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CAPÍTULO I- O trabalho indígena no Direito Colonial Internacional

2. Noções gerais

2.5. Formação e evolução do Direito Colonial Internacional do Trabalho

2.5.1. As fases do processo de formação e da evolução

2.5.1.2. Fase da preocupação do combate da escravidão e tendência para a proibição do trabalho

A segunda fase da formação e evolução das normas do Direito Colonial Internacional, tem por objecto o trabalho indígena e caracteriza-se pela preocupação de combater a escravidão e tendência para a proibição do trabalho obrigatório.47

O comércio de escravos supunha o reconhecimento da existência da instituição da escravatura e, enquanto esta fosse juridicamente admitida, todo o combate que se quisesse fazer àquele comércio enfrentaria inúmeras dificuldades e nunca poderia ser totalmente eficaz. Foi o que efectivamente sucedeu com a campanha antiescravagista. Preocupando-se com a repressão do tráfico marítimo, não atacando directamente o que estava na sua origem - a escravidão - deixou intacto no interior de África um florescente comércio de escravos que se dirige principalmente para os pequenos Estados Islamizados da periferia do continente.48

Novas normas de Direito Comercial Internacional surgem viradas também para a escravidão e não apenas para a repressão do tráfico de escravos.

Ø A Conferência de Berlim. O Acto Geral da Conferência. Os arts. VI e IX. Seu significado

As normas que iniciam esta nova fase do Direito Colonial Internacional sobre trabalho indígena podem ser encontradas no Acto Geral da Conferência de Berlim, maxime nos arts. VI e IX. É dito que todas as potências que exerçam direitos de soberania ou qualquer influência nos ditos territórios (faz-se referência aos territórios da bacia convencional do Zaire, definida no art. 1º do Acto Geral), encarregam-se de velar pela conservação das populações indígenas e pela melhoria das suas condições morais e materiais de existência e a concorrer para a supressão da escravatura e sobretudo do tráfico de negros; as potências obrigam-se a proteger e favorecer, sem distinção de nacionalidade nem de cultos, todas as instituições e empresas religiosas, científicas ou caritativas, criadas e organizadas com esses fins ou destinando-se a instruir os indígenas e a fazer-lhes compreender e apreciar as vantagens da civilização; a liberdade de consciência e a tolerância religiosa são expressamente garantidas aos indígenas nacionais e estrangeiros. O livre e público exercício de todos os cultos, o direito de exigir edifícios religiosos e organizar missões pertencentes a todos os cultos não serão submetidos a qualquer ratificação ou entrave; mais, de acordo com os princípios do Direito das Gentes, tal como são conhecidos pelas Potências

Signatárias é proibido o tráfico de escravos, devendo ser consideradas como proibidas as

47Como caracteriza Cunha (1955). OC, págs. 43 e ss.

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operações que, por terra ou por mar, forneçam escravos ao tráfico. As potências que exercem ou venham a exercer direitos de soberania ou qualquer influência nos territórios que formam a bacia convencional do Congo declaram que esses territórios não poderão servir de mercado ou de via de trânsito para o tráfico de escravos qualquer que seja a sua raça. Cada uma destas potências obriga-se a empregar todos os meios em seu poder para fazer terminar esse comércio e punir os que nele se empregam.

Do que acabamos de expor, podemos destacar alguns princípios de relevo para o nosso trabalho, a saber:

O art. VI consagra nitidamente o princípio do dever geral dos povos colonizadores velarem pelo bem-estar dos povos colonizados, sob todos os aspectos e, em aplicação deste princípio, põe em realce o dever de suprimir a escravidão e o tráfico, que constituíam na época, o flagelo que mais os atingia.

O art. IX reforça o dever de suprimir o tráfico, referindo-se especialmente ao tráfico terrestre. Se é verdade que o Acto Geral da Conferência de Berlim marca uma nova fase de Direito Colonial Internacional sobre o trabalho indígena, o que lhe estará subjacente?

“O objectivo genérico da Conferência, era fazer os indígenas compreender e apreciar as vantagens da civilização”, como Marcelo Caetano escreveu décadas depois. Mas, como veremos, tratava-se de bem mais do que isso.49

Se a Conferência de Berlim se debruçou essencialmente sobre questões da política internacional e colonial, sobre princípios e modus operandi comerciais e ainda sobre o enquadramento jurídico que para além de regular a questão central da reunião (a regulamentação territorial do Congo ou Zaire pelas várias potências europeias directa e indirectamente interessadas), a verdade é que as menções humanitárias e religiosas não só não deixaram de ser debatidas como possibilitaram a justificação do processo colonial e dos seus movimentos expansionistas como um imperativo ético. Aos argumentos de ordem económica e comercial, de tipo científico e tecnológico e de raiz evangélica que suportavam e legitimavam os projectos e os programas coloniais juntava-se uma ética imperial que deveria governar o exercício da dominação colonial no seu conjunto e que se encontrava fundada, como vimos, numa obrigação civilizacional tendente a “preservar as tribos nativas” e a “assegurar o seu bem-estar moral e material”. “Esta obrigação assentaria numa promoção da liberdade comercial avessa aos tradicionais mecanismos exclusivistas e proteccionistas, bem como, aspectos de crucial importância, na constituição de esferas declinatórias de influência política e económica e na generalidade guiadas por princípios partilhados da “civilizada” administração, ou seja, por constituição dos processos de colonização e dominação colonial como elixires e garantes da moralização, na mais ampla acepção da palavra, dos contextos coloniais. O universalismo dos fundamentos da civilização europeia era

49Jerónimo, Miguel Bandeira (2010).Livros Brancos, Almas Negras. A missão civilizadora do colonialismo português c.1870-

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tomado como inquestionável e a ideia da missão civilizadora, tanto na sua vertente religiosa como secular, era partilhada pelos principais interesses coloniais”.50

Ø A Conferência de Bruxelas. O Acto Geral da Conferência

O Acto geral da conferência de Berlim limitava-se a uma declaração de princípios, sem criar, no entanto, medidas de carácter prático para a sua aplicação. Os preceitos do art. VI e do art. IX do Acto Geral da Conferência de Berlim são afirmações de princípios, mas não estabelecem medidas práticas para a sua efectivação. É no acto Geral da conferência de Bruxelas que aparecem as medidas de carácter prático para a aplicação dos princípios do Acto Geral da conferência de Berlim.

Como se diz no art. 1º, “o meio de que, com esse fim de combater a escravatura no interior de África, as potências entendem dever usar como mais eficaz é a organização progressiva dos serviços administrativos, judiciais, religiosos e militares nos territórios de África colocados sob a soberania ou sob o protectorado das Nações Unidas”.

Como diz o professor Marcelo Caetano, “traçava-se todo um programa de ocupação efectiva, no interior de África, por meio do desenvolvimento dos serviços administrativos apoiados em estações, cuja função acidental de combate ao tráfico se perde no meio de numerosas e importantes missões de carácter civilizador e protector".

Como medidas exclusivamente destinadas ao combate da escravatura e do tráfico, contidas no Acto Geral, podem indicar-se:

O reconhecimento do direito mútuo de visita, busca e apresamento de navios no mar (arts. 20º a 26º);

A criação de uma comissão internacional com sede em Zanzibar (art. 27º), com a missão de centralizar todos os documentos e informações, cuja natureza pudesse facilitar a repressão da escravatura na zona marítima (art. 77º);

A permuta entre os governos de documentos e informações relativas à escravatura (art. 81º a 85º);

A proibição da importação, trânsito e saída de escravos pelas potências contratantes cujas instituições admitissem a escravidão doméstica (art. 62º);

A criação da obrigação de promulgar legislação interna para a repressão do tráfico (art. 5º);

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Como se pode ver, o Acto Geral da Conferência de Bruxelas funciona em relação ao Acto de Berlim como um regulamento relativamente a uma Lei. Se isso é verdade, o que dizer do que atrás do véu se esconde?

Como constata Miguel Bandeira Jerónimo, a realização de uma conferência em Bruxelas, quatro anos depois da de Berlim, centrada precisamente nestas questões, “é uma prova indesmentível da importância dos assuntos civilizacionais na expansão colonial europeia da segunda metade do século XIX”. Igualmente, “a agitação e a competição missionária nos mundos católico e protestante, esteve no cerne dos processos políticos e económicos que conduziram a Bruxelas”. No domínio religioso, “a deliberada associação da escravatura ao islamismo no continente não só mobilizou os sectores católicos como forneceu mais um poderoso elemento passível de ser utilizado e instrumentalizado pelos governos interessados em intensificar ou consolidar os seus planos expansionistas”. “Só a expansão e a consolidação da dominação colonial poderiam cercear o crescimento do tráfico terrestre de escravos e simultaneamente, obstar ao derrame da fé e das estruturas políticas islâmicas”. “O Acto Geral expressou com clareza esta articulação entre ocupação colonial, supressão da escravatura e civilização, consagrando-a e consolidando-a de modo apurado na ordem dos discursos e das práticas imperiais e coloniais”. O fim da escravatura no contexto colonial “dependia da ocupação efectiva dos seus territórios por parte das potências coloniais, que, por sua vez, se tornava condição necessária para a civilização das populações nativas das colónias”. A organização de um aparato administrativo, judicial, militar e religioso que se disseminasse territorialmente era defendida, com especial referência ao estabelecimento de “estações fortemente ocupadas” no interior do continente africano. “A construção de uma rede de comunicação férrea que, articulada com a rede de estrada, cimentasse a circulação de bens, de pessoas e de informação e aumentasse o poder de penetração institucional das administrações coloniais, o estabelecimento de linhas telegráficas e a organização de expedição e de colunas móveis, que reforçassem o projecto repressivo de escravatura e solidificassem a ocupação colonial eram os eixos fundamentais da estratégia colonialista partilhada pelas principais potências”. “Apesar das inúmeras debilidades e da enorme distância que separava a retórica humanitária e a concretização de políticas efectivas que conduzissem de facto ao declarado objectivo da supressão da escravatura e do tráfico de escravos, o Acto Geral – que apenas entrou em vigor em 2 de Abril de 1892 e durou até 1919 – recolocou estes aspectos no centro dos debates coloniais, do mesmo modo que os tornou um recurso indispensável na promoção da causa colonial e imperial, depurando e melhorando o seu uso prévio. O ambiente internacional face a questões humanitárias e filantrópicas centradas no continente Africano e na escalada colonizadora que o acometeu afectou, e muito, o colonialismo português de finais de século XIX e princípio do século XX”.51

56 Ø A Convenção de Saint-Germain-en-Laye

Os Actos Gerais da Conferência de Berlim e Bruxelas estiveram em vigor até à guerra de 1914- 1919. Com o fim desta, a Conferência de Paz preparou uma Convenção de revisão daqueles dois Tratados, que os revogou, quase totalmente.

Os Princípios do art. VI do Acto Geral de Berlim passaram para a nova Convenção, onde quase com a mesma redacção, constituíram o art. 11º. Assim, o novo preceito, na parte que respeita ao tratamento das populações indígenas, passou a ter a seguinte redacção: as potências signatárias que exercem direitos de soberania ou qualquer autoridade nos territórios africanos, continuarão a velar pela conservação das populações indígenas, bem como pela melhoria das suas condições morais e materiais, esforçar-se-ão, em especial, por assegurar a supressão completa da escravatura sob todas as suas formas e do tráfico de negros, por terra e por mar.

Como se pode ver, há uma nítida semelhança entre o preceito acabado de enunciar e o art. VI do Acto Geral de Berlim. No entanto, enquanto no Acto Geral de Berlim se fala apenas na supressão da escravatura na bacia convencional do Zaire, no art. 11º da Convenção de Saint- Germain que transcrevemos, fala-se na supressão da escravatura sob todas as suas formas.

Ø A convenção de 25 de Setembro de 1926. O aparecimento de regras restritivas de utilização de trabalho forçado

A Convenção de Saint-Germain-en-Laye vai constituir a única norma de Direito Colonial Internacional em vigor, em matéria de escravidão e tráfico até 1926, ano em que um nova Convenção foi publicada, da qual constam os velhos princípios já afirmados nas conferências de Berlim, Bruxelas e Saint-Germain, mas com fisionomia diferente e acrescidos da consagração expressa de alguns outros relativos ao trabalho obrigatório. Vejamos, então, quais os princípios que se podem extrair da Convenção de 1926.

Alguns desses princípios não são novidade, como é o caso dos princípios da proibição do tráfico de escravos e da escravidão. Outros, porém, aparecem pela primeira vez com o carácter de princípios gerais, como é caso vertente dos princípios sobre a regulamentação do trabalho obrigatório. Encontramo-los no art. V da Convenção, que dispõe que “as altas partes contratantes reconhecem que o recurso ao trabalho forçado ou obrigatório pode ter graves consequências e obrigam-se, cada uma no que respeita aos territórios submetidos à sua soberania, jurisdição, protecção, suserania ou tutela, a tomar medidas úteis para evitar que o trabalho forçado ou obrigatório conduza a situações análogas à escravatura”.

57 Mais, entende-se o seguinte:

1º. Que, sob reserva das disposições transitórias enunciadas no nº 2, o trabalho forçado ou obrigatório só pode ser exigido para fins públicos.

2º. Que, nos territórios em que o trabalho forçado para outros fins que não públicos, existe ainda, as altas partes contratantes se esforçarão por, progressivamente, o abolir, tão depressa quanto possível, e que enquanto existir só será empregado a título excepcional, contra uma remuneração adequada e com a condição de não poder ser imposta mudança de lugar da residência habitual. 3º. E que, em todos os casos, as autoridades centrais competentes do território interessado assumirão a responsabilidade do recurso ao trabalho forçado ou obrigatório.

2.5.1.3. Fase da organização

A terceira fase da formação e evolução das normas do Direito Colonial Internacional é a “fase da organização”. Enquanto as duas fases anteriores caracterizavam-se pela formação progressiva do princípio da liberdade de trabalho, esta destaca-se pela organização deste princípio, nas várias modalidades de trabalho em que entram indígenas, e pelo alargamento do campo de aplicação do princípio de protecção aos trabalhadores.

As matérias sobre que incidem as normas que constituem esta nova fase são as seguintes: a) Trabalho obrigatório;

b) Recrutamento de trabalhadores; c) Contratos de trabalho;

d) Sanções penais por falta aos contratos de trabalho, cometidas pelos trabalhadores; Vejamos, pois, como extraímos esta conclusão.

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Ø A convenção de 28 de Junho de 1930 sobre trabalho obrigatório

O problema do trabalho obrigatório aparece-nos de novo no campo do Direito Colonial Internacional, desta vez por acção da OIT, com a publicação de um projecto de Convenção sobre esta modalidade de trabalho, em 28 de Junho de 1930.52

No projecto da convenção foram sucessivamente estabelecidas normas sobre as seguintes matérias: Medida em que podia ser utilizado o trabalho obrigatório;

b) Conceito de trabalho obrigatório;

c) Sua regulamentação;

d) Campo geográfico de aplicação da Convenção;

e) Processo de ratificação da Convenção e sua entrada em vigor; f) Processo de denúncia e cessação de vigência.

Ø Convenção de 20 de Junho de 1936 sobre a regulamentação do recrutamento

Cinco anos passaram sem que qualquer nova norma internacional sobre o trabalho indígena fosse publicada, depois de regulado o trabalho obrigatório pela Convenção que acabamos de fazer referência. Porém, a CIT de 1935, incluiu na ordem do dia o recrutamento de mão-de-obra nas colónias e nos outros territórios com condições de trabalho análogas. Em 20 de Junho de 1936 foi publicado o projecto de Convenção no 50 sobre a regulamentação de certos sistemas particulares do recrutamento dos trabalhadores.53

As matérias tratadas são as seguintes:

a) Conceito de recrutamento e de trabalhador indígena; b) Regulamentação geral do recrutamento;

c) Campo geográfico de aplicação;

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A Convenção entrou em vigor em 1 de Maio de 1932, tendo sido registadas até 1947 vinte e duas ratificações, segundo Cunha, Silva (1955). OC, pág. 57. Não foi ratificada por Portugal. Pode-se ver o seu testo completo no Bulletin Officiel du B.I.T. Vol. XV, pág. 47 e ss.

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A convenção entrou em vigor em 22 de Setembro de 1939. Foram registadas quatro ratificações, incluindo a de Portugal, segundo Cunha, Silva (1955). OC, pág. 59. Encontra-se publicada no Bulletin Officiel du B.I.T., Vol. XXI, p. 111 e ss.

59 d) Processo de ratificação e entrada em vigor; e) Processo de denúncia e cessação de vigência.

Ø Convenção de 27 de Junho de 1939 sobre contratos escritos de trabalho

A comissão de Peritos de Trabalho Indígena, constituída em 1926 na RIT escolhera, para serem objecto de acção internacional, as questões de trabalho obrigatório e do trabalho sob contrato a longo prazo. Este último aspecto só em 1937 foi incluído na ordem do dia de CIT, tendo sobre ela sido publicado em 27 de Junho de 1939 “o projecto da Convenção no 64, sobre regulamentação dos contratos escritos de trabalho de trabalhadores indígenas”.54

O Projecto que consta de 28 artigos, tratava das seguintes matérias:

a) Definição do seu campo de aplicação material pela fixação de conceito de contrato, trabalhador indígena e patrão;

b) Regulamentação dos contratos;

c) Fixação de princípios sobre a sua aplicação no tempo; d) Determinação do campo geográfico de aplicação; e) Processo de ratificação e entrada em vigor; f) Processo de denúncia e cessação de vigência.

Ø Convenção de 27 de Junho de 1939 sobre sanções penais

Na mesma data em que se publicava o projecto de Convenção sobre contratos escritos de trabalho, foi publicado um outro “projecto de convenção nº 65 sobre sanções penais por faltas ao contrato de trabalho por parte dos trabalhadores indígenas”.55 Consta de dez artigos apenas. Nele

se trata das seguintes matérias:

54A Convenção entrou em vigor em 8 de Junho de 1948. Até 1947 foram registadas duas ratificações. Não foi ratificada por

Portugal, segundo Cunha, Silva (1955). OC, pág. 61. O seu texto oficial pode ver-se no Bulletin Officiel du B.I.T. na pág. 48 do Vol. XXIV.

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a) Definição do seu campo de aplicação material pela determinação dos contratos a que se aplica e do conceito de falta de contrato;

b) Fixação do princípio da abolição progressiva das sanções penais; c) Campo de aplicação geográfica;

d) Processo de ratificação e entrada em vigor; e) Processo de denúncia e cessação de vigência.