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CAPÍTULO II O Direito do Trabalho moçambicano do período colonial e sua relação com a OIT

5. Alteração do sistema de 1899 O Código do Trabalho Indígena de 1928 e a principal legislação

5.1. O Código de Trabalho Indígena de 1928

A primeira grande alteração de vulto ao Regulamento de 1899 viria a resultar do Decreto nº 12.533, de 23 de Outubro de 1926, que aprova o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique.

No art. 5º desse Decreto, redigido sob nítida influência do art. 5º da Convenção de 25 de Setembro de 1926 sobre a escravatura, garante-se aos Indígenas a liberdade nos Contratos de prestação de serviços e declara-se que o trabalho obrigatório ou compelido só será permitido em

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serviços de interesse público de urgência inadiável e com direito à remuneração. Suprime-se assim a possibilidade de imposição de trabalho obrigatório para fins de interesse particular88. O Decreto que acabamos de enunciar não cria, todavia, qualquer sistema geral de regulamentação do trabalho indígena, o que só viria a suceder dois anos volvidos, com a publicação do Decreto nº 16.199, de 6 de Dezembro de 1928, que aprova o Código de Trabalho Indígena das Colónias Portuguesas de África.

O Código consta de 428 artigos assim distribuídos: I – Disposições gerais;

II – Da tutela dos trabalhadores Indígenas e do seu exercício pelo curador e seus agentes; III – Do recrutamento;

IV – Da caderneta Indígena;

V – Dos contratos de prestação de trabalho; VI – Do transporte dos trabalhadores;

VII – Dos salários, adiantamentos e descontos; VIII – Da alimentação, alojamento e vestuário; IX – Da assistência aos trabalhadores;

X – Do trabalho obrigatório e correccional;

XI – Da junta central e das juntas locais de trabalho e emigração; XII – Das penalidades;

XIII – Do processo;

XIV – Disposições diversas.

O Código de Trabalho dos Indígenas das Colónias Portuguesas de África de 1928 segue a linha geral adoptada pelo Estatuto Civil e Criminal publicado em 1926.89 Por exemplo, o art. 3º dispõe que ogoverno da República não impõe nem permite que se exija aos Indígenas das suas colónias

88Além do trabalho obrigatório referido no art. 5º, o Decreto admitia o trabalho com carácter penal no art. 11º que ia mantendo

em vigor nas colónias o Código Penal, enquanto não fossem publicados Códigos Penais Indígenas, permitia que as penas de prisão correccional fossem substituídas pelas de trabalho correccional e as de prisão maior pelas de trabalho público.

89O Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique, Decreto nº 12.533, de 23 de Outubro de 1926,

atribui estatuto especial, de harmonia com a Constituição Política e a Lei Orgânica, aos indígenas das províncias de Angola e Moçambique e foi tornado extensivo aos Indígenas da Guiné e da Companhia de Moçambique pelo Decreto nº 13.968, de 30 de Maio de 1927.

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qualquer espécie de trabalho obrigatório ou compelido para fins particulares, mas não prescinde de que eles cumpram o dever moral, que necessariamente lhes cabe, de procurarem pelo trabalho os meios de subsistência, contribuindo assim para o interesse geral da humanidade.

O art. 4º vai mais longe ao dizer que ogoverno da República assegura aos indígenas das suas colónias plena liberdade de escolherem o trabalho que melhor lhes convier, quer de conta própria nas suas terras ou nas que o governo para isso lhes destina em larga escala em todas as suas colónias, quer por contrato para serviço de outrem, se assim o preferirem, reservando-se porém o direito de os incitar a trabalhar de conta própria, tanto quanto for razoável para melhoria da sua subsistência e condição social, e de fiscalizar e tutelar beneficamente o seu trabalho em regime de contrato.

Como se pode constatar, estas disposições do Código de trabalho de 1928 que acabamos de enunciar foram redigidas sob influência nítida e irredutível do art. 5º da Convenção de 25 de Setembro de 1926 sobre a escravatura.

Este Código regula as diferentes modalidades de contrato de trabalho: a) contratos com intervenção da autoridade e sem intervenção da autoridade (art. 96º); b) contrato para serviços na colónia e para serviços fora da colónia (art. 103º); c) contratos de trabalho oriundos de País ou colónia estrangeira (art. 156º). Quer dizer, os indígenas intervêm no contrato de trabalho como sujeitos activos com quaisquer entidades de direito público ou de direito privado. E esse aspecto é consubstanciador da influência do que dispõe o art. 1º, alínea b) da Convenção de 1939 (contrato de trabalho). Teoricamente, os trabalhadores recebiam contratos com termos negociados sobre repatriação, saúde, habitação, duração do emprego e a data de início e término do serviço. Contudo, conforme confirmou o relatório de Ross de 1925, na prática, isso não significou necessariamente nada, visto que muitos africanos não podiam ler; por isso, os termos dos contratos não eram sempre respeitados. Em alguns casos, os trabalhadores nunca chegavam a ver ou assinar uma cópia de um contrato escrito. O contrato era um simulacro para legitimar o trabalho obrigatório. A legislação produzida era para o “inglês ver”. Como aponta Jeanne Penvenne, apesar das mudanças legislativas de 1926 abolindo o trabalho forçado para fins privados e garantindo total pagamento pelo uso deste em trabalhos públicos, um artigo céptico foi publicado no Brado Africano dizendo que este era apenas mais um outro documento legal para o “inglês ver”.90

Passamos a seguir a agrupar as matérias do CTICPA que sofrem a influência das Convenções da OIT, a começar pelo seu preâmbulo.

Logo no primeiro parágrafo deste preâmbulo se lêque o diploma publicado sobre o regime de trabalho indígena nas colónias portuguesas de África não se pode dizer que apenas está em

90Sobre assinatura de contratos sem nenhum efeito prática vide Mark, Daniella Nicole (2012). Imperium in Imperio: The

Mozambique Company and the making of The Indigenato and Chibalo. Tese submetida como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre em História Moderna e Contemporânea. Instituto Universitário de Lisboa. pág. 78.

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harmonia com os maiores princípios de direito humano proclamados nas Conferências e Congressos Internacionais, desde o de Viena de 1818 até os da actual Sociedade das Nações. Lê-se, ainda, na parte final daquele parágrafo, a pretensa razão paralela da publicação deste regime de trabalho – “Representa a continuação do programa civilizador que primacialmente dominou o governo de Portugal desde o século XV”.

Nota-se aqui a tentativa de esconder a influência que a OIT começa a exercer no Direito Interno português, pela invocação da “ [… ] continuação do programa civilizador que principalmente dominou o governo de Portugal desde o Século XV”.

O terceiro parágrafo também deixa transparecer essa mesma influência ao dispor que a política do Estado desde o início da expansão externa de Portugal, obedeceu superiormente a princípios jurídicos inexcedidos pelos que então prevalecem nas assembleias dos povos cultos. Reconhecia a unidade de natureza, de origem e de fins de todos os seres humanos.

O quinto parágrafo retoma a tentativa de conferir pouco relevo à influência exercida pela OIT, ao afirmar que a Europa de então, voltada com os olhos protectores para os povos dos domínios coloniais, estava ainda longe de fazer uma ideia ajustada da orientação espiritualista e humanitária a que o poder supremo e as Leis de Portugal subordinaram desde o começo a marcha da sua administração ultramarina.

No entanto, o ponto mais alto da tentativa de relegar para um plano secundário o motivo subjacente da publicação deste Decreto encontramo-lo no sexto parágrafo que dispõe que Portugal contemporizou, é certo, nesse período anterior, como os outros Estados expansivos, com o tráfico humano de África, onde existia desde longe e onde foi cultivado pela Europa até o século XIX, especialmente para o fornecimento de serviçais e operários ao Novo Mundo. Mas ele sujeitou essa mesma anomalia da época à supremacia de todo seu programa civilizador e humano, que, por si mesmo, logicamente, havia de determinar a extinção do mal, ainda fora da influência dos congressos Europeus.

E mesmo tentado dissimular a sua “acção civilizadora” em relação aos indígenas, o legislador português, acaba deixando a nu a influência da OIT, de novo, nos parágrafos subsequentes. No décimo deixa escrito que naqueles intuitos, e para lhes assegurar o regime do trabalho contratual livre e a assistência que tinha sido dispensada e era necessário ainda dispensar à realização e cumprimento dos seus contratos de serviços, promulgou Portugal, na metrópole e nas colónias, essa série de diplomas reguladores da mão-de-obra que, desde 20 de Dezembro de 1875 até então, assinalavam os seus constantes esforços em prol da liberdade e igualdade de direitos dos povos que administrava e afirmavam a incansável tenacidade com que desde longe vinha trabalhando pelo progresso e gradual desenvolvimento de sua civilização.

No décimo primeiro acrescenta que são marcos dessa carreira tutelar e protectora os Regulamentos de 1878, 1899, 1909, 1911 e 1914. Em todos se inscreve e mantém o princípio da

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liberdade do trabalho, mas sucessivamente aperfeiçoado pelo abandono de fórmula que a transformação evolutiva dos costumes foi permitindo e pela adopção das regras mais consentâneas com a legislação similar promulgada por outras potências coloniais nos últimos cinquenta anos para que se não possa duvidar do sincero desejo de bem servir os deveres da grande nação colonizadora e da firmeza com que Portugal tem tomado a vanguarda no caminho da concessão de direitos e da garantia de protecção aos trabalhadores, em harmonia com aquelas concepções.

No décimo segundo, deixa claro que na base do diploma que o governo ora promulga, mantém- se, com igual desejo e firmeza de orientação, as nossas melhores tradições, e adoptam-se, com verdadeira fé, os princípios, hoje consagrados pelas nações.

No décimo oitavo encontramos um dos pontos mais altos da influência da OIT. Nele está escrito que desenvolve-se e aperfeiçoa-se a assistência médica e social e cria-se a de acidentes de trabalho, dentro de princípios de assegurar que esse benefício seja prestado aos trabalhadores. E na parte final deste parágrafo ainda se lê que o trabalhador nunca fica sem assistência; se não é justo impor o seu encargo a alguns patrões, assume-o o Estado, para que aquele não seja privado desse benefício.

No décimo nono incluem-se disposições novas tornando obrigatório o pagamento de compensações por acidente de trabalho sofridos por indígenas, adoptando-se as providências eficazes para bem assegurar que os acidentes não sejam ocultados e se realize o pagamento das respectivas compensações. Faculta-se que os patrões se associem para a constituição de instituições de previdência com o encargo obrigatório de seguros por acidentes de trabalho e a possível manutenção de serviços de beneficência para socorro de trabalhadores inválidos. Em determinados casos, o próprio Estado pode tomar a iniciativa destas instituições, associando-se para os encargos.

No vigésimo proíbe-se absolutamente o recurso ao trabalho obrigatório ou compelido para serviços de particulares ou fins privados, mesmo na condição em que alguns indígenas o prestaram até 1926, data em que aliás foi abolido definitivamente mesmo nessas condições, e estabelecem-se pesadas sanções para aqueles que porventura o impuserem.

No vigésimo terceiro admite-se o trabalho obrigatório para fins públicos, em harmonia com a Convenção de 1926.

E veja-se como aqui cai por terra a tendência de minimizar a influência da OIT ao admitir o alinhamento da CTICPA com a Convenção de 1926.

No vigésimo nono dá-se ênfase ao alinhamento do CTICPA com os deveres e obrigações internacionais ao dispor que continuando essa alta missão exterior que a si mesmo se impôs, ao consolidar a sua independência neste canto da península, obedece então, como sempre, aos deveres e às obrigações internacionais que assumiu nestes últimos tempos.

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Temos vindo a mencionar a sempre activa intenção de minimizar a influência da OIT no Direito do Trabalho Colonial Português. E não é que tal facto tenha sido estampado apenas nos primeiros parágrafos do preâmbulo aqui em análise. Há mais recortes nesse sentido.

O vigésimo nono parágrafo é exemplo disso, pois diz que Portugal mantém-se firmemente disposto pelas suas melhores tradições governativas, pelos seus impulsos generosos e pelo seu bom nome, a salvaguardar a personalidade e a liberdade dos indígenas das suas colónias e a concorrer, por boas Leis e por uma zelosa administração, para que eles mesmos cumpram também os seus destinos de homem pela educação e pelo trabalho voluntário e inteiramente livre, único que as Leis permitem.

Vamos concluir a análise da influência da OIT no Direito do trabalho colonial em Moçambique, que é comum a todas colónias portuguesas do continente africano, tendo como base estes apontamentos extraídos do Preâmbulo do CTICPA, deixando duas notas:

Primeira:

Em vários dos parágrafos do preâmbulo, nuns expressamente, e noutros tacitamente, o legislador português foi fortemente influenciado pelas Convenções da OIT, nomeadamente:

a) Sobre a duração do trabalho nos estabelecimentos industriais, 1919; Convenção nº 1; b) Sobre o descanso semanal nos estabelecimentos industriais. 1921; Convenção nº 14; c) Sobre a reparação dos acidentes de trabalho, 1925; Convenção nº 17;

d) Sobre doenças profissionais, 1925; Convenção nº 30;

e) Sobre o Contrato de trabalho marítimo, 1926; Convenção nº 22; f) Sobre o repatriamento marítimo, 1926; Convenção nº 26;

O CTICPA foi aprovado em 6 de Dezembro de 1928. Destas convenções que acabamos de mencionar como moldando o CTICPA, apenas a nº 1 e a nº 14 é que foram ratificadas por Portugal a 3 de Julho de 1928. As restantes foram-no mais tarde.

Segunda:

O legislador português procura ao longo de quase todo preâmbulo do CTICPA afastar a influência que ele próprio evidencia no Código, relegando-a para um segundo plano, deixando sempre vincar a ideia de que a colonização faz parte de uma estratégia benfazeja e altruísta de Portugal e que o CTICPA é um instrumento jurídico para a concretização do seu programa civilizador. Vamos citar o vigésimo oitavo parágrafo do preâmbulo para que ele fale por nós: “Portugal, ainda quando a Europa não pensava nos povos distantes dela, tratou de descobrir terras e populações estranhas, com os fins superiores de civilização, colocados acima dos seus desígnios políticos e comerciais”. A disciplina da lógica manda-nos, nesta segunda nota, dizer que Portugal embarcou para a colonização de povos desconhecidos de África com “os fins superiores de civilização”. Paradoxo? Como poderia Portugal esboçar “fins civilizadores” de povos estranhos, até então desconhecidos?

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É tempo de analisarmos o tão propalado “programa civilizador que dominou o governo de Portugal desde o século XV”. Já vimos como ele é exponencialmente invocado, e com muito relevo, no preâmbulo do CTICPA. Afinal, donde surge esta retórica de “missão civilizadora” da colonização Portuguesa?

A retórica da “missão civilizadora” “cumprida” por Portugal e evidenciada pelo CTICPA não data de 1928, bem pelo contrário, ela é mais antiga do que isso, senão vejamos:

Por ocasião da conferência antiescravagista, realizada em Bruxelas entre 18 de Novembro de 1889 e 2 de Julho de 1890, os representantes portugueses foram «munidos de memórias, documentos e cartas geográficas» que visavam testemunhar a secular «actividade administrativa, científica e humanitária» portuguesa em África. Esta conferência decorreu sob o signo da

partilha de África e dos Legados deixados pela Conferencia de Berlim, realizada em 1884, nomeadamente o seu Acto Geral de Fevereiro de 1885 e, mais especificamente, o art. 6º do seu articulado. Este artigo fixava e consagrava internacionalmente as obrigações civilizacionais das potências com direitos de soberania ou influência nos territórios coloniais relativamente à “conservação das populações indígenas” e ao “melhoramento das suas condições morais e materiais de existência”. O objectivo genérico era fazer os indígenas “compreender e apreciar as vantagens da civilização”.91

E a retórica civilizadora, fortemente promovida internacionalmente, foi fundamental para a manutenção e legitimação de um modelo de utilização de mão-de-obra nativa que preservava elementos próprios da escravatura.

A realização de uma conferência em Bruxelas, quatro anos depois da de Berlim, centrada precisamente nestas questões é uma prova indesmentível da importância dos assuntos “civilizacionais” na expansão colonial europeia da segunda metade do século XIX.92 O Acto

Geral que sintetizou as acidentadas reuniões da conferência exprimiu com clareza esta articulação entre ocupação colonial, supressão da escravatura e civilização, consagrando-se e consolidando-se de modo apurado na ordem dos discursos e das práticas imperiais e coloniais. De facto, na sequência dos preceitos “civilizadores” de Berlim, o Acto Geral de Bruxelas constituiu o momento central do reforço das correspondências entre os propósitos de combate das práticas escravagistas e a necessidade de uma ocupação efectiva dos territórios coloniais. O fim da escravatura em contexto colonial dependia da ocupação efectiva dos seus territórios por parte das potências coloniais que por sua vez se tornava condição necessária para a civilização das populações nativas das colónias. Apesar das inúmeras debilidades e da sua enorme distância que separava a retórica humanitária e a concretização das políticas efectivas que conduzissem de facto ao declarado objectivo da supressão da escravatura e do tráfico de escravos, o Acto Geral – que apenas entrou em vigor a 2 de Abril de 1892 e durou até 1919 – recolocou estes aspectos no

91Como recorda Jerónimo, Miguel Bandeira (2010). OC, págs. 51 e ss.

92Como vimos no ponto 2.5.1.2. (Fase da preocupação do combate da escravidão e tendência para a proibição do trabalho

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centro dos debates coloniais, do mesmo modo que o tornou um recurso indispensável na promoção da causa colonial e imperial, depurando e melhorando o seu uso prévio. Como Joseph Chamberlain, distinto secretário colonial britânico (1895-1903), sintetizou, a suposta obrigatoriedade de combate à escravatura e ao tráfico de escravos enquanto factor civilizador tornou-se um precioso “causus belli” passível de “justificar o controlo imperial” dos “países selvagens”, argumentação usada com frequência desde as primeiras vagas de expansionismo colonial em África ocorridas desde meados de Oitocentos e que viriam a consubstanciar o novo imperialismo.93

Vejamos outro exemplo da retórica civilizadora, num discurso insofismável de João Pedro Marques. “Em meados do século XV, referindo-se ao primeiro desembarque de escravos negros em Lagos, Zurara louvava o Infante D. Henrique “por trazer assim à verdadeira salvação” os pagãos que viviam “em perdição das almas [… ], sem claridade e sem lume da Santa Fé”. Na época em que se iniciaram os descobrimentos marítimos portugueses, a teoria da salvação das almas estava na primeira linha de argumentos legitimadores da acção escravagista e por isso a encontramos em Zurara e outros autores contemporâneos. Mas se bem que nos séculos seguintes essa teoria tenha continuado a desempenhar um papel na fundamentação ideológica da escravatura, ela foi secundarizada por um conjunto de considerações mais pragmáticas, que privilegiavam as noções de necessidade económica e de mal menor. Efectivamente, na sua versão mais elaborada e consistente, a ideologia escravista podia apresentar-se como um conjunto de imagens e de argumentos habitualmente articulados em forma de tese da imprescindibilidade do trabalho escravo. Por norma, o raciocínio proposto era o seguinte: a prosperidade dos países europeus, dependia da florescente agricultura – do açúcar, do tabaco, do café – feita nas colónias, essa, por sua vez, resultava do trabalho de milhões de africanos que até então tinham vegetado nas suas terras natais, aí, de nada serviam, mas transferidos para a América, eram de grande utilidade para o bem geral da nação. A ideia da salvação das almas ou de mal menor podia ser eficazmente combatida, e foi de facto. Mas a de imprescindibilidade do trabalho coercivo nas regiões tropicais era muito difícil de contestar, até porque parecia decorrer da evidência. Até grandes nomes da história universal aceitavam esta imprescindibilidade de trabalho forçado nas regiões tropicais; vejamos este registo de Montesquieu: “Há países onde o calor enerva os corpos e enfraquece a tal ponto a coragem que os homens só cumprem deveres penosos devido ao receio de serem castigados [… ], uma vez que todos os homens nascem iguais, é necessário dizer que a escravidão é contra a natureza, se bem que em certos países ela se baseie numa razão natural [… ]. A servidão natural deverá, portanto, limitar-se-á a certos países da terra”. Assim, até ao último terço do século XVIII, mesmo os que condenavam a escravidão por motivos morais – como era o caso de Montesquieu – se viam geralmente forçados a admitir que,