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As Mudanças Psicossociais e Espirituais na Vida do Paciente com Câncer

A ideia de que o câncer inevitavelmente mata afeta profundamente a maneira como as pessoas reagem à doença e isto pode aumentar a sensação de desamparo e desesperança. Ainda hoje, a sociedade carrega o estigma do câncer como uma “sentença de morte”. Anteriormente não existia tratamento, e a morte era inevitável. Essa marca continua presente no imaginário das pessoas, assim como eram, em outras épocas, a tuberculose e as pestes. Muitas pessoas evitam falar a palavra câncer, como se sua pronúncia fosse levar à maldição da morte (KOVÁCS, 1992, 2001, 2003).

Kübler - Ross (1998), grande estudiosa sobre o processo da morte e do morrer do nosso século, na sua prática, acompanhava o paciente desde o diagnóstico da doença grave até a fase final da vida. Ela buscava conhecer o paciente no seu modo de ser, acolhia, dava esperança e garantia a presença constante principalmente nos tempos difíceis do tratamento (recidiva ou fora de possibilidade terapêutica) que foi referido no subitem anterior (capítulo 2.1). Através de sua experiência profissional e fazendo pesquisa, ouvindo seus pacientes em estado terminal, classificou - os passando por cinco estágios do morrer: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação. Notou que a esperança se faz presente em todas essas fases, que não ocorrem sucessivamente, podendo oscilar de uma para outra, dependendo do momento do tratamento e do recurso que cada indivíduo tem para lidar com a situação.

A mesma autora indica que o sentimento da própria mortalidade não é inato. Em geral, se conscientiza dessa possibilidade a partir da experiência de algo que ameaça a vida, seja a sua própria, ou a de alguém que se ama. A família confronta- se com a possível perda de um de seus membros e com a ruptura da família (FRANCO, 1994). Para cada um dos familiares, coloca-se a questão: “Pode a família sobreviver a essa perda, caso ela venha a acontecer? Conseguirei sobreviver e ir em frente”?

Hoje sabe-se que o câncer pode ser, em muitos casos, curado, devido à evolução técnico-científico e ao diagnóstico precoce. Mas quando esse diagnóstico chega ao paciente, a primeira reação costuma ser o medo de que, no seu caso, além de não ser curado, o câncer vá trazer consigo muito sofrimento, humilhação física e dor. É preciso encontrar o significado e a compreensão dessa situação para cada indivíduo na sua peculiaridade, na sua história de vida, nas características da personalidade, na afiliação religiosa e na etiologia da doença (ANCONA-LOPES, 2005; BALLONE, 2007; GIMENES, 1998; GIOVANETTI, 2004).

O interesse pelo tema religiosidade, espiritualidade e psico - oncologia partiu do desejo de preencher as lacunas existentes no Brasil e no exterior referentes a esse assunto específico da religiosidade do paciente com câncer em tratamento. Quando foi iniciada esta pesquisa, em 2006, poucos estudos tinham sido encontrados. Atualmente vem crescendo o número de estudiosos no Brasil sobre o assunto (BARBIERI, 2003; BITTENCOURT; CADETE, 2002; ELIAS, 2005; FLECK et al., 2003; GIMENES, 2001; HENSE, 1987; TEIXEIRA; LEFÈVRE, 2003a, 2003b; PESSINI; BERTACHINI, 2005; VOLCAN et al., 2003).

No exterior, também vem crescendo nos últimos anos, os estudos referentes os temas paciente com câncer, religiosidade e espiritualidade podendo ser citados (BELARDINELLI, 2006; COSTA, 2008; KUUPPELOMAKI, 2000; LEYDON et al., 2000; LIN; BAUER, 2003; PALOUTZIAN; ELLISON, 1982; SHERMAN et al., 2001; TATSUMURA et al., 2003; TAVELLA; CROCETTI; 2008; YUNTA, 2000).

A experiência de Yunta (2000), estudioso e assistente espiritual que cuida das necessidades espirituais dos pacientes no Centro do Câncer da Pontifícia Universidade Católica de Santiago do Chile, mostra que os pacientes passam por um processo de aceitação da enfermidade e, nesse período, encontram sentido para a sua existência, aprendendo a conviver com a doença e aceitar a morte quando esta se aproxima.

Yunta (2000) descreve a experiência dos pacientes e suas particularidades. Eles deixam de ser saudáveis e passam a estar doentes biopsicossocial e espiritualmente, pois perdem a autonomia e a capacidade de relacionar-se com os outros, o que dificulta assegurar sua estima pessoal e ser bem considerada pelas pessoas. A enfermidade se apresenta ao paciente como uma mortificação ou mutilação que paralisa a sua trajetória vital. Ao fixar-se nas suas limitações, ele perde seu sentido de integridade como pessoa e isso o faz sofrer, manifestando temores diversos, como o medo da separação, da dor, da inutilidade, da rejeição ou do abandono e da morte. Por estes fatores a pessoa se encontra asilada e

marginalizada do mundo social pela sua condição debilitada, afasta-se do trabalho e da comunidade em que vive para ficar em casa e/ou no hospital. Diante deste conflito entre o que quer interiormente (desejo de ser curado) com o que experimenta com a realidade do mundo externo, o enfermo passa por períodos de angústia, ansiedade e depressão em que pode sentir-se “abandonado” por Deus e pelos demais, sentindo-se incapaz de orar e de receber consolo.

YUNTA (2000) ainda caracteriza o desconforto do paciente por precisar depender dos outros, principalmente dos seus familiares, sendo isso percebido como uma carga enorme, dificultando a relação com as pessoas que o querem bem.

Geralmente, quando a pessoa goza de uma boa saúde não aprecia a importância que tem o corpo para conseguir com empenho o que se propõe. Apenas quando o homem cai doente é que se dá conta do quanto é limitado e frágil. O resistir e lutar contra a dor leva também ao sofrimento, especialmente porque a experiência de sofrimento é muito difícil de partilhar. A dor e o sofrimento não podem ser medidos exatamente, nem podem ser experimentados por outra pessoa que não seja o enfermo. O sofrimento leva a um conflito pessoal. O perigo da perda de integridade reside no significado que tem a dor para a pessoa que sofre ou na crença acerca das conseqüências que terá. Geralmente, o sofrimento leva ao encontro com o sentido da vida que até antes da doença não existia (FRANKL, 1997; YUNTA, 2000).

Muitos pacientes que sofrem se questionam porque aconteceu tal doença, muitas vezes não encontrando uma explicação causal para o que ocorreu. Nem todos têm a mesma experiência; a pessoa pode responder de modos diversos frente às ameaças e à deterioração que a arrebata pela enfermidade (BARBIERI, 2003; ELIAS, 2005; VERÍSSIMO, 2005). O paciente e o familiar, frente à doença, podem buscar ainda o sentido do porquê daquilo que se vive.

O enfermo e sua família, mesmo diante do sofrimento, nunca se encontram totalmente desamparados e parecem buscar um sentido em algo superior para o que está acontecendo em sua vida. Dar sentido aos acontecimentos mantém a vida e faz com que o ser humano se sinta digno, fazendo-o aproximar-se de algo superior (HENSE, 1987). O fato de buscar explicações muitas vezes impede a aceitação do “mistério”. Yunta (2000) aponta que aceitar o sofrimento como vem, sem racionalizá-lo, é curativo e dá liberdade.

Bittencourt e Cadete (2002) realizaram um estudo fenomenológico com sete mulheres, que iriam se submeter à cirurgia. Nesse estudo, pode-se observar o apego delas a Deus e à religiosidade como apoio. Apresentou-se muito forte, na fala delas,

a necessidade da busca à religiosidade e o reconhecimento de um ser superior como fonte de auxílio, fé e esperança frente à necessidade de ter que submeter a uma cirurgia. Uma das pacientes expressou:

[...] Agora, num tem mais problema. Só tô esperando mesmo a hora chegar, e operar, e já voltar, né. Se for da vontade do Senhor também. [...] Mais pra mim, isso num é problema, não, porque o principal já aconteceu comigo, que é a salvação [...] (BITTENCOURT; CADETE, 2002, p.74).

Apresenta-se, nessa mulher, assim como na maioria delas, algo divino. Sentiam-se acolhidas e cuidadas por um ser superior que as ajudava a lidar com os problemas com mais confiança e esperança. Esta força, vinda da fé e de suas crenças em seus próprios valores espirituais, permitia-lhes superarem a dor e o desconforto, diminuindo a tensão do pré-cirúrgico, assim aceitando a situação com mais tranqüilidade (BITTENCOURT; CADETE, 2002).

Outro estudo qualitativo e de referência nesta área da espiritualidade e pacientes com câncer é o de Hense (1987) realizado em dois momentos: o primeiro quando foi feita uma entrevista informal e semi-estruturada para conhecer o cotidiano de pacientes cirúrgicos; o segundo foi verificar e entender as vivências centrais deles, nos diferentes momentos da cirurgia (antes, durante e depois). Os resultados mostraram que as pessoas que passam por esta situação cirúrgica pensam mais no relacionamento com Deus e com a família. É característica, neste momento, voltar-se para Deus, rezar, entregar e deixar tudo nas mãos Dele. Uma paciente diz: “Deus, que seja a tua vontade. Se for tua vontade então deixa eu dormir. Se não for da tua vontade então não deixa eu dormir” (HENSE, 1987, p.114).

Percebendo o incômodo da dor física, a paciente manifesta o medo de complicações e se apega a algo superior, Deus, pedindo sua intervenção para aliviar o que está gerando mal-estar:

“Seja o que Deus quiser... Enquanto me levavam para o Centro Cirúrgico, vi bastante o Sagrado Coração de Jesus. Sou bastante devota a ele. Ainda bem que para cada lado que eu olhava, o via. Parecia que era de propósito que ele estava ali. Ficava me apegando a ele. Entreguei tudo ao Sagrado Coração” (HENSE, 1987, p. 111).

Uma outra pesquisa qualitativa chamada “A devoção à Nossa Senhora em pacientes oncológicos” (VASCONCELOS, 2008) feita através de entrevistas semi- estruturadas apresenta análise apenas de uma paciente que refere que a presença de Deus não retira o sofrimento da vida, mas conforta pelo fato de que é uma presença com que sempre se pode contar. Uma fala da paciente:

A pessoa que é boa, que é religiosa, acontece sim o sofrimento, mas Deus prometeu estar junto. Isso que é importante, mas tem gente que não acredita. Eu falo assim com Jesus: Jesus, eu não sei nada, não posso nada, não entendo nada. Falo todo dia. O senhor sabe tudo, pode tudo, entende tudo. É uma questão de paz, de serenidade, de confiança. Porque Deus vai te domando. Nunca que a gente está sozinha. É uma coisa gostosa, sabe? (VASCONCELOS, 2008, p. 76)

Esta paciente vivencia o câncer em tratamento e se sente curada, mas não retira a possibilidade que ele possa voltar (recidivar) e ela possa vir a adoecer de novo. No seu discurso diz: “o câncer não vem sozinho. A graça de Deus vem junto. Então, eu suporto... Seja o câncer, seja o que for. Eu não peço a Deus saúde, não. Tem gente que fala: o principal da vida é saúde. Não é não. É ter Deus com a gente” (VASCONCELOS, 2008, p. 78). A mesma paciente acredita que só Deus penetra fundo no coração e só Ele pode nos fazer felizes, e acrescenta que não devemos esperar passivamente as coisas acontecerem: “porque Deus propõe, Ele não impõe. Se quiser me seguir, pegue a cruz. Ele não falou: pegue um ramo de flores e segue. Pegue a cruz de cada dia. Se você quiser me seguir, é desse jeito” (VASCONCELOS, 2008, p. 79). Uma outra citação significativa desse estudo é quando fala da fé em Deus e em Nossa Senhora. Ela distingue os dois, e diz que Deus é um lugar do Sagrado, de potência. Maria é vista como modelo de bondade, de intercessão oferecida pelo próprio Deus, estando num lugar entre o sagrado e o humano. “Faça- se em mim a vossa vontade. É a oração que eu aprendi com Maria. Minha devoção, minha afinidade com Nossa Senhora é como modelo de fidelidade a Deus [...] de prontidão, de fazer aquilo que Deus queria de mim” (VASCONCELOS, 2008, p. 96).

Em um estudo feito com mulheres submetidas ao tratamento de câncer de colo uterino, foram realizadas entrevistas com questões abertas e fechadas buscando a compreensão da prevenção e a percepção delas no Ambulatório do Centro de Radioterapia do Instituto do Câncer do Ceará (ICC), em Fortaleza. Este local faz consulta dos pacientes periodicamente (dependendo de cada caso) e busca

detectar sintomas ou queixas dos pacientes, observando possibilidade de recidiva da doença. Os resultados da pesquisa foram classificados em: alterando o cotidiano, a incerteza da cura e a religiosidade como suporte. Uma fala de uma participante do estudo descreve a importância do apoio espiritual como estratégia no enfrentamento para a cura da doença: “[...] É uma doença malvada, eu tenho fé que estou curada” (LINARD; DANTAS; SILVA, 2002, p.497).

Um estudo readaptado no Brasil por Fleck (1999)3 para a nossa cultura,

tendo uma perspectiva transcultural, foi um instrumento de qualidade de vida para avaliar a religiosidade e a espiritualidade dos pacientes com câncer - WHOQOL - 100 (World Health Organization Quality of Life Instrument - 100 itens). A Organização Mundial da Saúde utiliza este recurso de avaliação da qualidade de vida que inclui os termos “religiosidade, espiritualidade e crenças pessoais” inseridos no conceito clássico de saúde para um estado dinâmico que abrange o bem-estar físico, mental, social e espiritual (FLECK et al., 2003). Diante disso, mostra que a OMS atribui importância à dimensão espiritual, ao procurar olhar e pensar a totalidade do ser humano, visando criar um modo novo de se posicionar frente ao paciente com câncer e sua família.

A doença faz parte da vida. A ciência se apropria de um racionalismo que menciona que a saúde é um bem e a doença um mal e se chega a uma dicotomia, tendo o pensamento na medicina que é preciso “combater a doença a todo custo” (CAPRA, 1982). Essa idéia surge durante a Idade Média, Fava e Sonino (2000) afirma que a doença era concedida ao pecado, sendo o corpo o locus dos defeitos e pecados, e a alma, dos valores superiores, como racionalidade e espiritualidade.

Frente a isso, pouco esforço tem sido realizado na compreensão da conexão entre o modo de pensar o homem na psicologia, seja no tema saúde e doença, e paradigmas antropológicos relacionados ao binômio saúde-doença que se precedeu (a psicologia atual) historicamente. Esse descaso pelo passado como modo de entender as concepções atuais sobre o ser humano, especialmente em psicologia, é produto do dogma da modernidade, de que se opera uma ruptura com o passado e a tradição (CASTRO, ANDRADE; MULLER, 2006).

Castro, Andrade e Muller (2006) interpreta o pensamento de Santo Agostinho, que viveu na idade média (nasceu em 354) e mencionava que o homem respondia na unidade do corpo e mente porque era constituído por substâncias racionais, resultantes dessa alma e corpo, ambos criados por Deus.

3 Fleck, M. P. de A. et al., Desenvolvimento da versão em português do instrumento de avaliação de

Ao contrário, como dizia Descarte (2000) imerso nesse contexto pelas ciências naturais, no período da modernidade, ele solicitou a separação completa da mente e corpo, sendo o estudo da mente atribuído à filosofia e à religião e, o estudo do corpo, à medicina, visto como uma máquina e, para lidar com a saúde era preciso separar o espírito. Então, tendo predominado este pensamento na ciência, esta passou a olhar apenas para as partes do paciente, sem olhar para sua totalidade.

Na atualidade, tem se falado muito no termo “humanização” nos atendimentos às pessoas nos hospitais e nas redes públicas. Esse ideal de filosofia que se busca construir precisa ter cuidado como é feito, pois podem voltar às velhas posturas ideológicas (CAPRA, 1982). Graças à ciência, a humanidade, ao longo dos séculos, vem transformando os modos de pensar saúde e doença, mente e corpo. Torna-se necessário alcançar um patamar mais alto de integração epistemológica, que auxilie o avanço do conhecimento.

2.3 Os Profissionais de Saúde diante da Experiência Religiosa e da Fé dos