colonos nas províncias da África portuguesa. Constava de 107 artigos que se distribuíam pelos seguintes capítulos:

Cap. I – Disposições preliminares;

Cap. II – Da curadoria geral dos serviçais e colonos; Cap. III – Das condições dos serviçais e colonos;

Cap. IV – Dos contratos nas terras avassaladas e em país estranho;

Cap. V – Dos contratos de prestação de serviços e colonização fora da respectiva província; Cap. VI – Das condições de transporte;

Cap. VII – Dos contratos por conta da província,

Cap. VIII – Da vadiagem, das penas que lhe são impostas e da garantia de contratos; Cap. XIX – Dos emolumentos devidos, sua aplicação e multas;

Cap. X - Da educação e instrução que deverá ser dada aos colonos e serviçais contratados. Este diploma veio desenvolver largamente a aplicação do princípio da liberdade de trabalho, que vinha sendo estabelecido já em 1875, pela Lei de 29 de Abril, e seu regulamento de 29 de Dezembro.

Logo no art. 1º se declara extinta a tutela pública nesses diplomas referida e, no art. 2º, declara- se a cessação do dever dos ex-escravos servirem, embora sob contrato, os antigos patrões. No art. 3º, diz-se que ninguém podia ser obrigado a contratar os seus serviços, salvo os indivíduos que fossem julgados como vadios, que continuariam a ser obrigados a trabalhar nos termos fixados no Regulamento.

A qualificação como vadio só podia ser feita nos termos do art. 256º do Código Penal (art. 22º).82

Os vadios assim classificados poderiam ser sujeitos a trabalho obrigatório, nos termos do art. 90º e seguintes (Cap.VIII).

O sistema começou a vigorar e os seus resultados podem avaliar-se pelo que em 1893 escrevia António Ennes no seu magistral relatório sobre Moçambique. “Abolidos os crimes e horrores da escravidão,” dizia, “os interesses económicos recomendavam ao legislador que diligenciasse aproveitar e conservar os hábitos de trabalho que ela impunha aos negros, embora proibisse, para os conservar e aproveitar, o emprego dos meios por que tais hábitos haviam sido impostos. Converter um escravo em homem livre era um benefício para ele e para a sociedade, mas deixar

82Art. 256º - Aquele que não tem domicílio certo em que habite, nem meios de subsistência, nem exercita habitualmente alguma

profissão ou ofício, ou outro mester em que ganhe sua vida, não provando necessidade de força maior, que o justifique de se achar nestas circunstâncias, será competentemente julgado e declarado vadio, e punido com prisão até seis meses, e entregue à disposição do governo, para lhe fornecer trabalho pelo tempo que parecer conveniente.

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transformar um trabalhador em vadio depreciava esse benefício”. O que se fez, então? Como conclui António Ennes, “[… ] Por medo de que as práticas do regime abolido lhe sobrevivessem, elaboraram-se Leis e regulamentos encimados por uma espécie de declaração dos direitos dos negros, que lhes dizia textualmente: de ora avante ninguém tem a obrigação de trabalhar; e os tribunais e as autoridades administrativas foram encarregados de proteger contra qualquer atentado o sagrado direito da ociosidade reconhecida aos africanos. Na Metrópole não se reconhece aos brancos semelhante direito. Na Metrópole todos são obrigados a procurar adquirir pelo seu trabalho os meios de subsistência que lhes faltam, sob pena de serem punidos como vadios. Na Metrópole professa-se uma filosofia e uma jurisprudência que preceituam a todos seres racionais o cuidarem do seu próprio aperfeiçoamento, a todos os membros da sociedade o cooperarem para o bem colectivo. Todavia, o pavor da escravatura, o frenesi de opor as doutrinas dos seus defensores, rasgadas proclamações liberais e humanitárias, saltaram por cima do código e da moral do bom senso e das necessidades económicas para ensinarem ao negro que tinha a liberdade de continuar a viver pelo estado selvagem, pois que tal é a necessária consequência da liberdade de não trabalhar, deixada a quem só pelo trabalho pode entrar no grémio da civilização [… ]”.83 Esta era a visão dos finais do século XIX e estendida até antes da

segunda metade do século XX, e que constituía a tónica do propalado Relatório de António Ennes, cujo desiderato era introduzir o trabalho forçado.84

Convém deixar aqui o registo de que a avaliação feita por António Ennes não é uma avaliação válida, rigorosa, mas completamente enviesada, contaminada pelas suas convicções ideológicas. Apesar de ter sido alvo de críticas, o Regulamento esteve em vigor até 1899. Nesse ano, a 9 de Novembro, é publicado um Decreto que aprova um novo Regulamento do Trabalho dos Indígenas e que inicia um novo período na história do regime do trabalho indígena nas colónias portuguesas.

4. Modificação do sistema de 1878. Admissão do trabalho obrigatório. O